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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Seção resenha de livros: CAMPO DOS BUGRES

Olá.
Aqui é o Rafael novamente.
Hoje, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública, trago ao público realmente interessado em cultura mais um livro de Fidélis Dalcin Barbosa, visando ao resgate da vida e da obra deste autor gaúcho que dedicou sua vida a, com sua arte, levar cultura e informação aos leitores de outrora – e os de hoje, se nada tiverem contra.
O livro escolhido de hoje reúne história, romance, epopeia de um povo determinado e, consequentemente, clichês sobre o tema tratado.
O livro de hoje se chama CAMPO DOS BUGRES. Já resenhados os livros da série “Prisioneiros”, hoje então variaremos um pouquinho.
CAMPO DOS BUGRES – A VIDA NOS PRIMÓRDIOS DA IMIGRAÇÃO ITALIANA foi lançado em maio de 1975, pelas editoras EST (Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, de Porto Alegre, RS) e Sulina (também de Porto Alegre). O romance faz parte de uma série, lançada pela EST, em comemoração ao centenário da imigração italiana no Rio Grande do Sul, comemorado naquele ano.
Em CAMPO DOS BUGRES, Frei Fidélis se dispõe a narrar, através da saga fictícia de um personagem, a formação da cidade de Caxias do Sul, RS, importante colônia italiana, e cujo desenvolvimento econômico e social se deve ao trabalho dos imigrantes.
Reconhecidamente, Caxias do Sul é um importante polo econômico da região da serra gaúcha. Onde, anualmente, se realiza a Festa da Uva. Terra também do cartunista Carlos Henrique Iotti, criador do personagem Radicci, um dos maiores contrapontos ao clichê do descendente de imigrante italiano trabalhador e obstinado. Enfim. Caxias do Sul, uma das maiores vitrines do desenvolvimento do Rio Grande do Sul – hoje, com algum declínio devido à decantada crise econômica nacional e mazelas inclusas.
Em seus primórdios, Caxias do Sul era chamada de Campo dos Bugres, visto que seus primeiros ocupantes eram os índios da etnia caigangue. Só na segunda metade do século XIX é que a região passou a ser extensivamente ocupada. Foi um dos pontos de ocupação dos imigrantes italianos no Rio Grande do Sul, fugidos da Itália recém-unificada, mas ainda fragilizada.
O povo italiano, principalmente os camponeses, perecia depois da longa série de conflitos entre os reinos da Península Itálica e o Império Austro-Húngaro, pela causa dos primeiros – a unificação dos reinos italianos em um só país. A política de distribuição de terras na Itália não favorecia aos camponeses mais pobres, e a grande maioria destes optou pela imigração subvencionada para a América, naquela época a cucagna, a terra das promissões, das oportunidades de fazer fortuna. Brasil, Argentina e Estados Unidos eram os principais destinos dos colonos, que vinham para o continente em navios no geral superlotados e em condições precárias de higiene, com o risco de acabar morrendo durante a viagem e ter seu corpo jogado ao mar – mas com a vantagem de a viagem ser custeada pelo governo desses países.
Uma vez alcançado o continente e o Rio Grande do Sul, os colonos italianos, em sua maioria, precisaram abrir caminho através do mato para poder chegar ao lote de terra financiado junto ao governo brasileiro. E, com um trabalho penoso e duro, mas compensador, muitos imigrantes conseguiram “fazer a América”, construir um conforto material para si e seus descendentes. E, de quebra, contribuir com o desenvolvimento da terra que os acolheu. Houve os que se arrependeram de ter vindo à América, e os que simplesmente não conseguiram prosperar, mas essas histórias são menos levadas em conta que as histórias dos que conseguiram vencer no nosso continente “de macacos, serpentes venenosas, índios antropófagos e tigres e leões assassinos”.
Buono. CAMPO DOS BUGRES inicia em 1885, dez anos depois do início da experiência migratória no RS. Começa na Itália. Começa quando Eduardo Segalla, o personagem principal, e que narra a história em primeira pessoa, retorna para sua região, o Sármede, depois de lutar na guerra da Unificação. Porém, ali não encontra seus pais e irmãos. É acolhido pelo avô, que lhe informa que a família, tendo dado Eduardo como morto na guerra, migra para a América. Após alguns dias na casa do avô, e tendo ouvido opiniões de pessoas próximas, Eduardo resolve migrar também para a América. Na Itália, naquele momento, ele não teria muito futuro – o sentimento da unificação ainda não se instalara nos corações de todos os italianos, os camponeses, por mais que trabalhassem, continuavam pobres, e havia uma ameaça de uma nova guerra.
Embora o avô quisesse que Eduardo ficasse na Itália, ele ajuda o rapaz com os preparativos da viagem, feita de navio, desde o porto de Gênova, nas já citadas condições precárias. Eduardo teve sorte de não ter sido um dos que perderam a bagagem durante a viagem. Com outros migrantes, Eduardo desembarca no Rio de Janeiro, depois pega outro navio em direção ao Rio Grande do Sul. Desembarca em Porto Alegre, depois vai até São Sebastião do Caí, região povoada por alemães. E, de lá, após receber possíveis informações do paradeiro dos pais, Eduardo segue para Campo dos Bugres.
A viagem até a atual Caxias do Sul é feita em uma tropa de mulas, guiadas pelo tropeiro Pedro. Junto a Eduardo, acompanha a tropa uma família, os Caon, casal e seis filhos. No meio da jornada, Pedro vai dando aos imigrantes informações sobre a nova terra – há, inclusive, uma citação a respeito de Luís Bugre e da tragédia da família Versteg, respectivamente vilão e personagens principais de Prisioneiros dos Bugres.
Com Pedro, Eduardo também aprende sobre o valor dos pinhões como fonte de sustento na longa jornada. E, mais tarde, do valor dos próprios pinheiros araucárias para as construções.
Chegando ao então povoado em formação, Eduardo, no início, resolve se separar dos Caon para continuar na busca pela família. Porém, alguns imprevistos – como a possibilidade de ter de voltar todo o caminho de novo para ir em outra direção – o fazem ficar em Campo dos Bugres, praticamente adotado pelo casal Antônio e Maria Caon, e seus seis filhos. Enquanto os homens – Eduardo, Antônio e os dois filhos mais velhos deste, Luís e José – se encaminham para o lote de terra que lhes coube e iniciam a construção de uma casa provisória, as mulheres e crianças têm de aguardar em um barracão, a morada provisória dos recém-chegados.
Eduardo, naturalmente, recebe seu próprio lote, mas precisa ajudar os Caon na construção de sua moradia. Derrubando mato, cortando madeira para erguer a casa, se alimentando de carne de caça, pinhão e polenta feita com farinha de milho comprada na colônia. Por vezes, precisam pedir emprestadas ferramentas e outros recursos junto a vizinhos. Só depois da casa pronta, e enfrentando alguns percalços – como o causado por conta de uma tempestade – é que os colonos já podem se dedicar a uma horta. A convivência, o trabalho conjunto e os sofrimentos compartilhados, ao som dos pássaros e da tradicional cantoria italiana, criam uma cumplicidade entre Eduardo e os Caon, que acabou resultando na união de famílias – um pouco mais tarde, Eduardo casa com Rosalina, a filha primogênita dos Caon.
O modo como se deu esse casamento é um capítulo a parte. Rosalina se apaixona por Eduardo, mas só consegue se declarar a ele em uma ocasião em que ele fica doente, de cama, e aos cuidados das mulheres dos Caon. A inesperada declaração de Rosalina para Eduardo também contribui para que o rapaz fique mais tempo em Campo dos Bugres – durante a crise da enfermidade, Eduardo se arrepende de ter aceitado a colônia e cogita sair dali e continuar procurando pela família. Porém, ambos adiam o casamento de imediato – primeiro, Eduardo precisa ajeitar sua colônia e fazer um “pé-de-meia” para manter a futura família; Rosalina, por sua vez, decide ela mesma fazer o enxoval com linho plantado na colônia. O namoro entre os dois foi bem pouco romântico, mas, após o casamento, em 1887, as coisas começaram a melhorar.
Os colonos inicialmente dedicam-se à agricultura – com plantações de milho, abóbora, uvas. Uma parte para sustento próprio, o excedente vendido. Só um pouco mais tarde os colonos já criam condições para criar animais – galinhas, porcos, vacas leiteiras, cavalos e mulas para transporte. A plantação de uvas possibilita a posterior fabricação de vinho, atividade a qual Eduardo também se sobressai. E os colonos nunca esquecem a tradicional religiosidade – ajudam a erguer capelas e igrejas. Há episódios de gente que blasfema, por causa da má sorte – ofendem os céus até mesmo por causa de uma carroça atolada.
Mas, antes de alcançar alguma prosperidade, Eduardo precisa se dedicar a outras atividades para juntar mais dinheiro. Uma delas foi buscar trabalho remunerado entre os fazendeiros de Vacaria e Lagoa Vermelha. Ele e os parceiros deixam suas propriedades aos cuidados de gente de confiança, e voltam a tempo para a safra das lavouras. Mas a experiência do trabalho no Planalto seria marcante para os colonos: além do compensador ordenado, eles aprendem mais sobre a cultura gaúcha, diversificada da cultura italiana.
Só pouco depois do casamento, Eduardo afinal recebe resposta do paradeiro dos pais e irmãos: eles estão morando na colônia de D. Isabel, atual Bento Gonçalves. Mas Eduardo demora mais um pouco para ir de encontro a eles. Antes, vai diversificar seus negócios. Aceitando o conselho de um vizinho, Eduardo monta, em sociedade com o sogro, uma tropa de mulas para vender seu vinho para outras localidades – aproveitando, inclusive, a multiplicação das estradas, que eliminam o sofrimento de ter de abrir caminho através do mato. Inclusive, fica íntimo de um rico fazendeiro vacariense, que se torna padrinho de um de seus filhos.
E seu negócio vai prosperando aos poucos: os anos passam, nascem os filhos, e Eduardo já está em condições de deixar sua plantação aos cuidados de gente de confiança e montar uma cantina, para comercializar seu vinho, dentro da vila de Caxias do Sul – dividindo o barracão com a fábrica de artigos de vime do sogro. Alfabetiza os familiares e matricula os filhos nos nascentes colégios de Caxias, dirigidos por ordens religiosas – se contrapondo a uma parcela dos colonos, que preferiam trabalhar na lavoura a estudar. Enquanto isso, assiste ao desenvolvimento de Caxias do Sul, de povoado a cidade. Assiste a era das carretas puxadas por animais, aproveitando as estradas, mas tais veículos eram constantemente sujeitos a atolamentos em dias de chuva – a pavimentação das estradas de terra batida só viria depois. Assiste depois a chegada dos caminhões, substituindo as carretas no transporte de mercadorias (e Eduardo e os Caon não apenas assistem, eles participam dessas eras dos transportes). Assiste a chegada da ferrovia – e leva um grande susto ao ver uma locomotiva de perto. Assiste a formação das primeiras indústrias de Caxias do Sul, coordenadas, claro, por italianos e descendentes.
Só mais tarde, aproveitando um momento de folga, Eduardo vai atrás dos pais, que vivem em condições mais ou menos precárias em Bento Gonçalves. O reencontro é emocionante, mas Eduardo tem algum trabalho para convencer os pais a irem com ele para Caxias. Um dos irmãos de Eduardo, inclusive, era barqueiro, fazendo transportes através dos rios, de balsa. Eduardo deixa a granja aos cuidados dos familiares, enquanto trabalha na cantina. E continua assistindo a evolução de Caxias do Sul, e os acontecimentos do Brasil e do Mundo: as revoltas de 1895 e 1923 no Rio Grande do Sul, a Primeira Guerra Mundial, a epidemia de Gripe Espanhola.
E a história de Eduardo se desenvolve assim, com os clichês que se observam em histórias da imigração italiana – tanto se escreveu a respeito da imigração italiana no Rio Grande do Sul, tanto se pesquisou, tanto se publicou, tanto se utilizou nas telenovelas, que hoje qualquer obra que traga a saga de um colono italiano, com tudo o que foi descrito acima, inevitavelmente soará clichê. Fidélis Barbosa praticamente não deixa escapar nada ao narrar a saga de um colono italiano. Não deixa escapar o tradicional didatismo de seus livros: a história, a geografia do Rio Grande do Sul, a descrição minuciosa do trabalho dos tropeiros, dos fazendeiros, dos comerciantes, dos barqueiros... Não esquece também de fazer referências a alguns crimes que chocaram a região de Caxias, à Festa da Uva, à fundação das primeiras igrejas da região, às mudanças na política local... E também não deixa de lado a religiosidade e o final feliz.
Tudo em 104 páginas, sem contar capa, em uma narrativa que, embora demande a devida atenção por parte do leitor para captar todos os detalhes (talvez até exigindo que o leitor leia todo o livro de novo), é fácil de entender, pois visa o público mais jovem. E ainda inclui ficha de leitura para uso em escolas, e dois dicionários: um onomástico (com as referências a nomes citados na história) e um toponímico (com as referências aos locais citados). Não há referência, entretanto, da autoria da ilustração da capa.
Cheios até a boca devemos estar com histórias de luta e sofrimento dos imigrantes italianos que “fizeram a América”, mas nunca é demais ouvir uma história a mais, ler uma história a mais. Afinal, estamos falando de gente que construiu uma vida confortável sem as facilidades tecnológicas de hoje em dia – e vale a pena aprender.
Então: deixem de desculpas e procurem na biblioteca mais próxima (inclusive, na Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges, onde há um exemplar): CAMPO DOS BUGRES. Enquanto não tem para e-book, temos de nos contentar com a versão em papel...

Esta resenha é uma versão revista e alterada do texto publicado originalmente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem para conhecer.
No momento em que escrevo, ainda está a se realizar a Feira do Livro de Vacaria. Aproveitem para visitar – até o dia 23 de outubro, na Praça Daltro Filho.
Em breve, nova resenha.

Até mais!

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Seção Resenha de Livros: PRISIONEIROS DO CAMPO

Olá.
Aqui é o Rafael novamente.
Hoje, em nova colaboração para o Blog da Biblioteca, voltamos a falar da obra do escritor gaúcho Fidélis Dalcin Barbosa. O livro de hoje foge um pouco do padrão observado em outras obras do autor, em algumas de suas características observadas até o momento.
O livro de hoje se chama PRISIONEIROS DO CAMPO.

PROBLEMAS NO EXEMPLAR DISPONÍVEL
PRISIONEIROS DO CAMPO, que posteriormente recebeu o subtítulo de A Epopeia dos Trigais de Passo Fundo, teve sua primeira edição lançada em 1965, pela editora São Miguel, de Caxias do Sul, RS. O exemplar disponível na biblioteca, já preciso avisar, está em estado de conservação regular, a julgar pela foto da capa mal restaurada (acima). Esta edição tem formato bolso e 186 páginas.
Há outra edição do livro, pela Editora EST (Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes), de Porto Alegre, RS, em formato brochura e 175 páginas (abaixo) – é a edição mais fácil de encontrar na internet.

O CICLO DOS PRISIONEIROS
Bem. De todo modo, PRISIONEIROS DO CAMPO, apesar de também levar o título de Prisioneiros, foge um pouco do padrão estabelecido pelos outros romances do autor com esse título. Já falei, aqui, de quatro deles: O Prisioneiro da Montanha (1961), Prisioneiros do Abismo (1962), Prisioneiros de Vila Velha (1964) e Prisioneiros dos Bugres (1966) – não nessa ordem.
Os romances da “série” Prisioneiros seguem como padrão: o uso de didatismo, com inserção de informações geográficas, históricas e científicas dos locais onde se passam as narrativas; esses locais são reais, geralmente marcados por belezas naturais, as quais o autor objetiva divulgar ao público; os personagens são fortemente religiosos e confiam na providência divina; eles, em algum momento, acabam em uma situação-limite, tendo de sobreviver a perigos com um mínimo de recursos e contando com a ajuda de acasos; e o enredo do romance em geral é otimista, logo o final em geral é feliz.
Bem: em O Prisioneiro da Montanha, o personagem principal, Pedro Uliana, passa pela situação-limite, tendo de sobreviver por quase sete anos preso na Serra dos Aparados, na fronteira do Rio Grande do Sul com Santa Catarina; em Prisioneiros de Vila Velha, a bela viúva Sílvia e seu filho Paulinho são recompensados depois de passar três dias de provações no Parque Estadual de Vila Velha, no Paraná; em Prisioneiros dos Bugres, os membros da família Versteg passam maus bocados nas mãos de uma tribo de índios caigangues e nômades, pelas regiões de São Leopoldo e Caxias do Sul – e, no fim, só um deles sobrevive (e essa história é real!); e, em Prisioneiros do Abismo, os amigos Danilo e Mário passam só alguns dias presos no fundo do Taimbezinho de Cambará do Sul, RS – o bastante para pensarem na vida vivida até ali e assumir um compromisso de mudança.
PRISIONEIROS DO CAMPO mantém várias características da “série”, menos uma. Tem didatismo? Sim. Os locais citados existem, e possuem belezas naturais? Sim. Os personagens são religiosos? Sim. O enredo é otimista e o final é feliz? Sim. Os personagens passam pela situação-limite? Não!
Aí é que reside a diferença: em PRISIONEIROS DO CAMPO, os personagens principais, Celso e Dione, não passam por uma situação-limite, fora do controle deles. Pelo contrário: eles se tornam “prisioneiros” por vontade própria.

UM NOVO MODELO DE ROMANCE E DE VIDA
A história se passa nas cidades de Lagoa Vermelha e Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e passa ainda pelo Uruguai e pela Argentina. E, aqui, Fidélis se preocupa mais em ministrar uma lição aos leitores: que é possível obter bons resultados econômicos através da agropecuária, baseados em relações trabalhistas mais humanitárias e benéficas tanto para os empregados quanto para os patrões, baseadas em ensinamentos cristãos.
Bem, ao menos, na época de Fidélis Barbosa, tais coisas eram possíveis. Ao menos, no meio onde o autor viveu, as coisas “realmente funcionavam” na época do Regime Militar, conforme dizem os “reacionários” de hoje em dia (lembrem-se: a obra é de 1965, o Regime Militar recém havia começado, a “revolução” contra a “ameaça comunista” ainda era bem-vista pela maior parte da população e as medidas de exceção mais rígidas, como o AI-5, ainda não haviam sido decretadas – e, até onde sabemos, Fidélis Barbosa nunca se envolveu com as “esquerdas” combativas daquela época, sequer com as “direitas” radicais; como padre, ele deveria estar alinhado com os setores que não viam a disseminação dos ideais comunistas com bons olhos – em nenhum de seus livros analisados até o momento se observam referências ao Regime, só uma ou outra referência ao fato de o Brasil ter sido salvo da “ameaça comunista” pela citada “revolução” de 1964, de resto, a vida segue normalmente, sem ebulição política).
Bem. O enredo básico de PRISIONEIROS DO CAMPO é a vida e a luta de um casal, Celso e Dione, que decidem modernizar as estruturas do campo, através do exemplo de sua granja-modelo.
A história é dividida em duas partes. A primeira parte compreende desde quando Celso e Dione se conhecem até o final da viagem de ambos, após o casamento, ao Uruguai e à Argentina; e a segunda parte compreende desde quando iniciam a granja-modelo até a construção de um palacete como resultado do trabalho bem-sucedido.
A primeira parte começa em Lagoa Vermelha (cidade onde, aliás, e já devo ter dito aqui, morei dois anos), quando Celso e Dione ainda eram estudantes – ele, do Colégio Duque de Caxias; ela, da Escola Normal Rainha da Paz. E a forma como se conhecem é bastante pitoresca.
Começa quando o professor Odilon, no Duque de Caxias, pede aos alunos uma redação: que os alunos escrevam uma carta de amor. Um dos alunos alega não ter namorada, mas o professor pede para escrever como se tivesse. E justamente o aluno que não tinha namorada é quem escreve a melhor e mais poética redação: Celso Brescianini, então com dezessete anos. E o mais curioso: a garota para quem ele endereça a carta é nomeada Dione. Mais curioso ainda: o professor, que também leciona no Rainha da Paz, conhece uma aluna de lá que se chama, justamente, Dione, e cuja descrição corresponde quase perfeitamente à imagem feita por Celso na carta. Mas Celso alega não conhecer nenhuma Dione, que apenas idealizou a garota.
Ainda assim, o professor resolve dar uma de cupido: resolve mostrar, com autorização de Celso, a carta à aluna, Dione Teixeira da Luz, então com quinze anos. E ela acaba se emocionando. Responde à carta de Celso, e, com o arranjo do professor Odilon e da Madre Luísa Antonieta, diretora do Rainha da Paz, os dois se encontram, se conhecem, e daí, aos poucos, se inicia o namoro, confirmado após uma partida de vôlei entre as alunas do Rainha da Paz contra excursionistas de Passo Fundo – claro que Celso assiste à partida a qual Dione toma parte.
Ambos são filhos de agricultores – os pais de Dione moram em Passo Fundo, os de Celso moram em Lagoa Vermelha, mas são naturais de Sananduva. Mas o que mais impressiona o rapaz é o espírito da garota. Dione é inteligente, de mente aberta e profundamente religiosa. Em uma de suas conversas, ela conta sobre uma viagem que fez ao Uruguai e à Argentina, participando com a família das reuniões de um grupo chamado Movimento Familiar Cristão, que prega, entre outras coisas, a economia solidária. Durante o passeio, ela conhece fazendas-modelos que seguem os princípios da policultura e da economia solidária, e pensa em implantar um modelo parecido no Brasil. E consegue, ainda, incutir em Celso o desejo de participar desse projeto. Tanto que, em um período de férias, o rapaz vai a Passo Fundo junto com a namorada, para conhecer os pais de Dione e participar de reuniões do MFC. No ensejo, participa da festa de aniversário de dezesseis anos da garota.
Cada vez mais, ambos vão se entrosando, partilhando ideias. Outro passeio grande foi com uns amigos para a Granja Dolzan, conhecer seus modelos agropecuários. Dione, inclusive, aplica aos amigos um interessante teste de personalidade (aprenda você também, leitor!).
Mais tarde, é a vez de Celso convidar Dione para passar uns dias na propriedade dos Brescianini. Um dos maiores momentos do passeio se dá quando Dione acompanha Sérgio a uma caçada de pombos carijós – como controle de pragas das plantações. E, sabemos: no tempo de Fidélis Barbosa, não havia nada errado em caçar nos campos, já que a carne dos animais silvestres depois podia ser consumida. Mas ambas as famílias, os Brescianini e os Teixeira, aprovam cada um o namorado dos filhos.
Mas ambos decidem deixar o casamento para depois da conclusão do curso universitário. Celso se forma técnico em agronomia, Dione se forma professora.
E, após o casamento, realizado após um namoro sem obstáculos, ambos passam as núpcias viajando para o sul. Primeiro, viajam para o Uruguai. Conhecem os pontos turísticos de Montevidéu, passam por Maldonado, Sacramento e Punta del Este. Após, descem para Buenos Aires, na Argentina, visitam seus pontos turísticos – principalmente as igrejas. São ciceroneados por um padre, divertem-se assistindo um espetáculo de danças tradicionais. Aproveitam para fazer um pouco de teoria conspiratória – discutem a possibilidade do presidente brasileiro Getúlio Vargas ter sido assassinado em vez de ter se suicidado. Fazem um passeio pela região da Cordilheira dos Andes. E, claro, conhecem os modelos agropecuários tão referidos, a produção de vinho argentino... Se encantam pela cordialidade do povo. E voltam ao Brasil decididos a implantar o tão sonhado novo modelo de trabalho.
A segunda parte do livro começa com o início da concretização do sonho. De volta a Passo Fundo, o casal recebe de seus pais os meios para montar a granja: do pai de Dione, recebem o campo – seis milhões de hectares; e do pai de Celso, equipamentos, dinheiro sob empréstimo, e o capataz da granja, Ricieri Brum, e seus familiares, mulher e três filhos. Apesar de pouco letrado, Ricieri se mostra um empregado inteligente e muito eficiente, a ponto de conquistar a estima dos demais. E o casal já começa a trabalhar.
A fazenda recebe o nome de Fazenda de Fátima. Os trabalhos começam com a construção da casa do casal. Depois, com o plantio de trigo, a cultura inicial. São planejadas até moradias melhores aos empregados. Tudo com bastante planejamento, e o trabalho marcado pelo respeito dos patrões pelos empregados, de modo que estes se sintam satisfeitos – baseado nas encíclicas papais em defesa dos trabalhadores. Um dos carpinteiros, Antonio Bianchin, mais tarde é contratado para trabalhar na granja, ficando depois responsável pelo mercado.
Outro trabalhador citado na narrativa é Simpliciano de Oliveira, gaúcho campeiro responsável pela criação de gado da granja.
O trabalho é incessante, mas compensador. Lazer não falta aos empregados nos finais de semana, que podem se dedicar à caça e à pesca nos arredores. Longe da cidade e suas corrupções, em ambiente idílico, ao canto dos pássaros.
Assim que a casa fica pronta, há festa, e os empregados confraternizam com os patrões. Dione trata os filhos de Ricieri como se fossem seus, a ponto de estes fazerem companhia a ela na cozinha de sua casa. Só uma noite a senhora é tomada por uma saudade da vida citadina – e chega a pedir perdão a Celso por tal ideia.
Uma tragédia marca o trabalho na granja: a morte da filha mais velha de Ricieri, Ana Liési, em um acidente doméstico – o fogo do fogão pega em seu vestido, e seu corpo acaba queimado. Dione acaba se culpando – ela deixara Ana sozinha na casa enquanto colhia ervas para fazer chá. Em homenagem à menina, Dione dedica a capela mais tarde construída na propriedade a Ana Liési.
O plantel de empregados aumenta conforme o trabalho vai evoluindo. As atividades da fazenda se diversificam. Além do trigo, são desenvolvidas outras culturas – não fazendo o que se tinha feito até ali, e o que, de certa forma, se faz até hoje, ou seja, se dedicando à monocultura. Se alguma cultura entra em risco, outra pode cobrir o prejuízo. Além disso, na propriedade, se cria gado de boa raça, Devon, em pastagem artificial. E tal modelo não sofre interferência do governo.
Chega, afinal, a colheita do trigo, com excelentes resultados. Os rendimentos possibilitam a quitação das despesas contraídas, fazer melhoras na propriedade, construir uma escola para os filhos dos empregados, tendo uma das filhas de um empregado, recém-formada, como professora. E tem mais: pela dedicação ao serviço, Celso premia os empregados com uma viagem à praia, uma semana em propriedade construída em Arroio do Silva, Santa Catarina. Quem mais aproveita são os filhos dos empregados, que ganham o privilégio de conhecer o mar. Só houve um conflito: a falta de um padre para rezar missas na capela local. Depois de alguma insistência junto às autoridades eclesiásticas, Celso consegue resolver o problema, levando para lá um padre que inclusive aproveitou para descansar no local.
Os anos passam. A família de Celso e Dione aumenta com o nascimento dos filhos. O modelo implantado se mostra próspero, a escola local se mostra eficiente, os empregados, tanto os antigos quanto os mais novos, estão satisfeitos em trabalhar no local, junto a patrões tão simpáticos e bondosos – eles até convidam empregados de estima para serem padrinhos de batismo dos filhos. Mas aí, chega um difícil momento para aquela nova comunidade: a despedida do capataz Ricieri, disposto a montar uma propriedade nos mesmos moldes, aplicando tudo o que aprendera com o Dr. Celso. A despedida se dá durante uma cerimônia marcando o início da safra do trigo, que contou até com a presença do governador do Rio Grande do Sul da época, Ildo Meneghetti, e outras personalidades políticas e religiosas.
Mas a maior realização do casal Brescianini se dá no fim: a construção de um palacete em Passo Fundo, visando o futuro dos filhos. O palacete se torna o símbolo a prosperidade alcançada através do trabalho no campo.

ASPECTOS TÉCNICOS
Bem. O romance acaba ensinando muita coisa. Mas, infelizmente, pode não se adequar ao pensamento do leitor de hoje. Talvez tanto pela parte técnica, pela falta de grandes intrigas no enredo, que deixam a história meio enfadonha, que podem fazer o leitor se desinteressar pelos ensinamentos. Talvez nem fosse intenção de Fidélis Barbosa produzir um romance folhetinesco, com intrigas, inimigos e tudo; prevalece mesmo a evocação de um passado onde imperavam o respeito às instituições, o bucolismo do interior gaúcho e o amor ao trabalho; e o discurso da necessidade de um novo modelo econômico, baseado em ensinamentos cristãos. Infelizmente, ainda hoje, prevalece o modelo calvinista de trabalho, baseado no individual sobrepujando o coletivo.
A primeira parte do romance foi a que valeu todo o restante – o modo como o casal se conheceu e se entrosou. O restante é mais baseado em descrições, diálogos que soam artificiais, altas doses de pieguice. E a parte didática: o leitor não pode terminar o livro sem ter aprendido algo. Seja as lições da vida no campo, seja um pouco de história e geografia do Uruguai e da Argentina – boa parte do romance é um guia de viagem por esses países. E pode sair coçando a cabeça: seriam as teses lançadas por Fidélis Barbosa, para sustentar a versão do assassinato do presidente Vargas, plausíveis? Praticamente, Fidélis Barbosa, em PRISIONEIROS DO CAMPO, dominou o ofício de escritor. Um livro que vale a pena ser lido e analisado.
PRISIONEIROS DO CAMPO é mais fácil de encontrar nas bibliotecas públicas de sua cidade. Um novo modelo de Brasil é possível: é só os leitores deixarem de lado a desculpa de a poeira dos livros causar alergia, e lerem mais livros de papel. Por hora, este ainda não está disponível em versão eletrônica.
Está dado o recado.

Este texto é uma versão, com alterações, da resenha publicada anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Em breve, um novo livro de Fidélis Barbosa para vocês – e uma nova resenha.
Conheçam a Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges.
E prestigiem a Feira do Livro de Vacaria! De 18 a 22 de outubro, na Praça Daltro Filho!

Até mais!

sábado, 15 de outubro de 2016

Seção Resenha de Livros: PRISIONEIROS DE VILA VELHA

Olá.
Hoje, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública, trago a vocês um novo livro do escritor gaúcho Fidélis Dalcin Barbosa, autor o qual assumi um compromisso pessoal de resgatar e divulgar sua obra, que há anos nenhuma editora se interessou em reeditar. Resgatar antes que venha a apodrecer nas estantes empoeiradas das bibliotecas.
O livro de hoje é mais um da série “prisioneiros”. Não é bem uma série, mas a obra dele, composta por mais de 60 livros, inclui cinco romances com esse nome. Já falei de três: Prisioneiros dos Bugres (1966), O Prisioneiro da Montanha (1961) e Prisioneiros do Abismo (1962). Reparem que não estou seguindo a ordem de datas de publicação originais dos mesmos.
Então, hoje, falo de: PRISIONEIROS DE VILA VELHA.
PRISIONEIROS DE VILA VELHA foi lançado pela primeira vez em 1964, pela editora Lar Católico, de Juiz de Fora, MG. Devo avisar, inicialmente: este romance possui uma segunda versão.
PRISIONEIROS DE VILA VELHA alia várias das características presentes nas obras anteriores já resenhadas aqui: religiosidade (já que Fidélis Barbosa foi padre); didatismo (já que Fidélis Barbosa também foi professor); compromisso em divulgar aos leitores as atrações naturais da região Sul do Brasil (já que Fidélis Barbosa viveu em muitas cidades do Rio Grande do Sul e teve passagens por Paraná e Santa Catarina). E mantendo, nesta obra, várias das características observadas em outros livros da série “prisioneiros”: os cenários das narrativas existem mesmo; em algum momento, os personagens principais acabam em uma situação limite, tendo de sobreviver com poucos recursos, em algum lugar de grandes encantos naturais, mas de acesso difícil ao homem; os personagens são fervorosamente religiosos, e confiam na providência divina – e esta, acaso ou não, não os abandona, aparece na forma de recursos providenciais, como alimentos que aparecem “de repente”; as histórias são, em grande parte, otimistas, e terminam em final feliz.
Um dos maiores diferenciais de PRISIONEIROS DE VILA VELHA é o cenário que muda um pouco: saímos da região serrana do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, e vamos mais para o norte. A história se passa quase que inteiramente no estado do Paraná.
A beleza natural escolhida da vez foi o parque estadual de Vila Velha – não confundir com a cidade de mesmo nome, localizada no estado do Espírito Santo. Esta Vila Velha do Paraná, localizada próxima ao município de Ponta Grossa, e a ele pertencente, é uma reserva natural famosa pelas formações rochosas. As grandes pedras de arenito existentes na região foram esculpidas, há milhares de anos, pelo vento, pelas chuvas e por outras intempéries, e, desse modo, assumem formas pitorescas e muito admiradas pelos visitantes. A mais famosa dessas formações é o “cálice”, justo o que ilustra a capa acima. Mas ainda tem outras formações, como a “cabeça de camelo”, a “proa do navio”, os “castelos medievais”, a “tartaruga”, a “bota”, a “cabeça do índio”... Além das formações rochosas curiosas, Vila Velha ainda tem duas grandes atrações aos seus visitantes: as furnas, um conjunto de grutas, desfiladeiros e nascentes de rios – em uma das furnas, fica as pitorescas rochas que “flutuam”, encostadas uma na outra, sempre dando a impressão de que, a qualquer momento, irão cair; e a Lagoa Dourada, o grande reservatório de água cujas águas ficam mesmo douradas conforme a posição do sol. O livro foi publicado dois anos antes de ser criado oficialmente o Parque, através de decreto governamental, mas possivelmente o local era muito procurado por turistas desde antes, e muito pesquisado pelos geólogos – Fidélis Barbosa se baseou em estudos desses geólogos para compor a narrativa.
A Vila Velha paranaense, a “cidade dos artistas”, como também é conhecida, também esconde lendas populares a respeito de fantasmas, tesouros enterrados por jesuítas e outras lendas. O aspecto místico, ao lado do aspecto científico, também é amplamente utilizado por Fidélis Barbosa para contar os sofrimentos de Sílvia e seu filho Paulinho.
Bão. A versão original da história é curta, de leitura rápida e bem simples. A edição da Editora Lar Católico, em formato de bolso, tem 96 páginas, numa história estruturada em 21 capítulos.
A jovem e bela Sílvia, filha de um hoteleiro catarinense, e que ajudava o pai a administrar o hotel localizado à margem da rodovia BR-2 (atual rodovia BR-116), no início da história, casara com Rafael, um caminhoneiro paranaense honrado e trabalhador que se apaixonara por ela. O casal passa a residir, após o casamento, em uma casa alugada em Curitiba, capital do Paraná, tem um filho, Paulo, e vivem felizes, até que, após três anos de casamento, Rafael acaba morrendo em um acidente de caminhão.
Sílvia fica desesperada com a morte do marido, já que tem o filho para sustentar. Ela passa algum tempo procurando trabalho e ouvindo recusas por causa do filho, até que ela é aceita para trabalhar na casa de Porfírio, um rico fazendeiro curitibano, mas extremamente avarento. De modo que Sílvia, pelos serviços domésticos prestados, recebia apenas comida e moradia, e é repreendida pelo patrão quando dá esmolas a mendigos. Mesmo assim, consegue criar o filho de modo que este cresce forte. A vida na casa de Porfírio seguia com alguma harmonia, até o dia em que, durante a ausência do patrão e sua família, a casa é assaltada. Como Sílvia dormia em um casebre nos fundos do lote, e o patrão não permitia empregados dormindo na casa, Sílvia não teve como impedir o roubo de grandes somas em dinheiro e objetos. Quando Porfírio volta, e vê o resultado do saque, ameaça matar Sílvia e o filho. A moça, já desesperada, resolve fugir enquanto o patrão vai dar parte à polícia. Com apenas uma mala com roupas, um resto de comida e uma Bíblia dentro, e o filho da tiracolo, Sílvia foge de Curitiba pela estrada de Ponta Grossa, de carona com um caminhoneiro. No meio da estrada, a moça e o filho desembarcam para se esconder no mato, certos que Porfírio, de alguma forma, os perseguiria.
Depois de muito andar pelo mato, mãe e filho chegam aos arredores do parque de Vila Velha, que já contava com um grande movimento de turistas. Mas mal podem admirar alguma coisa: precisam ficar escondidos, pois entre os turistas pode estar o Sr. Porfírio.
À noite, Sílvia e Paulinho se abrigam em uma gruta – justo a das pedras suspensas – para passar a noite, tendo apenas roupas da mala como cobertor. E Sílvia acaba tendo um sonho: um índio, se apresentando como protetor de Vila Velha, local onde ninguém poderá estabelecer moradia – quem vier, admirará suas belezas e depois voltará para o lugar de onde veio. Mas, ciente de que Sílvia está, junto com seu filho, passando por sofrimentos, o “bugrinho” lhe faz uma revelação: se ela ficar três noites consecutivas no local, no quarto dia, aparecerá um anjo, que virá em seu auxílio e a conduzirá a uma cidade distante, onde a mulher encontraria um tesouro, se tornaria rainha e seu filho se tornaria príncipe herdeiro. Mesmo sem entender o significado do sonho, e mesmo sem acreditar nas palavras do “bugrinho”, Sílvia decide ficar os três dias no local, dependendo apenas da providência divina e da fé em Deus para ela e o filho sobreviverem, “prisioneiros” que estavam de Vila Velha.
O intenso movimento de turistas na “cidade dos artistas” faz ambos se esconderem no mato, perto de um córrego de água. Depois de algum tempo rezando e lendo uma Bíblia, Sílvia resolve mandar o filho, levando um troquinho de reserva, comprar alguma comida junto aos turistas – mas com alguma cautela: podia ser que seu Porfírio esteja entre eles, à sua procura.
Paulo acaba tendo sorte: perto do local onde os turistas fazem piquenique, ele encontra uma família de São Paulo, que, comovidos com a história que Paulo lhes conta, não apenas oferece ao menino um pouco de comida, como fazem um pacote para que ele leve à mãe – e sem cobrar nada. Sílvia mal consegue conter as lágrimas pela providência divina não a abandonar.
Após o almoço, o menino resolve voltar para visitar Vila Velha, mesmo tendo de deixar a mãe só, escondida, pelo medo do patrão. Paulo acaba se juntando a uma excursão de um colégio católico – alunas do Colégio Sacre Coeur de Marie, de Belo Horizonte, MG – e, em companhia das mocinhas, que se afeiçoaram ao menino e seu sofrimento, aprende, com as religiosas que acompanham as alunas, várias coisas a respeito de Vila Velha e seus "monumentos". Uma das irmãs da excursão faz a explicação científica dos fenômenos locais. E é possível que as tais alunas fossem conhecidas do próprio Fidélis Barbosa e tenham, em algum momento, pedido a ele para figurarem como personagens de algum livro dele, pois elas têm até o nome completo explicitado.
Após a visita, e de ganhar um pacote de comida das alunas, Paulo se despede, já saudoso das simpáticas meninas. E, à noite, Sílvia acaba tendo o mesmo sonho, com o "bugrinho".
No dia seguinte, Paulo volta a Vila Velha, deixando a mãe mais uma vez sozinha. Já está confiante, inclusive, para servir de cicerone – e é o que ele faz com um grupo de estudantes rapazes de Porto Alegre, colégio Nossa Senhora das Dores, apesar de estes já terem um caboclo, morador dos arredores, como guia. O caboclo chega a contar, inclusive, sobre um tesouro enterrado no local – as narrativas a respeito de fantasmas existentes no local se contrapõem à parte científica explicada pela irmã do Sacre Coeur no dia anterior, e acaba batendo, de certa forma, com o sonho de Sílvia – o que, posteriormente, após ouvir pela boca de Paulinho, dá à mulher mais confiança para acreditar na profecia do “bugrinho” de seu sonho.
Desta vez, o menino vai mais além: de carona com os estudantes em seu ônibus (com a autorização da mãe), Paulo visita a Lagoa Dourada, outra beleza natural dos arredores, e as Furnas que alimentam as águas da lagoa. E Paulo volta junto à mãe, em segurança.
Só no terceiro dia, pela manhã, Sílvia aceita visitar Vila Velha em companhia do filho, admirar os monumentos de pedra. E retorna ao esconderijo antes de começar o fluxo de turistas. Mas, nesse terceiro dia, Sílvia e Paulo acabam encontrando o "anjo": a menina Liane, de dez anos. Ela está no local em companhia do pai, Gabriel, um grande cafeicultor da cidade de Londrina, PR. Quando Paulo vai pedir comida junto aos turistas, encontra a menina, que, solitária desde a morte da mãe, se afeiçoa ao menino. E insiste não apenas para que o pai leve mãe e filho para Londrina, com eles, como os acolha em sua casa. No caminho, a família ainda aproveita para visitar a catedral de Nossa Senhora de Vila Velha, em Ponta Grossa, que fica no caminho.
Logo que é hospedada no palacete de Gabriel, Sílvia acaba despertando o ciúme de Rosa e Ângela, as duas criadas mulatas do cafeicultor, certas de que a mulher iria ficar na casa. Mas o patrão garante que ela só vai ficar por alguns dias, até arranjar um trabalho. Enquanto isso, Liane faz de Paulo um companheiro de brincadeiras.
Mas, assim que Gabriel consegue arranjar um serviço para Sílvia, ela e o filho tem de ir embora, o que acaba deixando Liane triste – já que alimentava a esperança de que Paulo se torne seu irmãozinho – e doente. Adoece gravemente, e, em delírios de febre, chama por Paulo e por Sílvia. No fim, o remédio foi buscar a mulher para ver a menina. Mas Sílvia acaba ficando um pouco mais: ela identifica a doença de Liane – varíola, uma doença grave, mas, felizmente, hoje já extinta – e, como já tratara do mesmo mal no filho, fica tratando da menina até ela sarar.
Mas não para por aí. Liane, restabelecida, pede ao pai que Sílvia se torne sua mãe. Gabriel já acreditava ter feito sua parte acolhendo Sílvia em Vila Velha, mas, para atender o desejo da filha, decide conquistar a humilde mulher – apesar de ainda estar preso à falecida esposa. Dá a Sílvia um vestido de presente, começa a sair com ela, testando a opinião pública. E, no fim, se apaixona pela agora elegante Sílvia (e é correspondido), e ambos acabam se casando, realizando assim a profecia do "bugrinho" – Sílvia se torna “rainha”, e Paulinho, o príncipe herdeiro. Mesmo levando uma vida agora regalada, Sílvia nunca deixa a fé de lado, e promove ações de caridade em agradecimento a Deus pela boa ventura.

A história é marcada pela intensa religiosidade, pelos acasos convenientes mais ao autor que aos personagens, da pieguice da narrativa (dê um desconto para o final da história), pelos muitos “buracos” existentes na história, os quais o leitor pode preencher com sua imaginação... e da necessidade de propagandear mais uma atração turística natural. Só por este objetivo, PRISIONEIROS DE VILA VELHA já se sustenta. Mas a história não ficaria ruim adaptada para um filme, ou mesmo na forma de uma minissérie televisiva.
Mas não fica por aí, senhores.
Tempos depois, o escritor lança uma nova edição do livro, revista e ampliada – a capa acima é da edição de 1994, publicada pela Tipografia Sananduva, de Sananduva, RS. De 21 capítulos, a história passa a ter 30. As ampliações incluem: novos capítulos iniciais, contando com mais detalhes a história do motorista Rafael, detalhando seu namoro com Sílvia no Hotel Paganella, com a plena aceitação das famílias de ambas as partes, dando sobrenome aos personagens – Rafael de Oliveira e Sílvia Paganella – e dando um jeito de incluir os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul na narrativa, incluindo os fatos da enchente do Passo do Socorro de agosto de 1965, que destruiu tanto a antiga ponte sobre o Rio Pelotas, entre Vacaria e Lages, como a ponte nova que fora construída ali próximo. Uma nova ponte seria inaugurada em 1966. Com relação à primeira edição, tais capítulos novos, dada a artificialidade dos diálogos entre os personagens, acaba soando supérfluos – a história já se sustentava com uma narrativa curta e “assim, por cima”, da vida do caminhoneiro Rafael, antes de sua morte.
As ampliações incluem ainda novos trechos enxertados, mas que não consertam os buracos existentes na primeira edição, como um provável destino para Porfírio, ou os motivos da afeição de Liane para com Paulinho. Mas tem, sim, algo que “agregou valor” ao conjunto: um novo capítulo final, mostrando o futuro de Paulinho e Liane – ambos fazem curso universitário, ele de geologia, ela de enfermagem – e ambos acabam se casando. Fidélis Barbosa ainda aproveita o ensejo para fazer um "merchandising" próprio, falando rapidamente de um de seus livros, o Prisioneiros do Abismo.
Oh, não: sem querer, acabei, nesta resenha, entregando o final do livro! Não, mentira, foi de propósito. Para falar das mudanças entre as edições, eu tive, sim, de fazer isso. Mas isso não tira dos meus 17 leitores uma obrigação em procurar e ler este livro. Merece a versão para cinema ou TV? Merece. É um bom guia para visitar Vila Velha, no Paraná? Sim. É o retrato de uma época que não volta mais? É.
E, vou repetir algo que disse antes: não me venham com a desculpa que a poeira de livros velhos lhes dá alergia. Visitem a biblioteca de sua cidade! Ao menos, até resolverem lançar uma versão deste livro para meios eletrônicos, o que hoje está muito em moda.

Esta resenha é uma versão, com alterações, do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e confiram.
Os títulos aqui resenhados estão à disposição na Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges, de Vacaria.
Em breve, um novo livro de Fidélis Dalcin Barbosa para vocês. E uma nova resenha.

Até mais!

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Seção Resenha de Livros: PRISIONEIROS DO ABISMO

Olá.
Hoje, em mais uma colaboração para o blog da Biblioteca Municipal, trago mais um livro de Fidélis Dalcin Barbosa, para rememorar o escritor, ex-padre e pesquisador gaúcho. E vale a pena rememorar antes que ele acabe esquecido por completo.
Fidélis Dalcin Barbosa tem, entre seus mais de 60 livros, cinco com o título “Prisioneiros”. Já falei de dois desses livros: Prisioneiros dos Bugres e O Prisioneiro da Montanha. Hoje, falo de mais um com o título: PRISIONEIROS DO ABISMO. Um livro infanto-juvenil mais “moderno”, ao menos para sua época.
PRISIONEIROS DO ABISMO foi publicado pela primeira vez em 1962, pela editora EST (Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes), de Porto Alegre, RS. Segundo informações da internet, a segunda edição do livro foi lançada pela editora Paulinas, de São Paulo. A capa acima, do exemplar disponível na Biblioteca, é da terceira edição do romance, lançada em 1995 pela EST.
PRISIONEIROS DO ABISMO é um romance bastante rápido – 30 breves capítulos distribuídos em 87 páginas – e que alia tudo o que o escritor mais utilizava em sua obra: didatismo, com informações geográficas, históricas e folclóricas a rodo ao longo do texto; desejo de divulgar aos leitores os atrativos do Rio Grande do Sul, bem como suas belezas naturais; e um pouco de religião e de moralismo. Mas com uma pequena dose de controvérsia – o que poderia ser uma boa ideia em 1962 pode não ser nos dias de hoje, com tantos movimentos pela conservação ambiental.
Bem. Através da saga ficcional de dois amigos, Fidélis Barbosa se propõe a apresentar aos leitores os atrativos turísticos da serra gaúcha, com maior destaque para o Taimbezinho, o maior conjunto de cânions (paredões de pedra) da América Latina.
O Taimbezinho se localiza no município de Cambará do Sul, RS, no Parque Nacional dos Aparados – cenário de outro romance de Fidélis Barbosa já resenhado aqui, O Prisioneiro da Montanha. É possível comparar o conjunto do Taimbezinho ao Grand Canyon, do estado do Arizona, nos Estados Unidos, mas com mais diferenças: enquanto o Grand Canyon foi formado pela ação erosiva das águas do Rio Colorado e se localiza em uma região seca e árida, o Taimbezinho foi formado praticamente de uma vez só, em uma “gargalhada telúrica”, localiza-se em uma região de umidade mais constante – graças à sua localização mais próxima ao mar – e contém uma ampla vegetação. Hoje, é um ponto turístico requisitado na região da Serra Gaúcha, fronteira com Santa Catarina.
Na época da publicação do romance, o Taimbezinho não era tão visitado, nem contava com uma infraestrutura que possibilitasse o turismo. Hoje, temos estradas de acesso – não faz muito tempo, por exemplo, que foi concluída a construção da rodovia de ligação entre Bom Jesus, RS, e Araranguá, SC – e infraestrutura. Essa questão, da infraestrutura turística, é um dos pontos controversos do romance: Fidélis Barbosa defendia a montagem de mais hotéis e restaurantes na região para uma maior visitação de turistas, que nem pernoitar podiam, visitavam o local à tarde e iam embora logo depois, e corriam o risco de perder o espetáculo da natureza nos melhores horários da manhã. Hoje, para uma melhor conservação do meio-ambiente, e por consequência do local referido, uma estrutura turística como a descrita por Barbosa soa como predatismo, ainda mais com o péssimo hábito de muitos turistas de deixar lixo nos locais de visitação.
De todo modo, o Taimbezinho também atrai aventureiros e esportistas, que se arriscam para descer os cânions e apreciar as belezas naturais. E não foram poucos os acidentes ocorridos na região, casos de gente que acabou se perdendo e/ou morrendo na região (o texto de orelha da presente edição do livro narra alguns desses casos). Certos atrativos valem mais a pena por não serem isentos de riscos e possibilidades de aventuras.
Bão. Os personagens do romance são os amigos Danilo Vedana e Mário Lacerda, ambos quase adultos e estudantes de um colégio de Porto Alegre, no ano de 1961. Mário é moço da cidade, que passa as férias no litoral; e Danilo, filho do dono de uma serraria de Bom Jesus, costuma passar as férias na Serra Gaúcha, ajudando o pai e se dedicando à caça. Um dia, Danilo, ao contar para Mário a respeito de suas últimas férias, acende em Mário o desejo de conhecer o Taimbezinho. Ambos concordam em visitar a região na semana antes do início das aulas – e, na ocasião, estava se realizando mais uma Festa da Uva, de Caxias do Sul. Ambos, em um sábado, de carona com o pai de Danilo, dão uma passada em Caxias do Sul, mas não dá para ver muita coisa da Festa da Uva por conta da chuva. Na segunda-feira, percorrendo a BR-2 – hoje BR-116 – e passado por São Marcos, Vacaria e Capão do Tigre, chegam a Bom Jesus, e, depois, os dois rapazes partem para explorar a região serrana, sozinhos, no jipe. Danilo, moço de sítio, experimentado em explorações, amante do saber e fortemente religioso, como bom descendente de italianos, sempre dando informações ao deslumbrado Mário, sempre embasbacado com a paisagem. Mas a viagem esconde ainda outro objetivo de Danilo: que Mário se retrate da vidinha desregrada que ele sabe que leva por conta de más companhias.
A primeira metade do livro é praticamente um guia turístico escrito (pena que não tenha ilustrações para apoiar o leitor desavisado) e dialogado sobre a Serra Gaúcha, a Região dos Aparados e o Taimbezinho. Só na segunda metade, ali pelo capítulo 19, que ocorre o clímax da história, e o título acaba se justificando. A situação vivida por Mário e Danilo em PRISIONEIROS DO ABISMO acaba, em certo momento, replicando a vivida pelo personagem Pedro Uliana em O Prisioneiro da Montanha.
De volta ao enredo. Danilo e Mário percorrem a fronteira do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Visitam uma serraria e presenciam uma derrubada de pinheiros; visitam uma gruta com ossadas de índios; passam pelo litoral, entre Araranguá, na Zona Carbonífera de Santa Catarina, e Torres, no RS – e aproveitando o ensejo para visitar as Furnas do Sombrio, em Sombrio, SC; e, depois, percorrem a Serra do Pinto em direção a Cambará do Sul e ao Taimbezinho. Um dos episódios pitorescos da viagem ocorre quando o jipe fica com defeito e para na estrada, sendo socorrido por um caminhoneiro; bastou Danilo fazer uma oração para que o jipe voltasse a funcionar, e se evitasse que ele fosse para a oficina! A fé e o otimismo de Danilo serão os grandes sustentáculos, para o episódio que virá a seguir.
Chegando no Taimbezinho, os dois amigos resolvem explorar o local, e descem pelo abismo. No entanto, ocorre um imprevisto: uma forte chuva provoca uma forte enxurrada no meio do caminho percorrido pelos rapazes, mas, felizmente, ambos conseguem abrigo entre as pedras. No entanto, o alívio logo se transforma em pesadelo – ao menos para Mário. A água demora a baixar, impossibilitando a saída do local. Resta a ambos, até ficar tudo favorável para a saída do vale, esperar. Entretanto, leva cerca de cinco dias até que possam tentar sair do vale. Enquanto isso, precisam inicialmente se arranjar no abrigo improvisado. Depois de acabarem com as provisões de seu farnel, Danilo aproveita a calma das águas de um poço para pescar, com bons resultados. Mais tarde, um boi acaba caindo no precipício, bem no local onde os rapazes estão. Felizmente, sua carne e couro ficaram aproveitáveis apesar da queda nas pedras que praticamente o fez em pedaços.
Enquanto isso, Mário e Danilo conversam, discutem, brigam até. Mas Danilo, que em momento algum perdeu a fé nem o otimismo, consegue o que queria: que Mário aproveitasse a situação semi-kafkiana para fazer um exame de consciência sobre sua vida até ali – e tomasse a resolução de mudar seu modo de viver para uma vida mais regrada e santificada. Tudo depois de constatar que a fé de Danilo estava praticamente operando milagres naquele local. Nem mesmo a queda do boi no local deixa dúvidas. E, quando tudo parece favorável, é o momento para subir e sair dali...
E, antes do retorno para Porto Alegre, a viagem ainda prossegue por Canela e Gramado, cidades da Serra Gaúcha.
Bem. O livro cumpre o papel proposto por Fidélis Barbosa: é um guia turístico. Descreve em minúcias os atrativos da Serra Gaúcha e de Santa Catarina, com informações sobre a fauna, a flora, a geologia, a história... e alguns causos humorísticos dispersos na narrativa. O conhecimento de Fidélis Barbosa de sua região é um ponto forte, preocupando-se tanto com o público leitor do Rio Grande do Sul como o de outras regiões do Brasil.
O problema reside, mesmo, nos diálogos entre os personagens, que acabam soando artificiais. Embora a personalidade e as motivações dos personagens sejam construídos através de suas ações na narrativa, Danilo e Mário não são exatamente tipos cativantes, daqueles que a gente considera a ponto de parecerem reais. O argumento e a construção da história cumprem meramente o papel de apresentar o cenário. A narrativa corre preguiçosamente, sem muita pressa de chegar logo à parte emocionante, em um tom de texto escolar. A história só começa a ficar mais interessante por volta do capítulo 19, com a descida dos personagens no Taimbezinho. Até mesmo algumas informações sobre técnicas de como sobreviver no mato, já utilizadas no já citado Prisioneiro da Montanha estão presentes. A diferença fica mesmo no deslocamento temporal – enquanto PRISIONEIROS DO ABISMO se passa em 1961, Prisioneiro da Montanha se passa no período entre 1902 e 1919.
Mesmo o argumento moralizante proposto por Barbosa não é muito convincente. Mas é preciso compreender, ele foi padre – e, na época em que o romance foi escrito, o conceito de moralidade era diferente do de hoje. Era mais fácil pregar aos jovens sentimentos de religiosidade, de ética e de respeito à autoridade. O sentimento de conservação ambiental também era outro – Fidélis Barbosa chega, em certo ponto, a propor, indiretamente, a comercialização da lama medicinal presente nas Furnas do Sombrio! Questionável, não?
Além do mais, o romance está praticamente datado. Ao menos, sua leitura descreve sua época, quando as estradas de acesso aos locais descritos ainda era de pedra, e o sentimento de conservação ambiental não era tão forte – assim como o progresso. As coisas mudaram muito desde 1962. Mas o Taimbezinho ainda pode ser visitado. Só tomem cuidado com os paredões de pedra!
O livro tem prefácio de Mário Gardelin. E talvez merecesse, segundo as palavras do escritor Mansueto Bernardi (contemporâneo de Fidélis Barbosa), uma adaptação para o cinema, ou para a TV. Já faz uma boa propaganda da Serra Gaúcha. Se deu certo com a minissérie A Casa das Sete Mulheres, por que não com PRISIONEIROS DO ABISMO?

Este texto é uma versão revista, e com leves alterações, da resenha publicada anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem o ensejo e visitem.
E visitem também a Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges. Todos os títulos que aparecem neste blog estão disponíveis em seu acervo.
Em breve, mais um livro de Fidélis Barbosa para vocês.

Até mais!

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Seção Resenha de Livros: O PRISIONEIRO DA MONTANHA

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, com mais uma Seção Resenha de Livros, trazendo mais informações a respeito de obras disponíveis na Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges, de Vacaria, RS.
Na última resenha, escrevi a respeito do escritor gaúcho Fidélis Dalcin Barbosa (1915 – 1997) – ex-padre, pesquisador, prosador.
Pois, meio que resolvi fazer um resgate, através deste blog, de sua obra literária. Fidélis Barbosa andava meio esquecido pelos próprios conterrâneos, então esta pequena iniciativa destina-se a, pelo menos, tornar esse escritor conhecido das novas gerações, e relembrado pelos mais velhos. Se seus livros porventura voltarem a ser procurados, maiores são as chances de serem republicados.
Hoje, então, vou falar de um de seus primeiros livros publicados: O PRISIONEIRO DA MONTANHA. Uma novela juvenil inteiramente sul-brasileira.
O PRISIONEIRO DA MONTANHA foi publicado originalmente em 1961. Foi um dos primeiros livros de Fidélis Barbosa. Oficialmente, seu primeiro livro foi o livro de contos Semblantes de Pioneiros, também de 1961, seguindo, ainda no mesmo ano, pelo também livro de contos O Primeiro Beijo. Sim: foram três livros publicados em 1961.
O PRISIONEIRO DA MONTANHA teve sua primeira edição pela Editora Flamboyant, de São Paulo. A tiragem inicial, de seis mil cópias, esgotou-se em poucos meses, devido às boas críticas recebidas na época. As edições seguintes chegaram a dez mil exemplares, depois três, depois dois mil exemplares. A sétima edição saiu pelas Edições Loyola, de São Paulo, com três mil exemplares. E, a partir da oitava edição, o livro passou a sair pela editora EST, de Porto Alegre, RS. A capa acima é justamente da oitava edição, lançada em 1997, pela EST.
Com 80 páginas (sem contar capa), e estruturado em 27 capítulos, O PRISIONEIRO DA MONTANHA é um romance infanto-juvenil de fácil leitura e compreensão da ação da história, que é praticamente uma recriação do clássico Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, no cenário da fronteira do Rio Grande do Sul com Santa Catarina – em vez de ilha, temos as montanhas da região da Serra.
Com elementos de típico folhetim televisivo, sob medida para cinema e televisão – com final feliz e tudo – O PRISIONEIRO DA MONTANHA é ambientado nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A intenção do autor é levar ao leitor, com descrições riquíssimas, as belezas da região dos Aparados da Serra, a grande cadeia de montanhas e cânions existentes na fronteira dos dois estados sulinos. Até hoje, os Aparados são um importante ponto de turismo ecológico do Rio Grande do Sul – a região pode ser acessada através dos municípios de Cambará do Sul e São José dos Ausentes.
Fazia pouco tempo que o Parque Ecológico dos Aparados da Serra havia sido criado – em 1959, para ser mais exato – quando Fidélis Barbosa escreveu o romance, que incorpora, além do cenário idílico, elementos e aspectos descritivos da imigração italiana no sul brasileiro, e sua forte afeição ao trabalho, lutando contra adversidades. Há também elementos que ele usa largamente nos livros seguintes, como uma descrição dos índios do sul, e seus conflitos com os imigrantes europeus que instalaram-se na região – entre eles, no que diz respeito às suas concepções de trabalho. Isso tudo ajuda a caracterizar melhor o herói da trama, Pedro Uliana, que narra em primeira pessoa as suas aventuras.
A história começa em 1902, no Sudeste Catarinense, e vai até 1919, em um trajeto que, antes de passar pelos Aparados da Serra, passa pela cidade de Tubarão, em Santa Catarina.
Pedro Uliana é filho de imigrantes italianos de Nova Treviso, região de Urussanga, no Sudeste catarinense. Ainda jovem, ele começa a incorporar o espírito aventureiro, ao tomar parte nas expedições bugreiras, de caça aos índios hostis – os botocudos e caigangues, ou “bugres” – que invadiam, assaltavam propriedades rurais e, não raro, faziam vítimas fatais. A família de Pedro fora vítima de uma incursão de “bugres”, logo no início do livro, que por pouco não vitimou suas irmãs.
Durante essas expedições, Pedro toma gosto pela vida de aventuras pela floresta, mas não dura muito tempo: o pai de Pedro resolve mandar o filho para estudar em Tubarão, na esperança de vê-lo se tornar “doutor”. A princípio, Pedro fica contrariado, mas, com o tempo, se afeiçoa aos estudos no Colégio São José das Irmãs da Divina Providência. Lê romances célebres com gosto, sendo seu preferido o Robinson Crusoé de Defoe.
E, mais que isso: arranja uma namorada na cidade. Ele, que trabalhava em um armazém para pagar a pensão, apaixona-se por Maria Helena, filha do tabelião local – logo, uma moça de condição social superior. Mas o rapaz é correspondido em sua paixão, e a moça, apesar de muito disputada pelos rapazes locais, declara a Pedro que nunca casaria com outro rapaz a não ser ele. E, como prova de amor, Pedro promete trazer a Maria Helena – que gostava de ouvir as narrativas de Pedro a respeito de sua vida de aventureiro – uma pele de onça caçada por ele.
O sofrimento de Pedro começa por causa de um rival, Hélio, que também disputava a atenção de Maria Helena. Durante uma festa na vila, ocorre um crime, e Pedro, por conta das maquinações de Hélio, acaba acusado, apesar de ser inocente, e preso. Mas consegue fugir, graças a um dos guardas da prisão, que conhecia sua fama de gente de bem. E foge de Tubarão, de volta a Nova Treviso, mas apenas brevemente, para rever a família: Pedro resolve se refugiar no mato, temendo a perseguição da polícia. E sua andança para se esconder chega até a fronteira do Rio Grande do Sul, na região dos Aparados.
Pedro refugia-se no ponto mais alto dos Aparados – o monte do Realengo. Ali, em meio à esfuziante paisagem natural, encontra abrigo em um galpão abandonado, um refúgio para os criadores de gado. Aliás, perto dele estão algumas cabeças de gado, esquecidas por um criador de gado dos arredores. Porém, uma forte tormenta cai, naquela noite, na região, e uma enxurrada acaba cortando o acesso de Pedro para a base da montanha. O rapaz se vê, de repente, preso no monte, junto com as cabeças de gado. Isolado do restante do mundo, como Robinson Crusoé. E, por consequência, precisa prover sua sobrevivência no local, sujeito a chuva, nevoeiros, feras. Mas ele acaba se saindo bem.
Reunindo seus conhecimentos de mato quando foi bugreiro, Pedro, de início, provém seu sustento através da caça de aves da região e de água de um manancial ali próximo. Em princípio, sem armas, mas, depois, consegue fazer para si um arco e algumas flechas. Com um único grão de milho, achado em seu paletó, Pedro consegue fazer uma plantação que complementa preciosamente sua dieta – mas a espera pela safra é penosa. O pior é a falta de sal para temperar a carne de caça.
Um dia, ele presencia uma luta entre um dos touros que ficou preso com ele, e uma onça – popularmente conhecida como “tigre” no Rio Grande do Sul. O touro acaba levando a melhor – e Pedro aproveita a pele da onça morta para fazer roupas para si. Depois, cria os filhotinhos abandonados da onça. Depois que crescem, os “tigres” criados em cercado acabam sacrificados. Um deles fornece a pele prometida para a amada Maria Helena – que, assim como a família do rapaz, não sai dos pensamentos de Pedro.
Ali, na montanha, isolado do mundo, Pedro provém sua vida da melhor maneira, por tentativa e erro: aumenta seu abrigo, construindo uma casinha e um forno com tijolos fabricados por ele mesmo; cria animais – incluindo o gado que ficou preso com ele na montanha, que lhe fornece leite, com o qual consegue fazer até queijo; faz utensílios de cozinha com barro e madeira; conta o tempo através de marcações em pedaços de madeira; cozinha pães e até bolos com o milho que cresce em sua “propriedade”; faz orações para uma Nossa Senhora de madeira que ele mesmo esculpe em madeira – e, como bom imigrante italiano religioso, agradece a essa imagem pela maioria de seus sucessos. Vive, desse modo, como um Robinson Crusoé gaúcho, tendo apenas o trabalho e a paisagem idílica como forma de se entreter.
E, mesmo no início do século XX, de uma forma geral, não havia mesmo muita opção para uma pessoa se entreter no Rio Grande do Sul rural, já que os primeiros aparelhos de som – toca-discos, gramofones e aparelhos de rádio – não haviam sido popularizados, que dizer da existência, na época, de televisão e computadores, crianças.
Até que, um dia, Pedro começa a ter sonhos frequentes com um estancieiro gaúcho, que revela ao rapaz a existência de um tesouro escondido ali próximo. O sonho o incomoda bastante, até que ele decide ir ao local indicado pelo sonho. E acaba encontrando, perto da fonte de água, uma fortuna em ouro, provavelmente escondida durante uma das guerras ocorridas no Rio Grande. Tudo o que restará a Pedro, agora, é arranjar um jeito de descer o monte, abandonar seu pequeno paraíso e os animais que fizeram-lhe companhia todo esse tempo. É penoso, mas o momento lhes é favorável.
Conseguirá Pedro sair da montanha? Conseguirá ele rever sua família? E Maria Helena, terá ela se casado ou ainda estará esperando pelo amado?
A narrativa de Fidélis Barbosa é meio arrastada no início, como que a preocupação do autor fosse a de não perder muito tempo e ir logo para o clímax. Por isso, a impressão de que os capítulos iniciais da saga de Pedro, bem como a parte passada em Tubarão, passam muito rápido, antes do leitor poder assimilar os acontecimentos. O grosso da narrativa concentra-se na vida de Pedro na montanha, onde os acontecimentos são fortemente detalhados e minuciosamente descritos, com um bom domínio do suspense. Não há de se esperar mais do final que um final feliz, mas não hei de adiantar aqui o que acontece.
O estilo narrativo, com relação ao que temos hoje, parece antiquado, com as descrições preciosistas e o didatismo – Fidélis Barbosa/Pedro Uliana se preocupou, inclusive, a explicar pequenos detalhes da história, como os costumes dos “bugres”, a origem do nome da cidade de Tubarão e as técnicas artesanais de fabricação de queijo e de fermento para pão. Devemos lembrar que o livro foi escrito nos anos 1960, e as regras de literatura da época eram diferentes das de hoje. Mas O PRISIONEIRO DA MONTANHA vale um estudo. Vale uma lida. Vale como um primeiro contato com os “clássicos”.
E vale ainda uma adaptação para o cinema, ou para a televisão. A narrativa, apesar de previsível, é sob medida para a mídia visual. E uma boa propaganda para a promoção da região dos Aparados da Serra.
E, como Fidélis Barbosa também era professor, o livro ainda inclui um roteiro de trabalho – perguntas para os alunos do Ensino Fundamental a respeito do livro, ao melhor estilo dos suplementos de trabalho dos livros das editoras Ática e Moderna – e um glossário, de termos regionalistas do sul brasileiro, visando ao público de outras regiões do Brasil, se é que o livro também chegou a alcançar outras regiões do país. Na contracapa, ainda tem fotos da região dos Aparados.
É mais fácil procurar O PRISIONEIRO DA MONTANHA em sebos e bibliotecas. Na Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges, por exemplo, há exemplares deste livro.
Não venha com a desculpa de que a poeira de livros velhos te dá alergia, criança: leia mais livros de papel.

Esta resenha é uma versão, com alterações, da resenha publicada no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/), meu blog pessoal.
Em breve, um novo livro. Enquanto isso, visitem a Biblioteca!

Até mais!