Olá.
Aqui
é o Rafael novamente.
Hoje,
em nova colaboração para o Blog da Biblioteca, voltamos a falar da obra do
escritor gaúcho Fidélis Dalcin Barbosa. O livro de hoje foge um pouco do padrão
observado em outras obras do autor, em algumas de suas características
observadas até o momento.
O
livro de hoje se chama PRISIONEIROS DO CAMPO.
PROBLEMAS NO EXEMPLAR DISPONÍVEL
PRISIONEIROS
DO CAMPO, que posteriormente recebeu o subtítulo de A Epopeia dos Trigais de Passo Fundo, teve sua primeira edição
lançada em 1965, pela editora São Miguel, de Caxias do Sul, RS. O exemplar
disponível na biblioteca, já preciso avisar, está em estado de conservação
regular, a julgar pela foto da capa mal restaurada (acima). Esta edição tem formato
bolso e 186 páginas.
Há
outra edição do livro, pela Editora EST (Escola Superior de Teologia São
Lourenço de Brindes), de Porto Alegre, RS, em formato brochura e 175 páginas (abaixo) –
é a edição mais fácil de encontrar na internet.
O CICLO DOS PRISIONEIROS
Bem.
De todo modo, PRISIONEIROS DO CAMPO, apesar de também levar o título de Prisioneiros, foge um pouco do padrão
estabelecido pelos outros romances do autor com esse título. Já falei, aqui, de
quatro deles: O Prisioneiro da Montanha (1961),
Prisioneiros do Abismo (1962), Prisioneiros de Vila Velha (1964) e Prisioneiros dos Bugres (1966) – não
nessa ordem.
Os
romances da “série” Prisioneiros seguem
como padrão: o uso de didatismo, com inserção de informações geográficas,
históricas e científicas dos locais onde se passam as narrativas; esses locais
são reais, geralmente marcados por belezas naturais, as quais o autor objetiva
divulgar ao público; os personagens são fortemente religiosos e confiam na
providência divina; eles, em algum momento, acabam em uma situação-limite, tendo
de sobreviver a perigos com um mínimo de recursos e contando com a ajuda de
acasos; e o enredo do romance em geral é otimista, logo o final em geral é
feliz.
Bem:
em O Prisioneiro da Montanha, o
personagem principal, Pedro Uliana, passa pela situação-limite, tendo de
sobreviver por quase sete anos preso na Serra dos Aparados, na fronteira do Rio
Grande do Sul com Santa Catarina; em Prisioneiros
de Vila Velha, a bela viúva Sílvia e seu filho Paulinho são recompensados
depois de passar três dias de provações no Parque Estadual de Vila Velha, no
Paraná; em Prisioneiros dos Bugres, os
membros da família Versteg passam maus bocados nas mãos de uma tribo de índios
caigangues e nômades, pelas regiões de São Leopoldo e Caxias do Sul – e, no
fim, só um deles sobrevive (e essa história é real!); e, em Prisioneiros do Abismo, os amigos Danilo
e Mário passam só alguns dias presos no fundo do Taimbezinho de Cambará do Sul,
RS – o bastante para pensarem na vida vivida até ali e assumir um compromisso
de mudança.
PRISIONEIROS
DO CAMPO mantém várias características da “série”, menos uma. Tem didatismo?
Sim. Os locais citados existem, e possuem belezas naturais? Sim. Os personagens
são religiosos? Sim. O enredo é otimista e o final é feliz? Sim. Os personagens
passam pela situação-limite? Não!
Aí é
que reside a diferença: em PRISIONEIROS DO CAMPO, os personagens principais,
Celso e Dione, não passam por uma situação-limite, fora do controle deles. Pelo
contrário: eles se tornam “prisioneiros” por vontade própria.
UM NOVO MODELO DE ROMANCE E DE VIDA
A
história se passa nas cidades de Lagoa Vermelha e Passo Fundo, no Rio Grande do
Sul, e passa ainda pelo Uruguai e pela Argentina. E, aqui, Fidélis se preocupa
mais em ministrar uma lição aos leitores: que é possível obter bons resultados
econômicos através da agropecuária, baseados em relações trabalhistas mais
humanitárias e benéficas tanto para os empregados quanto para os patrões,
baseadas em ensinamentos cristãos.
Bem,
ao menos, na época de Fidélis Barbosa, tais coisas eram possíveis. Ao menos, no
meio onde o autor viveu, as coisas “realmente funcionavam” na época do Regime
Militar, conforme dizem os “reacionários” de hoje em dia (lembrem-se: a obra é
de 1965, o Regime Militar recém havia começado, a “revolução” contra a “ameaça
comunista” ainda era bem-vista pela maior parte da população e as medidas de
exceção mais rígidas, como o AI-5, ainda não haviam sido decretadas – e, até
onde sabemos, Fidélis Barbosa nunca se envolveu com as “esquerdas” combativas
daquela época, sequer com as “direitas” radicais; como padre, ele deveria estar
alinhado com os setores que não viam a disseminação dos ideais comunistas com
bons olhos – em nenhum de seus livros analisados até o momento se observam
referências ao Regime, só uma ou outra referência ao fato de o Brasil ter sido
salvo da “ameaça comunista” pela citada “revolução” de 1964, de resto, a vida
segue normalmente, sem ebulição política).
Bem.
O enredo básico de PRISIONEIROS DO CAMPO é a vida e a luta de um casal, Celso e
Dione, que decidem modernizar as estruturas do campo, através do exemplo de sua
granja-modelo.
A
história é dividida em duas partes. A primeira parte compreende desde quando
Celso e Dione se conhecem até o final da viagem de ambos, após o casamento, ao
Uruguai e à Argentina; e a segunda parte compreende desde quando iniciam a
granja-modelo até a construção de um palacete como resultado do trabalho
bem-sucedido.
A
primeira parte começa em Lagoa Vermelha (cidade onde, aliás, e já devo ter dito
aqui, morei dois anos), quando Celso e Dione ainda eram estudantes – ele, do
Colégio Duque de Caxias; ela, da Escola Normal Rainha da Paz. E a forma como se
conhecem é bastante pitoresca.
Começa
quando o professor Odilon, no Duque de Caxias, pede aos alunos uma redação: que
os alunos escrevam uma carta de amor. Um dos alunos alega não ter namorada, mas
o professor pede para escrever como se tivesse. E justamente o aluno que não
tinha namorada é quem escreve a melhor e mais poética redação: Celso
Brescianini, então com dezessete anos. E o mais curioso: a garota para quem ele
endereça a carta é nomeada Dione. Mais curioso ainda: o professor, que também
leciona no Rainha da Paz, conhece uma aluna de lá que se chama, justamente,
Dione, e cuja descrição corresponde quase perfeitamente à imagem feita por
Celso na carta. Mas Celso alega não conhecer nenhuma Dione, que apenas
idealizou a garota.
Ainda
assim, o professor resolve dar uma de cupido: resolve mostrar, com autorização
de Celso, a carta à aluna, Dione Teixeira da Luz, então com quinze anos. E ela
acaba se emocionando. Responde à carta de Celso, e, com o arranjo do professor
Odilon e da Madre Luísa Antonieta, diretora do Rainha da Paz, os dois se
encontram, se conhecem, e daí, aos poucos, se inicia o namoro, confirmado após
uma partida de vôlei entre as alunas do Rainha da Paz contra excursionistas de
Passo Fundo – claro que Celso assiste à partida a qual Dione toma parte.
Ambos
são filhos de agricultores – os pais de Dione moram em Passo Fundo, os de Celso
moram em Lagoa Vermelha, mas são naturais de Sananduva. Mas o que mais
impressiona o rapaz é o espírito da garota. Dione é inteligente, de mente
aberta e profundamente religiosa. Em uma de suas conversas, ela conta sobre uma
viagem que fez ao Uruguai e à Argentina, participando com a família das
reuniões de um grupo chamado Movimento Familiar Cristão, que prega, entre
outras coisas, a economia solidária. Durante o passeio, ela conhece
fazendas-modelos que seguem os princípios da policultura e da economia
solidária, e pensa em implantar um modelo parecido no Brasil. E consegue,
ainda, incutir em Celso o desejo de participar desse projeto. Tanto que, em um
período de férias, o rapaz vai a Passo Fundo junto com a namorada, para
conhecer os pais de Dione e participar de reuniões do MFC. No ensejo, participa
da festa de aniversário de dezesseis anos da garota.
Cada
vez mais, ambos vão se entrosando, partilhando ideias. Outro passeio grande foi
com uns amigos para a Granja Dolzan, conhecer seus modelos agropecuários.
Dione, inclusive, aplica aos amigos um interessante teste de personalidade
(aprenda você também, leitor!).
Mais
tarde, é a vez de Celso convidar Dione para passar uns dias na propriedade dos
Brescianini. Um dos maiores momentos do passeio se dá quando Dione acompanha
Sérgio a uma caçada de pombos carijós – como controle de pragas das plantações.
E, sabemos: no tempo de Fidélis Barbosa, não havia nada errado em caçar nos
campos, já que a carne dos animais silvestres depois podia ser consumida. Mas
ambas as famílias, os Brescianini e os Teixeira, aprovam cada um o namorado dos
filhos.
Mas
ambos decidem deixar o casamento para depois da conclusão do curso
universitário. Celso se forma técnico em agronomia, Dione se forma professora.
E,
após o casamento, realizado após um namoro sem obstáculos, ambos passam as
núpcias viajando para o sul. Primeiro, viajam para o Uruguai. Conhecem os
pontos turísticos de Montevidéu, passam por Maldonado, Sacramento e Punta del
Este. Após, descem para Buenos Aires, na Argentina, visitam seus pontos turísticos
– principalmente as igrejas. São ciceroneados por um padre, divertem-se
assistindo um espetáculo de danças tradicionais. Aproveitam para fazer um pouco
de teoria conspiratória – discutem a possibilidade do presidente brasileiro
Getúlio Vargas ter sido assassinado em vez de ter se suicidado. Fazem um
passeio pela região da Cordilheira dos Andes. E, claro, conhecem os modelos
agropecuários tão referidos, a produção de vinho argentino... Se encantam pela
cordialidade do povo. E voltam ao Brasil decididos a implantar o tão sonhado
novo modelo de trabalho.
A
segunda parte do livro começa com o início da concretização do sonho. De volta
a Passo Fundo, o casal recebe de seus pais os meios para montar a granja: do
pai de Dione, recebem o campo – seis milhões de hectares; e do pai de Celso,
equipamentos, dinheiro sob empréstimo, e o capataz da granja, Ricieri Brum, e
seus familiares, mulher e três filhos. Apesar de pouco letrado, Ricieri se
mostra um empregado inteligente e muito eficiente, a ponto de conquistar a
estima dos demais. E o casal já começa a trabalhar.
A
fazenda recebe o nome de Fazenda de Fátima. Os trabalhos começam com a
construção da casa do casal. Depois, com o plantio de trigo, a cultura inicial.
São planejadas até moradias melhores aos empregados. Tudo com bastante
planejamento, e o trabalho marcado pelo respeito dos patrões pelos empregados,
de modo que estes se sintam satisfeitos – baseado nas encíclicas papais em
defesa dos trabalhadores. Um dos carpinteiros, Antonio Bianchin, mais tarde é
contratado para trabalhar na granja, ficando depois responsável pelo mercado.
Outro
trabalhador citado na narrativa é Simpliciano de Oliveira, gaúcho campeiro
responsável pela criação de gado da granja.
O
trabalho é incessante, mas compensador. Lazer não falta aos empregados nos
finais de semana, que podem se dedicar à caça e à pesca nos arredores. Longe da
cidade e suas corrupções, em ambiente idílico, ao canto dos pássaros.
Assim
que a casa fica pronta, há festa, e os empregados confraternizam com os patrões.
Dione trata os filhos de Ricieri como se fossem seus, a ponto de estes fazerem
companhia a ela na cozinha de sua casa. Só uma noite a senhora é tomada por uma
saudade da vida citadina – e chega a pedir perdão a Celso por tal ideia.
Uma
tragédia marca o trabalho na granja: a morte da filha mais velha de Ricieri,
Ana Liési, em um acidente doméstico – o fogo do fogão pega em seu vestido, e
seu corpo acaba queimado. Dione acaba se culpando – ela deixara Ana sozinha na
casa enquanto colhia ervas para fazer chá. Em homenagem à menina, Dione dedica
a capela mais tarde construída na propriedade a Ana Liési.
O
plantel de empregados aumenta conforme o trabalho vai evoluindo. As atividades
da fazenda se diversificam. Além do trigo, são desenvolvidas outras culturas –
não fazendo o que se tinha feito até ali, e o que, de certa forma, se faz até
hoje, ou seja, se dedicando à monocultura. Se alguma cultura entra em risco,
outra pode cobrir o prejuízo. Além disso, na propriedade, se cria gado de boa
raça, Devon, em pastagem artificial. E tal modelo não sofre interferência do
governo.
Chega,
afinal, a colheita do trigo, com excelentes resultados. Os rendimentos
possibilitam a quitação das despesas contraídas, fazer melhoras na propriedade,
construir uma escola para os filhos dos empregados, tendo uma das filhas de um
empregado, recém-formada, como professora. E tem mais: pela dedicação ao
serviço, Celso premia os empregados com uma viagem à praia, uma semana em
propriedade construída em Arroio do Silva, Santa Catarina. Quem mais aproveita
são os filhos dos empregados, que ganham o privilégio de conhecer o mar. Só
houve um conflito: a falta de um padre para rezar missas na capela local.
Depois de alguma insistência junto às autoridades eclesiásticas, Celso consegue
resolver o problema, levando para lá um padre que inclusive aproveitou para
descansar no local.
Os
anos passam. A família de Celso e Dione aumenta com o nascimento dos filhos. O
modelo implantado se mostra próspero, a escola local se mostra eficiente, os
empregados, tanto os antigos quanto os mais novos, estão satisfeitos em
trabalhar no local, junto a patrões tão simpáticos e bondosos – eles até
convidam empregados de estima para serem padrinhos de batismo dos filhos. Mas
aí, chega um difícil momento para aquela nova comunidade: a despedida do
capataz Ricieri, disposto a montar uma propriedade nos mesmos moldes, aplicando
tudo o que aprendera com o Dr. Celso. A despedida se dá durante uma cerimônia
marcando o início da safra do trigo, que contou até com a presença do
governador do Rio Grande do Sul da época, Ildo Meneghetti, e outras
personalidades políticas e religiosas.
Mas
a maior realização do casal Brescianini se dá no fim: a construção de um
palacete em Passo Fundo, visando o futuro dos filhos. O palacete se torna o
símbolo a prosperidade alcançada através do trabalho no campo.
ASPECTOS TÉCNICOS
Bem.
O romance acaba ensinando muita coisa. Mas, infelizmente, pode não se adequar
ao pensamento do leitor de hoje. Talvez tanto pela parte técnica, pela falta de
grandes intrigas no enredo, que deixam a história meio enfadonha, que podem
fazer o leitor se desinteressar pelos ensinamentos. Talvez nem fosse intenção
de Fidélis Barbosa produzir um romance folhetinesco, com intrigas, inimigos e
tudo; prevalece mesmo a evocação de um passado onde imperavam o respeito às
instituições, o bucolismo do interior gaúcho e o amor ao trabalho; e o discurso
da necessidade de um novo modelo econômico, baseado em ensinamentos cristãos.
Infelizmente, ainda hoje, prevalece o modelo calvinista de trabalho, baseado no
individual sobrepujando o coletivo.
A
primeira parte do romance foi a que valeu todo o restante – o modo como o casal
se conheceu e se entrosou. O restante é mais baseado em descrições, diálogos
que soam artificiais, altas doses de pieguice. E a parte didática: o leitor não
pode terminar o livro sem ter aprendido algo. Seja as lições da vida no campo,
seja um pouco de história e geografia do Uruguai e da Argentina – boa parte do
romance é um guia de viagem por esses países. E pode sair coçando a cabeça:
seriam as teses lançadas por Fidélis Barbosa, para sustentar a versão do
assassinato do presidente Vargas, plausíveis? Praticamente, Fidélis Barbosa, em
PRISIONEIROS DO CAMPO, dominou o ofício de escritor. Um livro que vale a pena
ser lido e analisado.
PRISIONEIROS
DO CAMPO é mais fácil de encontrar nas bibliotecas públicas de sua cidade. Um
novo modelo de Brasil é possível: é só os leitores deixarem de lado a desculpa
de a poeira dos livros causar alergia, e lerem mais livros de papel. Por hora,
este ainda não está disponível em versão eletrônica.
Está
dado o recado.
Este
texto é uma versão, com alterações, da resenha publicada anteriormente no blog
Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Em
breve, um novo livro de Fidélis Barbosa para vocês – e uma nova resenha.
Conheçam
a Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges.
E
prestigiem a Feira do Livro de Vacaria! De 18 a 22 de outubro, na Praça Daltro
Filho!
Até
mais!
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