segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Seção Resenha de Livros: PRISIONEIROS DO CAMPO

Olá.
Aqui é o Rafael novamente.
Hoje, em nova colaboração para o Blog da Biblioteca, voltamos a falar da obra do escritor gaúcho Fidélis Dalcin Barbosa. O livro de hoje foge um pouco do padrão observado em outras obras do autor, em algumas de suas características observadas até o momento.
O livro de hoje se chama PRISIONEIROS DO CAMPO.

PROBLEMAS NO EXEMPLAR DISPONÍVEL
PRISIONEIROS DO CAMPO, que posteriormente recebeu o subtítulo de A Epopeia dos Trigais de Passo Fundo, teve sua primeira edição lançada em 1965, pela editora São Miguel, de Caxias do Sul, RS. O exemplar disponível na biblioteca, já preciso avisar, está em estado de conservação regular, a julgar pela foto da capa mal restaurada (acima). Esta edição tem formato bolso e 186 páginas.
Há outra edição do livro, pela Editora EST (Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes), de Porto Alegre, RS, em formato brochura e 175 páginas (abaixo) – é a edição mais fácil de encontrar na internet.

O CICLO DOS PRISIONEIROS
Bem. De todo modo, PRISIONEIROS DO CAMPO, apesar de também levar o título de Prisioneiros, foge um pouco do padrão estabelecido pelos outros romances do autor com esse título. Já falei, aqui, de quatro deles: O Prisioneiro da Montanha (1961), Prisioneiros do Abismo (1962), Prisioneiros de Vila Velha (1964) e Prisioneiros dos Bugres (1966) – não nessa ordem.
Os romances da “série” Prisioneiros seguem como padrão: o uso de didatismo, com inserção de informações geográficas, históricas e científicas dos locais onde se passam as narrativas; esses locais são reais, geralmente marcados por belezas naturais, as quais o autor objetiva divulgar ao público; os personagens são fortemente religiosos e confiam na providência divina; eles, em algum momento, acabam em uma situação-limite, tendo de sobreviver a perigos com um mínimo de recursos e contando com a ajuda de acasos; e o enredo do romance em geral é otimista, logo o final em geral é feliz.
Bem: em O Prisioneiro da Montanha, o personagem principal, Pedro Uliana, passa pela situação-limite, tendo de sobreviver por quase sete anos preso na Serra dos Aparados, na fronteira do Rio Grande do Sul com Santa Catarina; em Prisioneiros de Vila Velha, a bela viúva Sílvia e seu filho Paulinho são recompensados depois de passar três dias de provações no Parque Estadual de Vila Velha, no Paraná; em Prisioneiros dos Bugres, os membros da família Versteg passam maus bocados nas mãos de uma tribo de índios caigangues e nômades, pelas regiões de São Leopoldo e Caxias do Sul – e, no fim, só um deles sobrevive (e essa história é real!); e, em Prisioneiros do Abismo, os amigos Danilo e Mário passam só alguns dias presos no fundo do Taimbezinho de Cambará do Sul, RS – o bastante para pensarem na vida vivida até ali e assumir um compromisso de mudança.
PRISIONEIROS DO CAMPO mantém várias características da “série”, menos uma. Tem didatismo? Sim. Os locais citados existem, e possuem belezas naturais? Sim. Os personagens são religiosos? Sim. O enredo é otimista e o final é feliz? Sim. Os personagens passam pela situação-limite? Não!
Aí é que reside a diferença: em PRISIONEIROS DO CAMPO, os personagens principais, Celso e Dione, não passam por uma situação-limite, fora do controle deles. Pelo contrário: eles se tornam “prisioneiros” por vontade própria.

UM NOVO MODELO DE ROMANCE E DE VIDA
A história se passa nas cidades de Lagoa Vermelha e Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e passa ainda pelo Uruguai e pela Argentina. E, aqui, Fidélis se preocupa mais em ministrar uma lição aos leitores: que é possível obter bons resultados econômicos através da agropecuária, baseados em relações trabalhistas mais humanitárias e benéficas tanto para os empregados quanto para os patrões, baseadas em ensinamentos cristãos.
Bem, ao menos, na época de Fidélis Barbosa, tais coisas eram possíveis. Ao menos, no meio onde o autor viveu, as coisas “realmente funcionavam” na época do Regime Militar, conforme dizem os “reacionários” de hoje em dia (lembrem-se: a obra é de 1965, o Regime Militar recém havia começado, a “revolução” contra a “ameaça comunista” ainda era bem-vista pela maior parte da população e as medidas de exceção mais rígidas, como o AI-5, ainda não haviam sido decretadas – e, até onde sabemos, Fidélis Barbosa nunca se envolveu com as “esquerdas” combativas daquela época, sequer com as “direitas” radicais; como padre, ele deveria estar alinhado com os setores que não viam a disseminação dos ideais comunistas com bons olhos – em nenhum de seus livros analisados até o momento se observam referências ao Regime, só uma ou outra referência ao fato de o Brasil ter sido salvo da “ameaça comunista” pela citada “revolução” de 1964, de resto, a vida segue normalmente, sem ebulição política).
Bem. O enredo básico de PRISIONEIROS DO CAMPO é a vida e a luta de um casal, Celso e Dione, que decidem modernizar as estruturas do campo, através do exemplo de sua granja-modelo.
A história é dividida em duas partes. A primeira parte compreende desde quando Celso e Dione se conhecem até o final da viagem de ambos, após o casamento, ao Uruguai e à Argentina; e a segunda parte compreende desde quando iniciam a granja-modelo até a construção de um palacete como resultado do trabalho bem-sucedido.
A primeira parte começa em Lagoa Vermelha (cidade onde, aliás, e já devo ter dito aqui, morei dois anos), quando Celso e Dione ainda eram estudantes – ele, do Colégio Duque de Caxias; ela, da Escola Normal Rainha da Paz. E a forma como se conhecem é bastante pitoresca.
Começa quando o professor Odilon, no Duque de Caxias, pede aos alunos uma redação: que os alunos escrevam uma carta de amor. Um dos alunos alega não ter namorada, mas o professor pede para escrever como se tivesse. E justamente o aluno que não tinha namorada é quem escreve a melhor e mais poética redação: Celso Brescianini, então com dezessete anos. E o mais curioso: a garota para quem ele endereça a carta é nomeada Dione. Mais curioso ainda: o professor, que também leciona no Rainha da Paz, conhece uma aluna de lá que se chama, justamente, Dione, e cuja descrição corresponde quase perfeitamente à imagem feita por Celso na carta. Mas Celso alega não conhecer nenhuma Dione, que apenas idealizou a garota.
Ainda assim, o professor resolve dar uma de cupido: resolve mostrar, com autorização de Celso, a carta à aluna, Dione Teixeira da Luz, então com quinze anos. E ela acaba se emocionando. Responde à carta de Celso, e, com o arranjo do professor Odilon e da Madre Luísa Antonieta, diretora do Rainha da Paz, os dois se encontram, se conhecem, e daí, aos poucos, se inicia o namoro, confirmado após uma partida de vôlei entre as alunas do Rainha da Paz contra excursionistas de Passo Fundo – claro que Celso assiste à partida a qual Dione toma parte.
Ambos são filhos de agricultores – os pais de Dione moram em Passo Fundo, os de Celso moram em Lagoa Vermelha, mas são naturais de Sananduva. Mas o que mais impressiona o rapaz é o espírito da garota. Dione é inteligente, de mente aberta e profundamente religiosa. Em uma de suas conversas, ela conta sobre uma viagem que fez ao Uruguai e à Argentina, participando com a família das reuniões de um grupo chamado Movimento Familiar Cristão, que prega, entre outras coisas, a economia solidária. Durante o passeio, ela conhece fazendas-modelos que seguem os princípios da policultura e da economia solidária, e pensa em implantar um modelo parecido no Brasil. E consegue, ainda, incutir em Celso o desejo de participar desse projeto. Tanto que, em um período de férias, o rapaz vai a Passo Fundo junto com a namorada, para conhecer os pais de Dione e participar de reuniões do MFC. No ensejo, participa da festa de aniversário de dezesseis anos da garota.
Cada vez mais, ambos vão se entrosando, partilhando ideias. Outro passeio grande foi com uns amigos para a Granja Dolzan, conhecer seus modelos agropecuários. Dione, inclusive, aplica aos amigos um interessante teste de personalidade (aprenda você também, leitor!).
Mais tarde, é a vez de Celso convidar Dione para passar uns dias na propriedade dos Brescianini. Um dos maiores momentos do passeio se dá quando Dione acompanha Sérgio a uma caçada de pombos carijós – como controle de pragas das plantações. E, sabemos: no tempo de Fidélis Barbosa, não havia nada errado em caçar nos campos, já que a carne dos animais silvestres depois podia ser consumida. Mas ambas as famílias, os Brescianini e os Teixeira, aprovam cada um o namorado dos filhos.
Mas ambos decidem deixar o casamento para depois da conclusão do curso universitário. Celso se forma técnico em agronomia, Dione se forma professora.
E, após o casamento, realizado após um namoro sem obstáculos, ambos passam as núpcias viajando para o sul. Primeiro, viajam para o Uruguai. Conhecem os pontos turísticos de Montevidéu, passam por Maldonado, Sacramento e Punta del Este. Após, descem para Buenos Aires, na Argentina, visitam seus pontos turísticos – principalmente as igrejas. São ciceroneados por um padre, divertem-se assistindo um espetáculo de danças tradicionais. Aproveitam para fazer um pouco de teoria conspiratória – discutem a possibilidade do presidente brasileiro Getúlio Vargas ter sido assassinado em vez de ter se suicidado. Fazem um passeio pela região da Cordilheira dos Andes. E, claro, conhecem os modelos agropecuários tão referidos, a produção de vinho argentino... Se encantam pela cordialidade do povo. E voltam ao Brasil decididos a implantar o tão sonhado novo modelo de trabalho.
A segunda parte do livro começa com o início da concretização do sonho. De volta a Passo Fundo, o casal recebe de seus pais os meios para montar a granja: do pai de Dione, recebem o campo – seis milhões de hectares; e do pai de Celso, equipamentos, dinheiro sob empréstimo, e o capataz da granja, Ricieri Brum, e seus familiares, mulher e três filhos. Apesar de pouco letrado, Ricieri se mostra um empregado inteligente e muito eficiente, a ponto de conquistar a estima dos demais. E o casal já começa a trabalhar.
A fazenda recebe o nome de Fazenda de Fátima. Os trabalhos começam com a construção da casa do casal. Depois, com o plantio de trigo, a cultura inicial. São planejadas até moradias melhores aos empregados. Tudo com bastante planejamento, e o trabalho marcado pelo respeito dos patrões pelos empregados, de modo que estes se sintam satisfeitos – baseado nas encíclicas papais em defesa dos trabalhadores. Um dos carpinteiros, Antonio Bianchin, mais tarde é contratado para trabalhar na granja, ficando depois responsável pelo mercado.
Outro trabalhador citado na narrativa é Simpliciano de Oliveira, gaúcho campeiro responsável pela criação de gado da granja.
O trabalho é incessante, mas compensador. Lazer não falta aos empregados nos finais de semana, que podem se dedicar à caça e à pesca nos arredores. Longe da cidade e suas corrupções, em ambiente idílico, ao canto dos pássaros.
Assim que a casa fica pronta, há festa, e os empregados confraternizam com os patrões. Dione trata os filhos de Ricieri como se fossem seus, a ponto de estes fazerem companhia a ela na cozinha de sua casa. Só uma noite a senhora é tomada por uma saudade da vida citadina – e chega a pedir perdão a Celso por tal ideia.
Uma tragédia marca o trabalho na granja: a morte da filha mais velha de Ricieri, Ana Liési, em um acidente doméstico – o fogo do fogão pega em seu vestido, e seu corpo acaba queimado. Dione acaba se culpando – ela deixara Ana sozinha na casa enquanto colhia ervas para fazer chá. Em homenagem à menina, Dione dedica a capela mais tarde construída na propriedade a Ana Liési.
O plantel de empregados aumenta conforme o trabalho vai evoluindo. As atividades da fazenda se diversificam. Além do trigo, são desenvolvidas outras culturas – não fazendo o que se tinha feito até ali, e o que, de certa forma, se faz até hoje, ou seja, se dedicando à monocultura. Se alguma cultura entra em risco, outra pode cobrir o prejuízo. Além disso, na propriedade, se cria gado de boa raça, Devon, em pastagem artificial. E tal modelo não sofre interferência do governo.
Chega, afinal, a colheita do trigo, com excelentes resultados. Os rendimentos possibilitam a quitação das despesas contraídas, fazer melhoras na propriedade, construir uma escola para os filhos dos empregados, tendo uma das filhas de um empregado, recém-formada, como professora. E tem mais: pela dedicação ao serviço, Celso premia os empregados com uma viagem à praia, uma semana em propriedade construída em Arroio do Silva, Santa Catarina. Quem mais aproveita são os filhos dos empregados, que ganham o privilégio de conhecer o mar. Só houve um conflito: a falta de um padre para rezar missas na capela local. Depois de alguma insistência junto às autoridades eclesiásticas, Celso consegue resolver o problema, levando para lá um padre que inclusive aproveitou para descansar no local.
Os anos passam. A família de Celso e Dione aumenta com o nascimento dos filhos. O modelo implantado se mostra próspero, a escola local se mostra eficiente, os empregados, tanto os antigos quanto os mais novos, estão satisfeitos em trabalhar no local, junto a patrões tão simpáticos e bondosos – eles até convidam empregados de estima para serem padrinhos de batismo dos filhos. Mas aí, chega um difícil momento para aquela nova comunidade: a despedida do capataz Ricieri, disposto a montar uma propriedade nos mesmos moldes, aplicando tudo o que aprendera com o Dr. Celso. A despedida se dá durante uma cerimônia marcando o início da safra do trigo, que contou até com a presença do governador do Rio Grande do Sul da época, Ildo Meneghetti, e outras personalidades políticas e religiosas.
Mas a maior realização do casal Brescianini se dá no fim: a construção de um palacete em Passo Fundo, visando o futuro dos filhos. O palacete se torna o símbolo a prosperidade alcançada através do trabalho no campo.

ASPECTOS TÉCNICOS
Bem. O romance acaba ensinando muita coisa. Mas, infelizmente, pode não se adequar ao pensamento do leitor de hoje. Talvez tanto pela parte técnica, pela falta de grandes intrigas no enredo, que deixam a história meio enfadonha, que podem fazer o leitor se desinteressar pelos ensinamentos. Talvez nem fosse intenção de Fidélis Barbosa produzir um romance folhetinesco, com intrigas, inimigos e tudo; prevalece mesmo a evocação de um passado onde imperavam o respeito às instituições, o bucolismo do interior gaúcho e o amor ao trabalho; e o discurso da necessidade de um novo modelo econômico, baseado em ensinamentos cristãos. Infelizmente, ainda hoje, prevalece o modelo calvinista de trabalho, baseado no individual sobrepujando o coletivo.
A primeira parte do romance foi a que valeu todo o restante – o modo como o casal se conheceu e se entrosou. O restante é mais baseado em descrições, diálogos que soam artificiais, altas doses de pieguice. E a parte didática: o leitor não pode terminar o livro sem ter aprendido algo. Seja as lições da vida no campo, seja um pouco de história e geografia do Uruguai e da Argentina – boa parte do romance é um guia de viagem por esses países. E pode sair coçando a cabeça: seriam as teses lançadas por Fidélis Barbosa, para sustentar a versão do assassinato do presidente Vargas, plausíveis? Praticamente, Fidélis Barbosa, em PRISIONEIROS DO CAMPO, dominou o ofício de escritor. Um livro que vale a pena ser lido e analisado.
PRISIONEIROS DO CAMPO é mais fácil de encontrar nas bibliotecas públicas de sua cidade. Um novo modelo de Brasil é possível: é só os leitores deixarem de lado a desculpa de a poeira dos livros causar alergia, e lerem mais livros de papel. Por hora, este ainda não está disponível em versão eletrônica.
Está dado o recado.

Este texto é uma versão, com alterações, da resenha publicada anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Em breve, um novo livro de Fidélis Barbosa para vocês – e uma nova resenha.
Conheçam a Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges.
E prestigiem a Feira do Livro de Vacaria! De 18 a 22 de outubro, na Praça Daltro Filho!

Até mais!

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