terça-feira, 29 de novembro de 2016

Seção Resenha de Livros: OS HOMENS PRECÁRIOS

Olá.
Aqui é o Rafael Grasel novamente, com mais uma colaboração para o blog da Biblioteca Pública. Mais uma Seção Resenha de Livros.
Na última postagem, eu falei mais detalhadamente a respeito do dramaturgo gaúcho José Joaquim de Campos Leão – ou melhor, Jozé Joaqim de Qampos Leão Qorpo-Santo (1829 – 1883), que só foi reconhecido como dramaturgo, de fato, após sua morte. Para falar a respeito do criador do Teatro do Absurdo brasileiro, tomei por base um trabalho de compilação publicado em 1969, feita pelo crítico Guilhermino César.
Pois, por acaso, encontrei o segundo grande trabalho de análise da obra de Qorpo-Santo – publicado ainda no calor da hora, ou melhor, de quando a obra de Qorpo-Santo foi redescoberta, nos anos 1960 – 1970, encenada pela primeira vez, amplamente estudada.
Este, certamente, é o mais completo estudo da obra do “dramaturgo”, “poeta”, “enciclopedista”. Com vocês, OS HOMENS PRECÁRIOS, de Flávio Aguiar.

PRIMEIROS DADOS TÉCNICOS
OS HOMENS PRECÁRIOS – INOVAÇÃO E CONVENÇÃO NA DRAMATURGIA DE QORPO-SANTO apareceu, pela primeira vez, como uma Tese de Mestrado em Teoria Literária, defendida pelo autor, Flávio Wolf de Aguiar (nascido em Porto Alegre, RS, em 1947), na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), em 1974. No ano seguinte, 1975, o trabalho foi publicado na forma de livro, pela extinta editora A Nação, de Porto Alegre, em co-edição com o Instituto Estadual do Livro. Hoje, o livro se encontra esgotado, não tendo ganhado nova edição por nenhuma outra editora – hoje o livro só pode ser encontrado em alguma “poeirenta” biblioteca, ou em algum sebo.
O que é uma pena, porque o livro não é apenas a mais completa dissecção, em sua época, das peças de Qorpo-Santo; também é um modelo de análise literária – claro, apesar de sua linguagem técnica, de crítica literária, e de trechos pouco compreensíveis a quem não possui vivência acadêmica.

SOBRE O AUTOR
Bom: Flávio Aguiar ainda se encontra em atividade, como professor, jornalista, escritor e tradutor. Atualmente, mora em Berlim, na Alemanha, onde é correspondente de publicações brasileiras, impressas ou na internet. O porto-alegrense é graduado em Letras (1970) pela USP, detendo ainda os títulos de Mestre (1974) e Doutor (1979) pela mesma faculdade. Sua tese de doutorado, A Comédia Nacional no Teatro de José de Alencar, também foi publicada em livro, pela editora Ática, em 1984, e por ela ganhou o primeiro dos quatro prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, que recebeu até hoje.
Em 1982, Aguiar cumpriu programa de Pós-Doutorado na Universidade de Montreal, no Canadá. Foi professor convidado e conferencista em universidades do Brasil, Uruguai, Argentina, Canadá, Alemanha, Costa do Marfim e Cuba. Foi professor de Literatura Brasileira da USP entre 1973 e 2006, tendo orientado mais de quarenta teses e dissertações de Mestrado e Doutorado – atualmente, é professor assistente doutor aposentado pela mesma universidade. Foi editor de cultura do jornal Movimento durante o período do Regime Militar.
Casou duas vezes. Do primeiro casamento, com Iole de Freitas Druck, teve três filhas, duas netas e dois netos. Sua atual cônjuge é a professora Zinka Ziebell, da Universidade Livre de Berlim.
Flávio Aguiar tem mais de trinta livros publicados, como autor, co-autor e organizador, entre livros de crítica literária, ficção e poesia. Também foi colaborador em diversas antologias de literatura. Um de seus primeiros livros foi Sol, poemas. Além de OS HOMENS PRECÁRIOS e de A Comédia Nacional no Teatro José de Alencar, se destacam, na obra do autor: A Palavra no Purgatório: Literatura e Cultura nos Anos 70 (Boitempo, 1998); Anita (Boitempo, 1999, romance, vencedor do Prêmio Jabuti em 2000); Antônio Cândido: Pensamento e Militância (Humanitas / Fundação Perseu Abramo, 1999); Colar de Vidro e Outros Poemas (Corag / IEL, 2002, finalista do Prêmio Açorianos as Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre); e A Bíblia Segundo Beliel: Da Criação ao Fim do Mundo – Como Tudo de Fato Aconteceu e Vai Acontecer (Boitempo, 2012). Como organizador, foi responsável, entre outros trabalhos, pela compilação das peças de Nelson Rodrigues para a Editora Nova Fronteira, lançada em 2004.

RETORNO À PORTO ALEGRE SURREALISTA
Well, voltemos agora a analisar OS HOMENS PRECÁRIOS, que apareceu ainda durante a onda causada pela redescoberta dos textos de Qorpo-Santo. Na época, eram conhecidos seis dos (prováveis) nove volumes da principal obra de José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo, a Ensiqlopèdia, ou Seis Mezes de Huma Enfermidade, publicada e editada pelo próprio Qorpo-Santo em 1877, que compilava todas as outras. Quando Guilhermino César organizou a primeira compilação das comédias do “maníaco escritor”, em 1969, só haviam sido localizados três volumes – os fascículos II, IV e VII. Mais ou menos na década de 1970, foram localizados mais três – os volumes I, VIII e IX – em poder da família Assis Brasil. Nos dias atuais, os fac-símiles desses seis volumes se encontram em poder da Biblioteca Central da PUCRS, de Porto Alegre, que disponibilizou a versão digitalizada desses textos na internet.
A Ensiqlopèdia era uma mistura caótica de poemas, textos de crítica, artigos do jornal A Justiça (que Qorpo-Santo editou em Porto Alegre e Alegrete entre 1868 e 1871), pensamentos, receitas culinárias... e, claro as comédias. Do conjunto até hoje resgatado pelo autor, se conhecem 16 comédias completas e uma incompleta.
Até a redescoberta das comédias de Qorpo-Santo, e de suas primeiras representações em 1966 – que foram sucesso de público e crítica (para saber mais, consultem a postagem anterior) – a obra do “maníaco escritor”, que em vida fora considerado louco, teve seus bens apreendidos, e diversas pessoas de suas relações (na visão dele) conspirando contra o então professor, jornalista, comerciante e escritor nas horas vagas, enfim, sua obra estava em “hibernação”. Qorpo-Santo era lembrado, até meados de 1950, apenas como uma figura pitoresca de Porto Alegre (sabiam que, segundo a lenda, Qorpo-Santo teria sido o pioneiro das fachadas luminosas de Porto Alegre? Ele, quando instalou a sua própria tipografia, em 1877, teria recortado na madeira de um caixote as palavras “Tipographia Qorpo-Santo”, instalado o caixote em cima da porta e colocado velas acesas dentro do mesmo para que a escrita brilhasse no escuro); exemplares da Ensiqlopèdia ficaram guardadas em coleções de bibliófilos e colecionadores de livros antigos, mais como curiosidade que necessidade de recuperação histórica; sua obra foi esnobada pelos membros do Movimento Modernista de 1922 – apesar de estar comprovado que tanto seus poemas como peças teatrais foram pioneiros em diversos aspectos. Qorpo-Santo teria, com suas peças repletas de nonsense e histeria, se adiantado aos europeus Alfred Jarry (autor da peça Ubu-Rei), Eugène Ionesco (de A Cantora Careca) e Samuel Beckett (de Esperando Godot), os “criadores” do Teatro do Absurdo na Europa.
Qorpo-Santo foi o pioneiro em usar situações burlescas, palavras sem nexo e ações sem sentido para criticar a sociedade de seu tempo. Motivos, claro, não lhe faltaram. Só perdeu a primazia para os europeus porque suas peças nunca foram encenadas em vida. No Brasil do século XIX, ainda imperavam o teatro romântico e o teatro realista, ambos de intenções moralizantes.
Qorpo-Santo teve sua maneira pessoal de criticar a burocracia estatal, a ineficiência do serviço público da época do Império, as relações familiares, os motivos para o adultério e para procurar prostitutas, as relações entre marido e mulher, a passagem do tempo... Ainda foi o pioneiro no tratamento da homossexualidade masculina no teatro brasileiro, ainda que em um breve diálogo e com final infeliz (na peça A Separação dos Dois Esposos).
Bueno. Eis como Flávio Aguiar, na introdução do texto, justifica o título de sua tese:
“Qorpo-Santo e sua obra: sobretudo, pessoa e coisa enigmáticas, a desvendar segredos solitários.
Fizeram-se, ambos, testemunho extremo da precariedade congênita em que se cria arte (cultura) numa sociedade subdesenvolvida, entregue ao disfarçado desespero da própria pobreza e à contemplação alucinatória das ‘maravilhas’ que lhe chegam do ‘Mundo’, seja do Velho, seja do Novo, que a si mesma ainda vê com distanciado espanto. Pensando, basicamente, nessa precariedade, foi que chamei este trabalho de ‘Os Homens Precários’. E tentei mostrar como Qorpo-santo, jogando com as convenções da pobreza e do maravilhamento, conseguiu transpor para o papel a possibilidade de que se compreenda, de novos ângulos, a nossa condição de cidadãos do precário ‘terceiro mundo’ cultural (e econômico).” (p. 15 – 16)
Em sua dissecção das peças e das situações sem nexo que Qorpo-Santo colocou no papel, Flávio Aguiar consegue encontrar o devido sentido, o devido propósito das ideias do “maníaco escritor”. É claro, ele contempla quase todas as peças de Qorpo-Santo – inclusive as que não foram incluídas na antologia de Guilhermino César. Ah, em tempo: Guilhermino César é responsável pelo prefácio de OS HOMENS PRECÁRIOS; e Maria Helena Martins, pelo texto de orelha.
Bão: OS HOMENS PRECÁRIOS se divide em quatro partes, sendo as duas primeiras divididas em capítulos – e todas abrem com um trecho de um soneto de Heloísa Jahn, em transcrição crescente (na primeira parte, a primeira estrofe; na segunda, a primeira e a segunda estrofes; na terceira, as três estrofes; e, no fim, o poema completo), criando uma expectativa no leitor, que no final se mostra frustrante – os desavisados pensarão que o poema das epígrafes é de Qorpo-Santo, não de outro autor.
A primeira parte, Qorpo-Santo Redevorado, com seis capítulos, tem por ponto de partida a redescoberta e as primeiras encenações das peças do “maníaco escritor”, a partir de 1966. O autor aproveita para fazer as primeiras considerações a respeito da obra de Qorpo-Santo, dando valiosas informações adicionais sobre a Ensiqlopèdia (nos dias de hoje, a internet não tem ajudado tanto quanto gostaríamos...)
Na segunda parte, Qorpo-Santo e o Redemoinho, nos dez capítulos, Flávio Aguiar disseca as peças completas de Qorpo-Santo, buscando o devido significado nas ações dos personagens, nas falas histéricas, nas críticas embutidas, anteriormente citadas.
Na terceira parte de capítulo único, Qorpo-Santo e a Engrenagem, algumas considerações a respeito do teatro da década de 1860 (que não passava por uma boa fase), as críticas a respeito (principalmente da enxurrada de comédias francesas, de qualidade duvidosa, que ameaçavam suplantar a produção nacional), e como as comédias de Qorpo-Santo se encaixam nas características do teatro do século XIX – e como seriam vistas pela crítica da época, se tivessem ganho montagem.
Na última parte, Qorpo-Santo, Precursor de Si Mesmo, as considerações finais, e as provas de que o “maníaco escritor” se adiantou aos europeus com o Teatro do Absurdo.
O livro é completo com notas e valiosos anexos: a cronologia da vida de Qorpo-Santo; uma descrição dos seis fascículos conhecidos da Ensiqlopèdia; as encenações conhecidas (até 1975) das peças de Qorpo-Santo (sabiam que foi feito, em 1971, um curta-metragem baseado em uma das comédias do autor – Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte?); e referências sobre a fortuna crítica (conjunto de estudos sobre a obra) de Qorpo-Santo.
Tudo bem, OS HOMENS PRECÁRIOS é direcionado mais para quem é da área da literatura brasileira. Tem trechos excessivamente técnicos, em linguagem acadêmica, e soporífera ao leitor menos instruído. Mas o público já acostumado encontrará uma leitura rápida (sério: ela passa voando em certos momentos), apesar das suas 264 páginas (sem contar capa), e o escritor demonstra preocupação com o leitor, pensando inclusive em quem não teve contato com as peças de Qorpo-Santo. É um modelo para trabalhos literários e acadêmicos – penas que, nos dias de hoje, seja difícil de encontrar. Também pesa o fato que, nas prateleiras de uma biblioteca, o livro acabe passando despercebido, a menos que o leitor já tenha encontrado uma referência a ele em outras obras. Contribui para tanto a capa, com ilustração minimalista e pouco atraente de Cecília Tavares Teixeira, e sem o subtítulo. Costuma ser assim com os livros de público específico. Teria OS HOMENS PRECÁRIOS servido como referência para Luiz Antônio de Assis Brasil escrever seu romance Cães da Província? Acredito que sim: alguns trechos descritivos de Flávio Aguiar sobre a vida de Qorpo-santo batem com trechos do romance.
Atualmente, a obra de Qorpo-Santo não é fácil de encontrar, apesar dos esforços de diversos literatos em lançar compilações das peças, ou de seus poemas. Ainda não se encontraram os volumes restantes da Ensiqlopèdia. Será que ainda existem exemplares intactos dos volumes III, V e VI? O tempo – e o interesse do público – é que vão dizer. Mas, nos tempos recentes, as pessoas parecem mais interessadas no absurdo da vida que em teatro do absurdo... ou quaisquer outras formas de teatro.

Esta postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Este livro, como tantos outros resenhados aqui, se encontra disponível no acervo da Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges. Procurem e surpreendam-se.
Em breve, uma nova resenha de livros para os amantes do livro físico.

Até mais!

domingo, 27 de novembro de 2016

Seção Resenha de Livros: QORPO-SANTO - AS RELAÇÕES NATURAIS E OUTRAS COMÉDIAS

Olá.
Aqui é o Rafael Grasel mais uma vez, colaborando para o blog da Biblioteca Pública.
Na última postagem, resenhei o livro Cães da Província (1987), de Luiz Antônio de Assis Brasil. O romance relacionava alguns dos acontecimentos que agitaram a cidade de Porto Alegre, RS, na década de 1860: os crimes da Rua do Arvoredo, ou o “caso da linguiça humana”, e a vida tormentosa e atormentada do professor, escritor, teatrólogo e (tido como) maluco José Joaquim de Campos Leão, Qorpo-Santo.
Pois, hoje, volto a evocar a figura do criador do teatro do absurdo no Brasil, para vocês saberem mais a respeito dele. Com vocês, Qorpo-Santo.

UM POUCO MAIS DA VIDA DO MALUCO-BELEZA PORTO-ALEGRENSE...
Vamos recordar: José Joaquim de Campos Leão nasceu em Triunfo, RS, em 19 de abril de 1829. Em 1839, ele presencia o assassinato do pai, vítima de emboscada, durante um episódio da Revolução Farroupilha; e, depois, muda-se para Porto Alegre, a fim de estudar gramática e conseguir emprego. Inicialmente, entre 1842 e 1847, trabalha no comércio, entre as cidades de Porto Alegre e Cachoeira; em 1848, tem de deixar Porto Alegre para cuidar da irmã doente; e, a partir de 1850, habilita-se ao exercício do magistério público. Em 1851, funda um grupo dramático, e, a partir de 1852, começa a colaborar para jornais da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Em 1855, deixa o magistério público e passa a lecionar em vários colégios, a fim de amparar a mãe doente, e se casa com Inácia de Campos Leão, com quem tem quatro filhos: Idalina Carlota, Lídia Marfisa, Plínia Manuela e Tales José. Em 1856, depois da epidemia de cólera-morbo que assolou a Capital da Província, José Joaquim assume a direção do Colégio São João. Em 1857, por conta de problemas de saúde, muda-se com a família para Alegrete, RS, onde funda um colégio, adquire respeitabilidade como figura pública, escrevendo para jornais e ocupando cargos públicos, como de delegado de polícia e vereador.
Em 1861, retorna a Porto Alegre, seguindo carreira como professor. Mais ou menos nesse ano, começam a se manifestar os sintomas de transtornos psíquicos, diagnosticados como monomania – a família alegava que o transtorno se devia à “superexcitação da atividade cerebral” e da sua compulsão de “tudo escrever” (ele estava, naquela época, tomando notas para suas obras, que reuniam poemas, peças de teatro, artigos jornalísticos, ditos...) Esse diagnóstico inicial foi determinante para que ele fosse dispensado do serviço público em 1862, tivesse seus bens interditados e administrados por um tutor (e não era pouca coisa: seu testamento relacionava, entre outras coisas, 8 casas em seu nome, valores em dinheiro e ações que davam 400 mil réis e uma valiosa mobília, mostrando que Qorpo-Santo era abonado em suas atividades), e passasse por uma bateria de exames com médicos de Porto Alegre, que divergem sobre o verdadeiro estado de saúde mental do homem que, mais ou menos nessa época, adotou, junto a seu nome, a alcunha de Qorpo-Santo (ele próprio explica: “Se a palavra corpo-santo foi-me infiltrada em tempo que vivi completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma palavra hei sido compelido para este mundo”).
José Joaquim não aceita passivamente seus diagnósticos que praticamente o qualificavam como louco, apesar de ter assumido algumas atitudes excêntricas, como trancar a porta da frente de seu sobrado e utilizar uma escada para acessar o andar superior – e dizem que, certa vez, ele havia agredido, com seu guarda-chuva, uma mulher, em plena rua, que o chamara de louco a plenos pulmões. José Joaquim recorre, então, ao Rio de Janeiro, internando-se no Hospício Pedro II e sendo examinado por médicos locais, cujos diagnósticos divergiram dos especialistas de Porto Alegre, confirmando que Qorpo-Santo estava em pleno domínio de suas faculdades mentais. Enquanto isso, continuava escrevendo: só em maio de 1866, Qorpo-Santo compôs 8 peças teatrais – normalmente, no século XIX inclusive, uma peça teatral, mesmo com apenas um ato, leva meses para ser composta. O diagnóstico final se deu em 1868 – mas a confirmação da sanidade de Qorpo-Santo não foi suficiente para dar fim à interdição judicial de seus bens.
Em 1868, ele fundara, em Porto Alegre, o jornal A Justiça, praticamente todo redigido por ele mesmo. O jornal, com artigos onde ele discute, ao seu modo, diversos temas – entre eles, uma curiosa reforma ortográfica – também circulou por Alegrete. Mas ele é obrigado a abandonar as atividades jornalísticas em 1873, já que, mesmo com a comprovação de sua sanidade, o estigma junto à preconceituosa sociedade porto-alegrense de então já estava firmado. Nem colaborar com os jornais maiores de sua época era possível. Se dizendo perseguido ideologicamente, passando por dificuldades financeiras devido à interdição de seus bens, tendo de manter a si próprio e a família na atividade de comerciante.
Em 1877, em Porto Alegre, ele constitui uma gráfica própria, onde viabiliza, à própria custa, a publicação de sua obra, reunida numa coletânea conhecida como Ensiqlopédia, ou Seis Mezes de Huma Enfermidade. Estudos apontam que a obra é composta de nove volumes – dos quais, até hoje, só se localizaram seis.
Qorpo-Santo morreu em 1º de maio de 1883, em Porto Alegre, vítima de tuberculose.

RECONHECIMENTO TARDIO
A obra de Qorpo-Santo só começou a ser conhecida na década de 1950, quase 100 anos depois. Diversos fatores estiveram envolvidos, além do estigma que cercou a figura de José Joaquim de Campos Leão: também o fato de as tiragens reduzidas da Ensiqlopédia terem sido feitos em papel de má qualidade contribuíram para tornar a obra extremamente rara. Em tempos recentes, a Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) disponibilizou na internet a versão digitalizada dos volumes do Ensiqlopédia até hoje localizados: os originais dos volumes 2, 4 e 7 (que passaram por meticulosa restauração), e fotocópias dos volumes 1, 8 e 9, todos adquiridos do bibliófilo Júlio Petersen.
O primeiro a se debruçar sobre a obra de Qorpo-Santo foi o jornalista Aníbal Damasceno Ferreira, na década de 1950; em parceria com o diretor teatral Antônio Carlos de Sena, Ferreira começou publicando poemas de Qorpo-Santo no jornal porto-alegrense O Mocho, em 1955. Após uma tentativa frustrada de encenar as peças de Qorpo-Santo no Curso de Arte dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAD/UFRGS), Sena estreia, em 1966, no Clube de Cultura, um espetáculo que reúne três peças de Qorpo-Santo: As Relações Naturais, Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte e Mateus e Mateusa – exatamente cem anos depois que foram escritas. A montagem foi sucesso de público e crítica, e em 1968 viajou para o Rio de Janeiro, para participar do Festival Nacional de Teatros de Estudantes. A crítica da época deu a Qorpo-Santo o aval de teatrólogo revolucionário – o crítico Yan Michalski, por exemplo, escreveu que a redescoberta do autor “torna praticamente obsoletos todos os livros de história da dramaturgia brasileira”. A partir daí, a obra de Qorpo-Santo passa a ser encenada e estudada. O escritor gaúcho foi, inclusive, comparado aos teatrólogos europeus Alfred Jarry (autor de Ubu-Rei), Eugène Ionesco (de A Cantora Careca) e Samuel Beckett (de Esperando Godot), os maiores nomes do teatro do absurdo. Em verdade, Qorpo-Santo teria antecedido Jarry, Ionesco e Beckett – acabou perdendo a primazia porque suas peças nunca foram montadas enquanto estava vivo.
Dois dos maiores divulgadores da obra de Qorpo-Santo foram: Flávio Aguiar, professor aposentado de literatura da USP, que publicou, em 1975, o livro Os Homens Precários, resultado de sua dissertação de mestrado, que analisava a obra de Qorpo-Santo, demonstrando que ele fora, sim, precursor das vanguardas artísticas do século XX, embora ancorado na tradição teatral brasileira do século XIX; e, antes dele, e depois de Antônio Sena, vem o professor de literatura, poeta e pesquisador mineiro Guilhermino César (1908 – 1993), que começou os estudos e a divulgação da obra de Qorpo-Santo no final dos anos 1960.
Esta postagem, aliás, baseia-se no trabalho de Guilhermino César: a base é o livro Qorpo-Santo: as Relações Naturais e Outras Comédias, com fixação de texto, prefácio e notas do professor de literatura. As capas de algumas edições do trabalho de César, publicadas numa parceria entre as editoras Movimento e Co-Edições UFRGS em 1969, e encontráveis com mais facilidade em bibliotecas, vocês podem ver ao longo desta postagem.
Outra coisa há de ser dita antes de prosseguirmos: o trabalho da recuperação da obra de Qorpo-Santo é apenas uma pequena fração da obra de Guilhermino César, estudioso e poeta nascido em Eugenópolis, Minas Gerais, em 15 de maio de 1908, e falecido em Porto Alegre em 7 de dezembro de 1993, em prol da literatura sul-riograndense. A obra de Guilhermino César também compreende livros de poesias, crônicas e estudos referenciais sobre a literatura do Rio Grande do Sul. Em outra ocasião, dou mais detalhes sobre a obra de Guilhermino César – não vamos nos estender além do planejado.
Voltando a Qorpo-Santo: em 1987, o já citado Luiz Antônio de Assis Brasil faz de Qorpo-Santo o principal personagem do seu já citado romance Cães da Província. O “teatrólogo” também dá nome a uma fundação cultural em atividade na cidade de Triunfo, RS (dá para conhecer as atividades da Fundação Cultural Qorpo-Santo através do blog https://fundacaoculturalqorpo-santo.blogspot.com.br/). Essa e outras homenagens foram aparecendo ao longo do tempo – e, de vez em quando, suas peças são montadas por diversos grupos de teatro brasileiros. Também já não é difícil encontrar edições de suas peças nas livrarias, físicas e virtuais, impressas ou no formato e-book.

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA OBRA
Ao todo, Qorpo-Santo escreveu dezessete peças – algumas chegaram aos nossos dias incompletas. Todas estão no volume 4 da Ensiqlopédia. Cada uma tem a data de composição no final do texto. E praticamente todas foram escritas em 1866, cada uma em questão de horas, escritas com incrível rapidez. São elas:
- De 31 de janeiro de 1866, O Hóspede Atrevido ou O Brilhante Escondido;
- Do mês de fevereiro: A Impossibilidade da Santificação ou A Santificação Transformada (dia 12); O Marinheiro Escritor (dia 16); e Dois Irmãos (dia 24);
- Do mês de maio: Duas Páginas em Branco (dia 5); Mateus e Mateusa (dia 12); As Relações Naturais (dia 14); Hoje Sou Um; e Amanhã Outro (dia 15); Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte (dia 16); A Separação dos Dois Esposos (dia 18); O Marido Estremoso ou O Pai Cuidadoso (dia 24); e Um Credor da Fazenda Nacional (dias 26 e 27);
- Do mês de junho: Um Assovio (dia 6); Certa Entidade em Busca de Outra e Lanterna de Fogo (ambas do dia 10); e Um Parto (dia 16);
- Sem data, e incompleta, Uma Pitada de Rapé.
- Existe ainda uma referência não-confirmada a respeito de uma décima-oitava comédia, Elias e Sua Loucura Bíblica, sem data.
As peças de Qorpo-Santo não são das mais acessíveis para o público comum. Tudo por conta de uma série de características que podem ser observadas apenas pela leitura de As Relações Naturais e Outras Comédias.
Uma delas, mas que nada tem a ver com as outras, foi o estigma que cercou a obra de Qorpo-Santo: em sua época, e até tempos recentes, ele era visto pura e simplesmente como “um alucinado que escrevia”. Comparando com outras peças teatrais de sua época, como as do teatrólogo Martins Pena, José de Alencar, Machado de Assis e outros escritores que se arriscaram no teatro, Qorpo-Santo parece ser mesmo um escritor alucinado. Talvez muitos prefiram chama-lo de “um homem à frente de seu tempo”... Mas antes, vamos ver as tais características que tornam suas obras “inacessíveis”.
Para começar, no original, suas peças foram escritas com uma ortografia própria, que destoava das regras vigentes de sua época. Em artigo de 23 de outubro de 1868, em seu jornal A Justiça, Qorpo-Santo defende uma reforma ortográfica que, embora visando uma simplificação da ortografia portuguesa de sua época, previa alguns exotismos, como, por exemplo, a eliminação do H em palavras onde não soa, a supressão das letras Y e W do alfabeto, a troca do Ç pelo S, a eliminação do U após o G nas palavras com as sílabas “gue” e “gui” (ex: guerra – gera), bem como a eliminação dos dígrafos com letras dobradas (RR, SS) e, claro, o uso do Q no lugar do C em algumas palavras – por isso, apesar do Q, o nome Qorpo-Santo se lê “corpo-santo” – para mim, no entanto, a leitura poderia ser “kuorpo-santo”. Apenas uns poucos escritores posteriores a José Joaquim de Campos Leão ousaram adotar uma ortografia semelhante, cheia de exotismos – mas também não se isentaram de críticas.
Outra característica das peças de Qorpo-Santo está na condução das tramas: as peças, em geral, se compõem de pequenas cenas, com troca constante de personagens e situações que parecem não ter nada a ver umas com as outras – em várias oportunidades, os personagens mudam de aparência e até de nome. Qorpo-Santo, por dedução, fazia uso da escrita automática, escrevendo todas as falas e indicações dos gestos dos autores em uma única sentada, sem se preocupar em revisar ou reler o que escreveu, confiante em seu talento. Sua maior preocupação não é a coerência e a concatenação das situações, de modo a colocar algum sentido nas tramas, mas sim embutir críticas sociais – à política, às leis, à religião, ao tratamento com as mulheres, ao comportamento social como um todo – nas falas dos personagens.
Por conta dessa característica, lidas assim, “por cima”, as peças de Qorpo-Santo não possuem coerência, ou, na linguagem popular, “não tem pé nem cabeça”. Ainda assim, as ações dos personagens, e algumas falas, garantem, quando vistas no palco, risadas do público. E muitos críticos percebem, nesse nonsense, uma fuga dos preceitos do teatro romântico e realista, que fazia sucesso na época.
Falando em personagens, muitas vezes eles condizem com a personalidade de seu autor. A começar pelos nomes a eles atribuídos: Qorpo-Santo batiza os personagens masculinos, algumas vezes, com nomes exóticos, como Truquetruque, Inesperto, Impertinente, Malherbe, Ruibarbo e Guindaste; em outras, utiliza o “aportuguesamento” de nomes estrangeiros, como Robespier (Robespierre) e Almeida Garrê (Garrett); as personagens femininas muitas vezes recebem nomes derivados da “feminização” de nomes masculinos, como Pedra, Silvestra, Mateusa, Luduvica, Gonçala. E, em algumas ocasiões, os personagens nem nome recebem, sendo identificados apenas como Lindo, Linda, Menina, Rapaz.
Nem mesmo Qorpo-Santo perde a oportunidade de se fazer personagem de suas peças! Se é verdade que o personagem de uma obra carrega um pouco da personalidade de seu autor, então muitos dos personagens principais de Qorpo-Santo são projeções inteiras dele mesmo, em palavras e atos. Por exemplo: o personagem Impertinente, de As Relações Naturais, é praticamente o alter-ego de Qorpo-Santo; e, em Hoje Sou Um; e Amanhã Outro, ele é descrito por um dos personagens como uma espécie de sábio com teorias revolucionárias – seu nome, no entanto, é cifrado. Em Um Credor da Fazenda Nacional, seu nome também aparece na fala de um personagem. Modéstia não era a melhor qualidade de Qorpo-Santo: ele praticamente se via com um olho em uma terra de cegos, só para usar uma expressão mais popular.
Às vezes, Qorpo-Santo não perde a oportunidade de “puxar a orelha” de alguns conhecidos seus – alguns personagens remetem, por exemplo, a médicos e magistrados responsáveis por sua desgraça pessoal.
Qorpo-Santo também gostava de falas rimadas, meio musicadas, compondo ditados e trocadilhos. Às vezes, insere versos cantados, porém não se preocupou em tentar elaborar uma partitura musical para as mesmas.
As personagens parecem se comportar de forma histérica e se deixando levar por ações ilógicas. Eles gritam, cantam, e em grande parte do tempo, brigam entre si, se criticam e criticam as instituições de seu tempo, do governo ao casamento – apenas em poucos momentos, eles se entendem e demonstram amor sincero uns pelos outros. Qorpo-Santo também parece não ter pena das mulheres: elas são as vítimas mais constantes de suas críticas e de sua histeria (seria reflexo de seu difícil casamento com Dona Inácia, já que foi a pedido dela que seus bens acabaram interditados – enquanto José Joaquim suspeitava de adultério?).
O sexo (segundo a reforma ortográfica de Qorpo-Santo, ficaria “seqso”) parece ser outra obsessão de Qorpo-Santo em suas peças. Nestas são embutidas ideias “avançadas” sobre as relações entre homens e mulheres de sua época, como, por exemplo, a presença de prostitutas como personagens, algo incomum para o teatro do século XIX; ações que hoje soam como abuso sexual, como um personagem “apalpar os peitos” de sua interlocutora, dentre outros que se bolinam; constantes discussões sobre adultério (que não raro terminam em crimes passionais), homens divididos entre duas mulheres, casamento, convivência sobre o mesmo teto; porém, nada disso parece superar a peça A Separação dos Dois Esposos, onde os personagens Tatu e Tamanduá, dão a entender, nas falas finais da peça, que são homossexuais – aliás, é o primeiro registro literário brasileiro do homossexualismo masculino tratado com naturalidade e sem tabus. O bizarro é que, na vida real, houve indícios que José Joaquim Leão era um conservador empedernido, bem diferente do anárquico Qorpo-Santo das peças. É o caso literal do Hoje Sou Um; e Amanhã Outro...
Além do mais, as peças de Qorpo-Santo possuem exigências técnicas que não seriam possíveis com as limitações do teatro do século XIX, como por exemplo, personagens que simulam perder partes do corpo no palco, personagens contracenando com animais vivos, tirados de um saco, ou uma peça que termina com “milhares de luzes que descem e ocupam o espaço do palco”. Os textos das peças ainda contam com indicações opcionais para o término: ela pode terminar harmonicamente, com todos cantando, ou em estado de caos e bagunça, a escolha é dos atores.
O nonsense presente no teatro de Qorpo-Santo, antes de tudo, é um reflexo do inconformismo do autor com os costumes de sua época. Principalmente por causa das muitas interdições e perseguições que sofreu ao longo da vida. Isso está claro no modo como Luiz Antônio de Assis Brasil retratou o homem em Cães da Província. Teatro do absurdo é justamente isso: o questionamento da sanidade da sociedade, através de um incômodo e surreal espelho de sua época. Convenhamos: praticamente, pouca coisa mudou da época de Qorpo-Santo para cá.

QORPO-SANTO SEGUNDO GUILHERMINO CÉSAR
Bem. A edição usada como base para a postagem, da edição de As Relações Naturais e Outras Comédias, com organização, estudo crítico e notas de Guilhermino César, e publicada pelas editoras Movimento e Co-Edições UFRGS, é a segunda, de 1976. Na época, só haviam sido encontradas três edições integrais da Ensiqlopédia – os volumes 2, 4 e 7, em arquivos particulares, como o do professor Dário de Bittencourt e o do escritor Olyntho Sanmartin.
Guilhermino César tomou por base para a publicação nove comédias de Qorpo-Santo: As Relações Naturais; Mateus e Mateusa; Hoje Sou Um, e Amanhã Outro; Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte; Um Credor da Fazenda Nacional; Um Assovio; Certa Entidade em Busca de Outra; Lanterna de Fogo; e Um Parto.
Guilhermino César, na transcrição dos peças, tomou o cuidado de adaptá-las, onde foi necessário, para a ortografia vigente nos anos 1970. O livro inclui um extenso estudo crítico introdutório sobre Qorpo-Santo, onde se incluem: trechos de poemas do homem, onde se nota que eles obedecem uma excêntrica construção literária, com musicalidade e ritmo; uma autobiografia de Qorpo-Santo, extraída de um dos volumes da Ensiqlopédia; transcrição de documentos de sua época, como os autos dos exames psiquiátricos a que foi submetido, trechos de artigos de Qorpo-Santo para jornais (incluindo o referente à reforma ortográfica) e o testamento, com a vultosa relação de bens deixados para a família. Daí, para as peças selecionadas.
Começando com As Relações Naturais, em quatro atos, uma coleção de cenas onde Qorpo-Santo discute o relacionamento mais adequado para o homem e a mulher – as relações ditas “naturais”, segundo o autor, seriam baseadas unicamente no sexo, sem o envolvimento amoroso. O autor não estava nem aí para o casamento – nessa peça, aparecem prostitutas como personagens, e insinuações de incesto.
A peça seguinte, Mateus e Mateusa, em um ato e em um alegre tom farsesco, parece ser a peça que mais faz sentido. Trata do relacionamento cheio de discussões violentas de um casal de velhos, com a intervenção de suas jovens, carinhosas e algo interesseiras três filhas.
Hoje Sou Um; e Amanhã Outro, em três atos, se apresenta como um caso de dupla personalidade, mas demanda atenção na leitura de seu roteiro. A peça se passa em uma corte, onde um rei precisa lidar com um conflito armado que ameaça seu reino. Nessa peça, em um momento, o ministro real descreve a vida e o pensamento de um certo sábio gaúcho – um tal de Qorpo-Santo – autor de uma revolucionária teoria sobre a transmigração das almas.
Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte, em dois atos, trata de uma história de amor que termina em tragédia: dois homens, disputando uma mesma mulher. O grande forte dessa peça é o elemento-surpresa: um dos homens é o verdadeiro marido da mulher, e o outro a roubou. Com quem ela deve ficar? Qual dos dois deve pagar por seu “crime” passional?
Um Credor da Fazenda Nacional, em dois atos, é uma peça mais burocrática, apesar de rápida – trata de um caso de cobrança. Nela estão embutidas algumas críticas à situação da política de seu tempo e à burocracia estatal.
Um Assovio, em três atos e um quadro, e ambientada em Paris, França, trata da complicada relação entre um patrão e seu empregado, numa crítica aos janotas, aos rapazes ricos e ociosos de sua época.
Certa Entidade em Busca de Outra, em dois atos, trata das maluquices de um velho homem e seu relacionamento com uma donzela. A peça conta, inclusive, com a “participação especial” de Satanás, mas que resolve não ficar muito tempo para ver o que acontece. A peça também contém insinuações de abuso sexual (aos olhos de hoje).
Lanterna de Fogo, em três atos e dois quadros, é a peça mais longa e elaborada do “teatrólogo”. Trata da vida, do envelhecimento precoce e da morte de um homem, Robespier, que, entre relacionamentos difíceis com diversas pessoas, passa sua vida à procura de uma herança deixada por seu pai.
Por fim, Um Parto, em três atos, começa com um monólogo, com uma degustação de comidinhas acompanhada de reflexões “filosóficas”, e prossegue com quatro estudantes envolvidos com o parto em questão – de uma cabra.
Por estas descrições, não tente entender o que “o alucinado que escrevia” queria dizer: o melhor que você tem a fazer, leitor, é tentar ler a peça completa.
Talvez tenha sido por causa dos tabus correntes nos anos 1960 que Guilhermino César não incluiu A Separação dos Dois Esposos na sua relação de peças selecionadas de Qorpo-Santo. Sabem como é, Regime Militar e tal. Mas as incluídas no livro não tem nada de subversivas – ao menos, na primeira olhada – e, até onde sabemos, não sofreram censura por parte dos “homens da tesoura” dos anos 1970. Censurado, isso sim, foi o grupo de teatro que encenou as peças em 1969, mas isso é outra história.
Tanta gente vê esta realidade como absurda. Isso porque ainda não leram a respeito de Qorpo-Santo... Bem, vocês agora tirem suas conclusões. Terminaremos em harmonia ou em caos e bagunça?

Referências:
E o livro referido: LEÃO, Joaquim José de Campos. QORPO-SANTO: As Relações Naturais e Outras Comédias. Fixação do texto, prefácio e notas por Guilhermino César. Porto Alegre: Movimento; Co-Edições UFRGS, 1976 (2ª edição).

Esta postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado originalmente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Este livro, como tantos outros resenhados aqui, está disponível na Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges, de Vacaria, RS. Procurem e surpreendam-se. Em caso de dúvidas, pergunte a uma das bibliotecárias, elas podem ajudar.
Em breve, nova resenha, novo autor para o pessoal conhecer.

Até mais!