Olá.
Aqui
é o Rafael novamente.
Hoje,
em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública, trago ao público
realmente interessado em cultura mais um livro de Fidélis Dalcin Barbosa,
visando ao resgate da vida e da obra deste autor gaúcho que dedicou sua vida a,
com sua arte, levar cultura e informação aos leitores de outrora – e os de
hoje, se nada tiverem contra.
O
livro escolhido de hoje reúne história, romance, epopeia de um povo determinado
e, consequentemente, clichês sobre o tema tratado.
O
livro de hoje se chama CAMPO DOS BUGRES. Já resenhados os livros da série
“Prisioneiros”, hoje então variaremos um pouquinho.
CAMPO
DOS BUGRES – A VIDA NOS PRIMÓRDIOS DA IMIGRAÇÃO ITALIANA foi lançado em maio de
1975, pelas editoras EST (Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes,
de Porto Alegre, RS) e Sulina (também de Porto Alegre). O romance faz parte de
uma série, lançada pela EST, em comemoração ao centenário da imigração italiana
no Rio Grande do Sul, comemorado naquele ano.
Em
CAMPO DOS BUGRES, Frei Fidélis se dispõe a narrar, através da saga fictícia de
um personagem, a formação da cidade de Caxias do Sul, RS, importante colônia
italiana, e cujo desenvolvimento econômico e social se deve ao trabalho dos
imigrantes.
Reconhecidamente,
Caxias do Sul é um importante polo econômico da região da serra gaúcha. Onde,
anualmente, se realiza a Festa da Uva. Terra também do cartunista Carlos
Henrique Iotti, criador do personagem Radicci, um dos maiores contrapontos ao
clichê do descendente de imigrante italiano trabalhador e obstinado. Enfim.
Caxias do Sul, uma das maiores vitrines do desenvolvimento do Rio Grande do Sul
– hoje, com algum declínio devido à decantada crise econômica nacional e
mazelas inclusas.
Em
seus primórdios, Caxias do Sul era chamada de Campo dos Bugres, visto que seus
primeiros ocupantes eram os índios da etnia caigangue. Só na segunda metade do
século XIX é que a região passou a ser extensivamente ocupada. Foi um dos
pontos de ocupação dos imigrantes italianos no Rio Grande do Sul, fugidos da
Itália recém-unificada, mas ainda fragilizada.
O
povo italiano, principalmente os camponeses, perecia depois da longa série de
conflitos entre os reinos da Península Itálica e o Império Austro-Húngaro, pela
causa dos primeiros – a unificação dos reinos italianos em um só país. A
política de distribuição de terras na Itália não favorecia aos camponeses mais
pobres, e a grande maioria destes optou pela imigração subvencionada para a
América, naquela época a cucagna, a
terra das promissões, das oportunidades de fazer fortuna. Brasil, Argentina e
Estados Unidos eram os principais destinos dos colonos, que vinham para o
continente em navios no geral superlotados e em condições precárias de higiene,
com o risco de acabar morrendo durante a viagem e ter seu corpo jogado ao mar –
mas com a vantagem de a viagem ser custeada pelo governo desses países.
Uma
vez alcançado o continente e o Rio Grande do Sul, os colonos italianos, em sua
maioria, precisaram abrir caminho através do mato para poder chegar ao lote de
terra financiado junto ao governo brasileiro. E, com um trabalho penoso e duro,
mas compensador, muitos imigrantes conseguiram “fazer a América”, construir um
conforto material para si e seus descendentes. E, de quebra, contribuir com o
desenvolvimento da terra que os acolheu. Houve os que se arrependeram de ter
vindo à América, e os que simplesmente não conseguiram prosperar, mas essas
histórias são menos levadas em conta que as histórias dos que conseguiram
vencer no nosso continente “de macacos, serpentes venenosas, índios
antropófagos e tigres e leões assassinos”.
Buono.
CAMPO DOS BUGRES inicia em 1885, dez anos depois do início da experiência
migratória no RS. Começa na Itália. Começa quando Eduardo Segalla, o personagem
principal, e que narra a história em primeira pessoa, retorna para sua região,
o Sármede, depois de lutar na guerra da Unificação. Porém, ali não encontra
seus pais e irmãos. É acolhido pelo avô, que lhe informa que a família, tendo
dado Eduardo como morto na guerra, migra para a América. Após alguns dias na
casa do avô, e tendo ouvido opiniões de pessoas próximas, Eduardo resolve
migrar também para a América. Na Itália, naquele momento, ele não teria muito
futuro – o sentimento da unificação ainda não se instalara nos corações de
todos os italianos, os camponeses, por mais que trabalhassem, continuavam
pobres, e havia uma ameaça de uma nova guerra.
Embora
o avô quisesse que Eduardo ficasse na Itália, ele ajuda o rapaz com os
preparativos da viagem, feita de navio, desde o porto de Gênova, nas já citadas
condições precárias. Eduardo teve sorte de não ter sido um dos que perderam a
bagagem durante a viagem. Com outros migrantes, Eduardo desembarca no Rio de
Janeiro, depois pega outro navio em direção ao Rio Grande do Sul. Desembarca em
Porto Alegre, depois vai até São Sebastião do Caí, região povoada por alemães.
E, de lá, após receber possíveis informações do paradeiro dos pais, Eduardo
segue para Campo dos Bugres.
A
viagem até a atual Caxias do Sul é feita em uma tropa de mulas, guiadas pelo
tropeiro Pedro. Junto a Eduardo, acompanha a tropa uma família, os Caon, casal
e seis filhos. No meio da jornada, Pedro vai dando aos imigrantes informações
sobre a nova terra – há, inclusive, uma citação a respeito de Luís Bugre e da
tragédia da família Versteg, respectivamente vilão e personagens principais de Prisioneiros dos Bugres.
Com
Pedro, Eduardo também aprende sobre o valor dos pinhões como fonte de sustento
na longa jornada. E, mais tarde, do valor dos próprios pinheiros araucárias
para as construções.
Chegando
ao então povoado em formação, Eduardo, no início, resolve se separar dos Caon
para continuar na busca pela família. Porém, alguns imprevistos – como a
possibilidade de ter de voltar todo o caminho de novo para ir em outra direção
– o fazem ficar em Campo dos Bugres, praticamente adotado pelo casal Antônio e
Maria Caon, e seus seis filhos. Enquanto os homens – Eduardo, Antônio e os dois
filhos mais velhos deste, Luís e José – se encaminham para o lote de terra que
lhes coube e iniciam a construção de uma casa provisória, as mulheres e
crianças têm de aguardar em um barracão, a morada provisória dos recém-chegados.
Eduardo,
naturalmente, recebe seu próprio lote, mas precisa ajudar os Caon na construção
de sua moradia. Derrubando mato, cortando madeira para erguer a casa, se
alimentando de carne de caça, pinhão e polenta feita com farinha de milho
comprada na colônia. Por vezes, precisam pedir emprestadas ferramentas e outros
recursos junto a vizinhos. Só depois da casa pronta, e enfrentando alguns
percalços – como o causado por conta de uma tempestade – é que os colonos já
podem se dedicar a uma horta. A convivência, o trabalho conjunto e os
sofrimentos compartilhados, ao som dos pássaros e da tradicional cantoria
italiana, criam uma cumplicidade entre Eduardo e os Caon, que acabou resultando
na união de famílias – um pouco mais tarde, Eduardo casa com Rosalina, a filha
primogênita dos Caon.
O
modo como se deu esse casamento é um capítulo a parte. Rosalina se apaixona por
Eduardo, mas só consegue se declarar a ele em uma ocasião em que ele fica
doente, de cama, e aos cuidados das mulheres dos Caon. A inesperada declaração
de Rosalina para Eduardo também contribui para que o rapaz fique mais tempo em
Campo dos Bugres – durante a crise da enfermidade, Eduardo se arrepende de ter
aceitado a colônia e cogita sair dali e continuar procurando pela família.
Porém, ambos adiam o casamento de imediato – primeiro, Eduardo precisa ajeitar
sua colônia e fazer um “pé-de-meia” para manter a futura família; Rosalina, por
sua vez, decide ela mesma fazer o enxoval com linho plantado na colônia. O
namoro entre os dois foi bem pouco romântico, mas, após o casamento, em 1887,
as coisas começaram a melhorar.
Os
colonos inicialmente dedicam-se à agricultura – com plantações de milho,
abóbora, uvas. Uma parte para sustento próprio, o excedente vendido. Só um
pouco mais tarde os colonos já criam condições para criar animais – galinhas,
porcos, vacas leiteiras, cavalos e mulas para transporte. A plantação de uvas
possibilita a posterior fabricação de vinho, atividade a qual Eduardo também se
sobressai. E os colonos nunca esquecem a tradicional religiosidade – ajudam a
erguer capelas e igrejas. Há episódios de gente que blasfema, por causa da má
sorte – ofendem os céus até mesmo por causa de uma carroça atolada.
Mas,
antes de alcançar alguma prosperidade, Eduardo precisa se dedicar a outras atividades
para juntar mais dinheiro. Uma delas foi buscar trabalho remunerado entre os
fazendeiros de Vacaria e Lagoa Vermelha. Ele e os parceiros deixam suas
propriedades aos cuidados de gente de confiança, e voltam a tempo para a safra
das lavouras. Mas a experiência do trabalho no Planalto seria marcante para os
colonos: além do compensador ordenado, eles aprendem mais sobre a cultura
gaúcha, diversificada da cultura italiana.
Só
pouco depois do casamento, Eduardo afinal recebe resposta do paradeiro dos pais
e irmãos: eles estão morando na colônia de D. Isabel, atual Bento Gonçalves.
Mas Eduardo demora mais um pouco para ir de encontro a eles. Antes, vai
diversificar seus negócios. Aceitando o conselho de um vizinho, Eduardo monta,
em sociedade com o sogro, uma tropa de mulas para vender seu vinho para outras
localidades – aproveitando, inclusive, a multiplicação das estradas, que
eliminam o sofrimento de ter de abrir caminho através do mato. Inclusive, fica
íntimo de um rico fazendeiro vacariense, que se torna padrinho de um de seus
filhos.
E
seu negócio vai prosperando aos poucos: os anos passam, nascem os filhos, e
Eduardo já está em condições de deixar sua plantação aos cuidados de gente de
confiança e montar uma cantina, para comercializar seu vinho, dentro da vila de
Caxias do Sul – dividindo o barracão com a fábrica de artigos de vime do sogro.
Alfabetiza os familiares e matricula os filhos nos nascentes colégios de
Caxias, dirigidos por ordens religiosas – se contrapondo a uma parcela dos
colonos, que preferiam trabalhar na lavoura a estudar. Enquanto isso, assiste
ao desenvolvimento de Caxias do Sul, de povoado a cidade. Assiste a era das
carretas puxadas por animais, aproveitando as estradas, mas tais veículos eram
constantemente sujeitos a atolamentos em dias de chuva – a pavimentação das
estradas de terra batida só viria depois. Assiste depois a chegada dos
caminhões, substituindo as carretas no transporte de mercadorias (e Eduardo e
os Caon não apenas assistem, eles participam dessas eras dos transportes).
Assiste a chegada da ferrovia – e leva um grande susto ao ver uma locomotiva de
perto. Assiste a formação das primeiras indústrias de Caxias do Sul,
coordenadas, claro, por italianos e descendentes.
Só
mais tarde, aproveitando um momento de folga, Eduardo vai atrás dos pais, que vivem
em condições mais ou menos precárias em Bento Gonçalves. O reencontro é
emocionante, mas Eduardo tem algum trabalho para convencer os pais a irem com
ele para Caxias. Um dos irmãos de Eduardo, inclusive, era barqueiro, fazendo
transportes através dos rios, de balsa. Eduardo deixa a granja aos cuidados dos
familiares, enquanto trabalha na cantina. E continua assistindo a evolução de
Caxias do Sul, e os acontecimentos do Brasil e do Mundo: as revoltas de 1895 e
1923 no Rio Grande do Sul, a Primeira Guerra Mundial, a epidemia de Gripe
Espanhola.
E a
história de Eduardo se desenvolve assim, com os clichês que se observam em
histórias da imigração italiana – tanto se escreveu a respeito da imigração
italiana no Rio Grande do Sul, tanto se pesquisou, tanto se publicou, tanto se
utilizou nas telenovelas, que hoje qualquer obra que traga a saga de um colono
italiano, com tudo o que foi descrito acima, inevitavelmente soará clichê.
Fidélis Barbosa praticamente não deixa escapar nada ao narrar a saga de um
colono italiano. Não deixa escapar o tradicional didatismo de seus livros: a
história, a geografia do Rio Grande do Sul, a descrição minuciosa do trabalho
dos tropeiros, dos fazendeiros, dos comerciantes, dos barqueiros... Não esquece
também de fazer referências a alguns crimes que chocaram a região de Caxias, à
Festa da Uva, à fundação das primeiras igrejas da região, às mudanças na
política local... E também não deixa de lado a religiosidade e o final feliz.
Tudo
em 104 páginas, sem contar capa, em uma narrativa que, embora demande a devida
atenção por parte do leitor para captar todos os detalhes (talvez até exigindo
que o leitor leia todo o livro de novo), é fácil de entender, pois visa o
público mais jovem. E ainda inclui ficha de leitura para uso em escolas, e dois
dicionários: um onomástico (com as referências a nomes citados na história) e
um toponímico (com as referências aos locais citados). Não há referência,
entretanto, da autoria da ilustração da capa.
Cheios
até a boca devemos estar com histórias de luta e sofrimento dos imigrantes
italianos que “fizeram a América”, mas nunca é demais ouvir uma história a
mais, ler uma história a mais. Afinal, estamos falando de gente que construiu
uma vida confortável sem as facilidades tecnológicas de hoje em dia – e vale a
pena aprender.
Então:
deixem de desculpas e procurem na biblioteca mais próxima (inclusive, na
Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges, onde há um exemplar): CAMPO DOS
BUGRES. Enquanto não tem para e-book, temos de nos contentar com a versão em
papel...
Esta
resenha é uma versão revista e alterada do texto publicado originalmente no
blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem para conhecer.
No
momento em que escrevo, ainda está a se realizar a Feira do Livro de Vacaria.
Aproveitem para visitar – até o dia 23 de outubro, na Praça Daltro Filho.
Em
breve, nova resenha.
Até
mais!
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