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domingo, 19 de fevereiro de 2017

Seção Resenha de Livros: O FILHO DO BABY DOLL

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública!
Hoje, volto a falar da obra de Fidélis Dalcin Barbosa, escritor e ex-padre. Hoje volto ao resgate de sua obra. Hoje, volto a falar de mais um de seus livros de contos, de pequenas histórias que evocam um passado bucólico e mais acolhedor do Rio Grande do Sul.
Hoje, vou falar de O FILHO DO BABY DOLL.
O FILHO DO BABY DOLL foi publicado pela primeira vez em 1992, pela Tipografia e Editora La Salle, de Canoas, RS – as indicações da editora constam na última página; pela falta de ficha catalográfica nas páginas iniciais da obra, é possível crer que o livro foi lançado de forma independente, à custa do próprio autor. A ilustração de capa é de Elita Facchini.
O livro reúne 20 contos do autor, sendo alguns já publicados anteriormente, em outros livros. Desse conjunto, 10 contos seriam republicados na nova edição de O Primeiro Beijo, lançada no ano seguinte – se eles, claro, não haviam aparecido na edição de 1961. Aliás, na orelha do livro, consta a informação: dos 20 contos, uns são inéditos, outros reproduzidos de livros esgotados – mas sem passar por atualização ou revisão.
Bem. Quando resenhei O Primeiro Beijo, falei desses 10 primeiros contos: O Filho do Baby Doll, Respeito, O Pequeno Marginal, A Normalista, O Pinheiro, Tesouro Escondido no Campo, O Nhandu, O Negrinho do Pastoreio, O Ébrio e Arlete. A estes, no presente livro, se juntam os contos Perseguido de Mulheres, O Hoteleiro, Pescador de Coruja, Pescaria a Dinamite, Lagoa Vermelha – 110 Anos, Quinzote, Os Guadagnin, O Combate da Encruzilhada, Granjeiro Modelo e Granja Três Pinheiros.
O FILHO DO BABY DOLL, embora não deixe de lado o moralismo e a religiosidade comuns à obra do autor, desta vez investe mais em resgatar histórias mais cotidianas, de conhecidos seus ou de gente que fez a diferença em suas regiões. Várias das histórias tem caráter humorístico e evocativo do passado do interior do Rio Grande do Sul – prevalece, nesta obra, o Frei Fidélis contador de causos. Boa parte das histórias se passa na cidade de Lagoa Vermelha, RS, e região – cidade onde Frei Fidélis fixou residência na maior parte de sua carreira.
Bem. Vamos ver – e rever – os contos que compõem esse livro.
Abrindo com O Filho do Baby Doll, que dá título ao livro. O conto procura ser um tratado sobre o relacionamento ideal entre marido e esposa, através da história de uma mulher, esposa de um prefeito que, a conselho de um psicólogo, reencontra o entendimento com o marido reinvestindo no cuidado com a aparência pessoal.
Respeito foi extraído do folclore paranaense. A história de um cachorro “de unha perdida” que, em vida, operava incríveis façanhas junto a sua família; e, depois de ter um fim trágico, começou a operar milagres, como um santo. Como? Leiam para saber!
O Pequeno Marginal conta, em primeira pessoa, a história do filho de uma prostituta, nascido em Lagoa Vermelha, que vive uma vida marginal, vivenciando até sentimentos de vingança – ele tenta, várias vezes, matar um homem que lhe fizera mal – até ser recolhido à Casa do Menor Abandonado daquela cidade e, sob os cuidados do professor Idílio Biavatti (ex-aluno de Fidélis Barbosa), acaba descobrindo o caminho da redenção, do perdão, da vida honrada e do futuro melhor.
A Normalista é outra história com a presença e intervenção do Prof. Biavatti. É narrada a história de como o professor conseguiu salvar uma aluna do Colégio Rainha da Paz, de Lagoa Vermelha, que havia sido desgraçada por um rapaz, da prostituição, e ainda conseguiu reconciliá-la com o tal rapaz, formando uma família e garantindo a ela um futuro honrado.
O Pinheiro conta a história de uma enorme araucária que enfeitava a beira da BR-285, em Lagoa Vermelha, atraindo a admiração dos passantes – incluindo o autor – até ser criminosamente derrubado. Mas a finalidade da derrubada, que no fim foi útil, impede que o narrador da história reclame com o culpado.
Tesouro Escondido no Campo narra a história de um jovem pobre, empregado de uma serraria do município de Barracão, RS, que, guiado por sonhos, decide comprar um lote de terra, buscando encontrar nele um tesouro escondido; mas acaba encontrando mais do que a princípio esperava – e ao custo de um trabalho árduo e honesto.
O Nhandu é uma história humorística. O garoto Valentim – Valentim Rodegheri, o conhecido Frei Brás de Lagoa Vermelha – vivencia uma cômica experiência durante uma caçada pelos campos, decidido a pegar uma ema, a avestruz latino-americana. Porém, sem resultados positivos... Ao mesmo tempo, o leitor, além de se divertir com essa caçada, também aprende a respeito da ema.
O Negrinho do Pastoreio é a recriação de Fidélis Barbosa de uma das lendas tradicionais do Rio Grande do Sul. Porém, há uma terrível constatação: o conto, na verdade, é uma versão resumida e até copiada de conto do pelotense Simões Lopes Neto! Comparem o conto deste livro com a versão da história presente no livro Lendas do Sul...
O Ébrio trata dos males causados pelo alcoolismo. Um homem acaba levando a família à desgraça por conta do vício nas bebidas alcoólicas, até que, em um último ato desesperado, a esposa o recomenda para trabalhar em um colégio de freiras. Mas até ali, ele acaba driblando a abstinência, até que um milagre o faz, afinal, se curar.
Perseguido de Mulheres trata de um episódio da vida de um amigo de Fidélis Barbosa, Bélio Fiori, de Vila Flores, RS, quando este foi a Urucânia, MG, pedir a bênção a um padre – e, ali, é seguido quase que obsessivamente por uma moça local.
O Hoteleiro é um resumo da história de Daniel Bertelli, que foi tema de um livro anterior de Frei Fidélis (Daniel Bertelli, Hoteleiro, Porto Alegre: EST, 1987). O católico e fervoroso Bertelli iniciou suas atividades de hoteleiro em Lagoa Vermelha, mudando-se posteriormente para o Paraná; lá, na cidade onde se instalou, o hoteleiro move mundos e fundos para construir uma igreja, e para conseguir um pároco para a mesma – até que consegue convencer um ex-padre a voltar ao sacerdócio.
Arlete conta um episódio da vida do Padre Paulo – alter-ego de Fidélis Barbosa – que estrelara uma série de contos em O Primeiro Beijo. A caminho de Portugal, onde ficaria alguns anos, o Padre passa uns dias no Rio de Janeiro, e a empregada de uma livraria acaba se apaixonando por ele. Apesar de esse amor não poder ser levado adiante, a moça e o padre continuam a se corresponder à distância, até que, um dia, subitamente, Arlete não dá mais notícias. O que acontecera?
Pescador de Coruja trata das façanhas de Daniel Barreto, também de Lagoa Vermelha, exímio atirador e que conseguira, inclusive, pescar uma coruja! Causo de pescaria? Frei Fidélis garante que é verdade...
Por falar em pescaria, o conto seguinte, Pescaria a Dinamite, também trata de uma aventura de pesca inacreditável, também vivenciada por conhecidos de Frei Fidélis. Tal aventura se dá por conta de uma controversa técnica de pesca praticada por um dos personagens – mas que, no fim, o faz perder o cachorro.
Lagoa Vermelha – 110 Anos é a reprodução de um discurso do vereador José Antônio de Andrade, ex-aluno de Frei Fidélis, proferido na ocasião do aniversário de 110 anos do município, comemorados em 1991 – se não estou enganado.
Falando em Lagoa Vermelha, Quinzote resgata a história de valentia e tragédia de um dos fundadores do município, Joaquim Antônio Fernandes.
Os Guadagnin também evoca o município de Lagoa Vermelha, que já foi – e continua sendo – um importante polo de fabricantes de móveis. Que o diga a família Guadagnin, fundadora da Móveis Rodial, ainda em funcionamento. A crônica se concentra, principalmente, na história de um dos membros da família, Antônio, e de como ele conseguiu driblar uma morte trágica, na primeira metade do século XX.
O Combate da Encruzilhada também se passa na região de Lagoa Vermelha. É a tentativa de resgatar um episódio sangrento da Revolução de 1923, conflito ocasionado por conta da tentativa do governador Borges de Medeiros em se perpetuar no poder.
Granjeiro Modelo foi publicada originalmente no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, em 1964 (isso está informado no fim da crônica), e resgata tanto a história como um depoimento do empreendedor Raul Feijó, e seu modelo de gerenciamento dos empregados de sua granja. Lembra o romance Prisioneiros do Campo.
E, por fim, Granja Três Pinheiros resgata a história da empresa que já foi a maior produtora e comercializadora de cereais da região de Lagoa Vermelha – bem como a de seus proprietários, o português Adriano Botelho Machado e sua esposa, Alzira Bonotto. O conto resgata a história do esforçado Adriano, que enxerga valor no aproveitamento total dos pinheiros – incluindo suas partes “inúteis” – e como ele conheceu a esposa. Inclui uma foto – a única ilustração do miolo do livro.
Só quem conhece Lagoa Vermelha notará algo familiar nas crônicas de O FILHO DO BABY DOLL. Os outros encontrarão nas páginas deste livro o resgate de uma época que já foi, mais ensolarada, e infelizmente, superada – ficaram os sentimentos negativos. Seria o símbolo de um lado “positivo” da época do Regime Militar? Que fique claro que, ao contrário do que propagam por aí, o período 1964 – 1985 não foi homogêneo: houve gente que conseguiu viver de forma diferente do “modelo econômico”, das guerras entre “direita” e “esquerda” e da censura. A prova disso é que estamos aqui, descendentes de quem viveu naquela época.
De todo modo, fica a recomendação: O FILHO DO BABY DOLL, para quem quer tentar conhecer como se vivia no século XX.

Esta resenha é uma versão revisada e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Visitem a Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges, e conheçam o que temos disponível da obra de Fidélis Dalcin Barbosa!

Até a próxima resenha!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Seção Resenha de Livros: O PRIMEIRO BEIJO

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, retornando com suas colaborações para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje, vou falar mais uma vez de livro.
Hoje, voltarei a falar sobre o escritor gaúcho Fidélis Dalcin Barbosa, o qual me dispus a resgatar sua obra, na medida do possível.
Hoje, trago aos leitores um de seus primeiros livros publicados. Escolhi, para hoje, um de seus primeiros livros de contos.
Hoje, então, vou falar de O PRIMEIRO BEIJO.
O PRIMEIRO BEIJO foi publicado pela primeira vez em 1961, pela editora Lar Católico, de Juiz de Fora, MG, e foi o terceiro livro que ele lançou – no mesmo ano, ele já havia lançado o também livro de contos Semblantes de Pioneiros e o romance infanto-juvenil O Prisioneiro da Montanha. A edição acima de O PRIMEIRO BEIJO, com capa minimalista de Elita Facchini, foi lançada pela editora EST (Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes), de Porto Alegre, RS, em 1993, portanto, trata-se de uma edição atualizada, com acréscimos. Mesmo assim, será a base de nossa postagem.
O presente livro é uma reunião de 24 contos, distribuídos em 160 páginas (sem contar capa), que revelam, além de um escritor em início de carreira, o pensamento de um então padre, guiado pelo moralismo conservador de sua época. Por isso, vários dos contos do livro apresentam por características:
1 – Sua visão de religião cristã, no sentido da promoção da caridade, da conversão para o bem e o combate às tentações malignas, por vezes usando como exemplo vidas de santos e de beatos, e usando, à larga, citações da Bíblia;
2 – Sua visão de família, que, para ele, ideal que seja a nuclear, formada por marido, esposa e filhos, vivendo uma vida baseada no respeito mútuo e às instituições, na educação adequada das crianças e na indissolubilidade do casamento (nenhuma referência à homossexualidade, a mínima que seja);
3 – Sua visão da modernidade, que por vezes se opõe aos avanços de sua época, como o controle de natalidade – o que, naturalmente, acaba fazendo Fidélis Barbosa ser classificado como um contista “carola” e “conservador”, “fora de moda”, etc.;
4 – Por consequência, sua visão de bem e de mal, que praticamente não bate com o pensamento dos dias de hoje, em alguns aspectos. Em outros, ainda entra em concordância, como, por exemplo, ao apresentar personagens corrompidos pelo alcoolismo, prostituição e marginalidade, que, no fim, conseguem encontrar a redenção.
O PRIMEIRO BEIJO representa, nesse ínterim, uma visão de vida cristã a qual, infelizmente, muitos de nós, hoje em dia, não concordamos mais. A disseminação de ideologias políticas de esquerda, de novos ideais a respeito do amor e da sexualidade, da família e da religião, e a entrega da sociedade ao alcoolismo, às drogas – muitas vezes “promovidas” positivamente pela mídia – e à violência transformaram o mundo e nosso estilo de viver. Para melhor ou para pior? Depende de como vocês veem o mundo – tem quem interprete o respeito às instituições e a promoção das virtudes cristãs como “fascismo”. Eu prefiro não tirar conclusões agora. Fidélis Barbosa já tirara as suas.
Bem. Não tenho como dizer, no momento, quantos contos eram na primeira edição, e quais. Na edição de 1993, constam 24 contos, alguns posteriormente incluídos em outros livros de contos de Frei Fidélis, como O Filho do Baby Doll e Tesouro Escondido no Campo. Alguns contos apresentam personagens que ou protagonizam ou tem papeis importantes em outros contos da mesma coletânea – alguns personagens, ao que tido indica, realmente existiram, e Fidélis Barbosa resgata-lhes a memória através das pequenas histórias de sua vida. Bem, os contos de O PRIMEIRO BEIJO são os seguintes...
O Primeiro Beijo, que dá título ao livro, trata de uma história de conversão. Uma família, em crise por conta dos vícios do marido, e bem na época em que a filha está recebendo a Primeira Comunhão na igreja, acaba reencontrando o caminho para a harmonia familiar justo naquele momento. Tudo dependeu de dois gestos: o pai comparecer à missa, e a filha pedir perdão aos pais, como parte da cerimônia.
O Perfume de Santa Rita é um dos contos que trazem a presença do Padre Paulo, um conhecido de Fidélis Barbosa que passou um período na Europa. No conto, é narrado um milagre ocorrido durante uma peregrinação motorizada pela Itália, rumo ao santuário de Santa Rita de Cássia. Teria a santa intercedido para que os romeiros não perdessem a viagem?
O Mendigo, aparentemente, é um dos contos incluídos em edição posterior, já que narra acontecimentos ocorridos em 1983. Como um mendigo, conformado com sua vida dependente da caridade alheia, reagiu diante da tragédia provocada por uma enchente na cidade onde vivia.
O Sorriso de Mônica narra como um simples sorriso de uma garota pode mudar a vida de algumas pessoas em situação de desesperança.
Em Visão Macabra, o Padre Paulo, após retornar ao Brasil e prestando aulas de Geografia no Ginásio Duque de Caxias, de Lagoa Vermelha, RS, conta a seus alunos algumas curiosidades sobre suas viagens pela Europa – sobretudo sobre os ossários e corpos mumificados presentes nas cidades de Évora, em Portugal, e em Palermo, na Itália.
Na Floresta Amazônica narra uma dramática história de sobrevivência. Os sobreviventes da queda de um avião na dita floresta precisam sobreviver na medida do possível, com recursos escassos. A salvação acaba vindo de... um papagaio.
Na Solidão do Deserto narra um episódio da vida de dois santos no século IV – o encontro de São Paulo Eremita, religioso romano que resolveu se refugiar no deserto, e Santo Antão Abade, o responsável por lhe dar sepultura.
A Tentação é outro conto com participação do Padre Paulo. Aqui, ele ouve uma história a respeito de um camponês que tem a chance de colocar as mãos em um tesouro que ele presenciou ser enterrado por dois irmãos, mas tal perspectiva, em realidade, acaba tirando sua paz – e a necessidade de fazer a coisa certa lhe traz bem-aventurança.
O Padre Paulo retorna a seguir em Ciclista Cego, uma breve reunião de pequenos fatos pitorescos presenciados em sua estadia em Portugal – entre eles, um homem cego de nascença que, ainda assim, consegue andar de bicicleta sem bater em nada.
Em Flor do Charco, Fidélis Barbosa conta, à sua maneira, a história de Santa Margarida de Cortona, uma jovem italiana do século XIII que vivia uma vida de luxúria até encontrar o arrependimento e o propósito de viver uma vida santificada.
Em O Anjinho, uma professora conta algumas histórias da época da imigração italiana no Rio Grande do Sul, entre elas a de um menino exemplar e seu destino trágico e inesperado.
Em O Jardim Talado, o autor narra como uma comunidade acabou arruinada porque suas mulheres resolveram aderir ao controle de natalidade – ao aborto e à esterilização.
Em A Maldição, nos é narrada a trágica história de um filho desobediente e viciado que, no fim, termina louco – tudo apesar dos esforços de sua mãe, e do padre que cita passagens bíblicas até não mais poder.
Em A Nevada de 1965, outro conto incluído posteriormente, um espetáculo natural ocorrido naquele ano – a queda de formidável quantidade de neve – acaba se transformando em tragédia para a população de Lagoa Vermelha. Só a boa vontade dos céus pode afastar das pessoas um pensamento de fim de mundo.
O Filho do Baby Doll, que mais tarde batiza o livro homônimo, é um pequeno tratado sobre como resgatar a felicidade conjugal: basta a esposa investir um pouco na aparência pessoal, e assim o marido deixará a amante de lado. É o que faz a esposa do prefeito de uma cidade, ao ouvir os conselhos de um terapeuta.
Respeito conta a história de um inteligente e fiel cachorro que viveu uma vida feliz ao lado de seus donos, acabou tendo um destino trágico e, por caprichos da vida, acaba “promovido” a santo milagreiro.
Em O Pequeno Marginal, o personagem-narrador conta sua história de sofrimentos, rancores e redenção. Nascido filho de uma prostituta, vive uma vida de marginalidade, e até cogita se vingar de um homem que lhe fizera mal, porém, encontra um novo propósito de vida ao ser recolhido à Casa do Menor Abandonado de Lagoa Vermelha, ficar aos cuidados de um professor que o auxiliou, e, no final, encontrar o perdão por parte de seu agressor e um novo propósito de vida, que o levará a se tornar um adulto responsável.
Em A Normalista, o professor Idílio Biavatti, da Casa do Menor Abandonado, e que auxiliara o personagem principal do conto anterior, narra como conseguiu tirar uma jovem, que fora desgraçada, do abismo da prostituição, reconciliá-la com a família e arranjar a ela um casamento, conseguindo recoloca-la no bom caminho.
Em O Pinheiro, o autor fala a respeito de uma árvore; o pinheiro do título dera muita alegria a quem visitasse um campo. Ao ser derrubado, acaba servindo a outros propósitos – o que impede o narrador de reclamar com o responsável pelo crime.
Em Tesouro Escondido no Campo, que dá título a outro livro do autor, nos é contada a história de um rapaz pobre, porém trabalhador e ambicioso que, guiado por sonhos, resolve comprar um lote de terreno não-aproveitado na esperança de encontrar um tesouro enterrado – mas ali, acaba encontrando muito mais do que esperava, e à custa de muito trabalho.
O Nhandu destoa dos demais contos por ser mais humorístico e menos cristão. Narra uma divertida história de caçada nos campos, onde até emas – também chamadas de avestruzes ou nhandus – acabam envolvidas. E o personagem principal, no propósito de apanhar um desses animais vivo, acaba sofrendo bastante...
O Negrinho do Pastoreio é a versão de Fidélis Barbosa para uma das mais tradicionais lendas do Rio Grande do Sul – a história de um pequeno escravo que sofre nas mãos de seu senhor, e, no final, acaba sendo santificado.
Em O Ébrio, mais uma história de redenção, da tragédia à conversão. A história de uma família em crise por conta do alcoolismo do marido, que passa por poucas e boas na luta contra o vício, inclusive indo trabalhar em um colégio de freiras, até a cura vir... da intervenção divina, de um milagre.
E, para terminar, Arlete conta um novo episódio da vida do Padre Paulo, este ocorrido antes de ele embarcar para a Europa. Antes da partida, ele acaba conhecendo uma jovem que se apaixona por ele, mesmo essa afeição sendo impossível; mas ambos continuam se correspondendo, até que, de uma hora para outra, a jovem Arlete para de escrever. O que teria acontecido?
Esta edição de O PRIMEIRO BEIJO apresenta alguns erros de ortografia, distrações por parte dos responsáveis pela edição. E não são poucos.
Porém, vale uma lida, como forma de entrar em contato com uma mentalidade que já ficou ultrapassada. O que aconteceu realmente com o antes respeitável povo do Rio Grande do Sul, nascido de uma mescla de raças e etnias que primavam pelo trabalho abnegado e pela religiosidade?

Esta resenha é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Como tantos outros livros de Fidélis Barbosa, este também se encontra disponível na Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges. Conheçam e se encantem.
E, aos poucos, vamos retomando nosso ritmo normal de ações de divulgação de nossa instituição.

Até a próxima resenha!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Seção Resenha de Livros: OS FANÁTICOS DE JACOBINA

Olá.
Aqui é o Rafael Grasel novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje, vamos outra vez, em texto corrido, falar de livro. Vamos outra vez falar de Fidélis Dalcin Barbosa. Vamos resgatar outra obra do escritor, professor e ex-padre gaúcho. E, ao mesmo tempo, vamos falar de um episódio polêmico e controverso da história do Rio Grande do Sul. Tão polêmico que poucos se dão ao trabalho de lembrar – apesar de seus fatos já terem sido duas vezes adaptados para o cinema.
Well. Hoje então vamos falar de OS FANÁTICOS DE JACOBINA (OS MUCKERS), possivelmente o livro mais curto de Frei Fidélis.

HISTÓRIA EM VERSÃO ECONÔMICA
OS FANÁTICOS DE JACOBINA (OS MUCKERS) teve um caminho diferenciado antes de ser lançado em livro. Começou como uma série em folhetim do jornal Correio Riograndense, de Caxias do Sul, RS, em 1970. Nesse ano, Fidélis Barbosa havia visitado o município de Sapiranga, RS, para escrever uma reportagem sobre o município fundado por imigrantes alemães e conhecido como “Capital das Rosas”, e teve contato com a história da Revolta dos Muckers (1868 – 1874), conflito provocado entre um movimento messiânico de imigrantes alemães e o exército brasileiro. Fidélis Barbosa teve oportunidade, inclusive, de conversar com descendentes de integrantes da seita dos Muckers.
Empolgado, Fidélis Barbosa começou a escrever sobre a Revolta dos Muckers em forma de folhetim para o citado Correio Riograndense. O trabalho contou, como fontes, com trabalhos dos historiadores Ambrósio Schupp, Leopoldo Petry e Klaus Becker (em breve, falaremos do trabalho destes com mais detalhes). E, em 1976, os textos foram compilados em livro, pela editora EST (Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes), de Porto Alegre, RS, então dirigida pelo Frei Rovílio Costa. Mais adiante, na postagem, a capa de edição posterior da mesma obra.
O livro é possivelmente o mais curto, e o de leitura mais rápida do escritor: seus 43 capítulos são breves, e o livro todo tem 56 páginas, sem contar capa. É um “curso dinâmico” sobre o fato histórico em questão.

WILLKOMMEN AUF DEM HÜGEL FERRABRAZ (BEM-VINDOS AO MORRO DO FERRABRAZ)
Bem. A Revolta dos Muckers é o nome dado por convenção a uma série de revoltas ocorridas no Morro do Ferrabraz, em Sapiranga, na época distrito de São Leopoldo, e integrante da zona de imigração alemã do Vale dos Sinos. Ali, reunia-se a seita formada por Jacobina Maurer e seu marido João Jorge Maurer.
Jacobina Mentz, seu nome de solteira, era descendente de um colono alemão chegado ao Brasil em 1824, fundador da primeira capela evangélica da região de Novo Hamburgo. Desde a juventude, a moça, com suspeitas de portar algum problema mental, sofria de desmaios e sono letárgico que chegavam a durar 12 horas. Apesar disso, trabalhava nas lides domésticas e do campo.
Seu marido João Maurer era natural de São Sebastião do Caí. Inicialmente marceneiro e agricultor, quando precisou se mudar para o morro do Ferrabraz, João Maurer começou a trabalhar como curandeiro, tendo o auxílio da esposa. Como naquele tempo o local não dispunha de médicos, foi fácil para João Maurer fazer fama na região.
Como muitos dos colonos alemães da época eram analfabetos, saudosos da terra natal, não dispunham sequer de um padre para ministrar missas e se sentiam abandonados pelo governo brasileiro, dependendo apenas dos frutos de árduo trabalho para sobreviver – some-se a isso, ainda, a situação pela qual o Brasil passava durante a Guerra do Paraguai – foi ainda mais fácil para Jacobina convencê-los de que era uma reencarnação de Jesus Cristo e de sua fama de profetiza, e, assim, montar uma seita messiânica, que prometia uma “nova era” aos seguidores. Jacobina ainda era semialfabetizada e interpretava a Bíblia a seu modo, mas conseguiu convencer muitos colonos a se juntarem à seita – foi fundamental para isso a ajuda do marido João Maurer e de João Jorge Klein, cunhado de Jacobina, que difundiram a nova doutrina. Os seguidores de Jacobina ficaram conhecidos como muckers, que, em alemão, significa fanático, falso santo. Todos eram de origem alemã, entre colonos recém-chegados e descendentes de alemães nascidos no Brasil, e era em alemão que os muckers celebravam seus cultos.
O fato determinante para o prestígio da nova seita foi um “milagre” ocorrido em 19 de maio de 1872, dia de Pentecostes, quando Jacobina, deitada em sua cama, aparentemente desapareceu, deixando apenas as roupas, e tornou a reaparecer, vestida de branco. Os presentes tomaram o suposto fato como milagre, e passaram a seguir Jacobina fervorosamente, apesar de esta passar a ditar leis estranhas aos fieis, como determinar que os membros da seita tirassem os filhos das escolas, parassem de frequentar as igrejas católicas e que os maridos ou esposas muckers se divorciem dos cônjuges que se recusassem a seguir a nova religião. Além disso, ela formou um grupo de doze apóstolos, entre conhecidos e familiares – que muitos dizem que eram, na verdade, seus amantes.
Como muitos seguidores de Jacobina já começaram a se retirar da seita ao se sentirem enganados, a profetiza, sob orientação de seus seguidores, passou a ordenar a perseguição aos “ímpios”, visando batalhas sangrentas.
A primeira tentativa de coibir a seita dos muckers foi um abaixo-assinado entregue ao delegado de polícia de São Leopoldo. Ela foi elaborada por Filipe Sehn, cujo objetivo é tentar tirar o irmão, João Sehn, da seita, e pelo professor Weiss. Pouco depois é que foram enviados homens para o morro do Ferrabraz; inicialmente, prendem João Maurer, que foi levado para Porto Alegre; Jacobina conseguiu ficar no Ferrabraz, sob proteção dos fiéis. Dias depois é que Jacobina é presa, mas precisam levar a mulher, que se encontrava em um de seus acessos de sono letárgico, com colchão e tudo – ela acorda na delegacia de São Leopoldo. Ela também acaba conduzida para Porto Alegre. Enquanto isso, os muckers tentam celebrar a festa de Pentecostes, mas são dispersados por policiais. Os muckers, de muitas maneiras, criam problemas para os policiais.
Pouco depois, o casal Maurer retorna ao Ferrabraz – eles acabam soltos por falta de provas – e são recebidos festivamente pelos membros da seita. Sob orientação de Jacobina, os muckers, sabedores que a polícia continuava de olho na seita, constroem uma “fortaleza” anexa à casa dos Maurer, e adquirem muitas armas para defesa. A polícia faz mais algumas “visitas” ao morro do Ferrabraz, e prendem membros da seita – entre os presos, João Maurer acaba levado novamente, enquanto Jacobina fica solta. Pouco depois, aproveitando a ausência do marido, Jacobina se separa de João Maurer, e se “casa” com João Klein, seguindo sua própria “lei”.
E é nesse ponto que os muckers começam a atacar autoridades e colonos que não abraçaram a seita. O auge da loucura foi quando os muckers começaram a incendiar casas e a matar familiares de opositores – não escaparam nem mulheres e nem crianças, sequer parentes. Entre as vítimas dos muckers, estavam as famílias do ex-seguidor Martinho Kassel, primo de Cristiano Kassel, um dos “doze apóstolos”; a família de Carlos Brenner, cujos filhos são cruelmente assassinados antes da casa ser incendiada; nem mesmo parentes de Jacobina ficaram ilesos. A sanha assassina dos muckers estendeu-se até a picada de Dois Irmãos, hoje cidade.
Em princípio, o Governo Federal não fez nada para coibir a seita, limitando-se apenas a substituir o chefe da Polícia de São Leopoldo – apesar de os colonos terem encaminhado ao Presidente da Província uma petição com mais de duas mil assinaturas pedindo a expulsão dos muckers da região. Os próprios muckers também encaminharam uma embaixada ao Imperador Pedro II pedindo proteção contra a ação da polícia. Nenhuma das partes queixosas foi beneficiada pelas autoridades. Só quando as coisas começaram a sair do controle é que foi organizado um exército para conter o conflito no Ferrabraz.
Foram necessárias três expedições militares, vindas de Porto Alegre, para dar cabo da seita de Jacobina. A primeira, realizada entre 28 de junho e 18 de julho de 1874, resultou na destruição da fortaleza dos muckers e na morte de alguns seguidores, mas sem conseguir prender seus líderes, que refugiaram-se em cabanas perto de uma fonte de água. Essa primeira expedição foi chefiada pelo coronel Genuíno Olímpio Sampaio, nordestino veterano de outras revoltas militares, comandando, entre seus homens, diversos veteranos da Guerra do Paraguai. Mas, em 20 de julho, o coronel Sampaio, que já estava declarando vitória, acaba recebendo um tiro acidental de um de seus soldados, vindo a falecer por falta de tratamento médico. E a expedição do dia seguinte, comandada pelo coronel Augusto César da Silva, acaba malograda pelos muckers. As sucessivas derrotas já estavam mexendo com os ânimos dos militares.
A terceira expedição, comandada pelo capitão Francisco Clementino Santiago Dantas, que substituiu Augusto César, tem melhor resultado: atacam o esconderijo de Jacobina no dia 2 de agosto e conseguem dar cabo de vários líderes da seita – entre estes, Jacobina Maurer. Tal expedição foi possível por conta da traição do mucker Carlos Luppa, que deserta da seita e passa a auxiliar a polícia. Vários muckers sobreviventes são presos, mas, depois, liberados, e se dispersam para outras localidades, como Linha Pirajá, perto de Nova Petrópolis, e Terra dos Bastos, próximo a Lajeado. Os remanescentes da seita são perseguidos nos anos seguintes. João Maurer foi encontrado morto enforcado. E os últimos muckers perecem em 1903.
Esses episódios de violência e messianismo foram determinantes para que, até hoje, a Revolta dos Muckers se tornasse um tabu entre os descendentes dos personagens dessa história. Mas a saga de Jacobina Maurer contribuiu para atrair turistas e historiadores para Sapiranga – até hoje, são locais de visitação: o monumento ao Coronel Sampaio e a cruz que marca o local onde Jacobina pereceu, integrantes do roteiro conhecido como Caminhos de Jacobina – e rendeu filmes e romances.
A primeira obra artística sobre o tema foi o filme Os Muckers (1978), produção teuto-brasileira dirigida pelo brasileiro Jorge Bodanzky e pelo alemão Wolf Gauer, que contava, em seu elenco, com vários descendentes de muckers, e com a atriz Marlize Saueressig como Jacobina. Esse filme ganhou o troféu Kikito de Melhor Atriz do Festival de Cinema de Gramado, RS.
Em 1990, o escritor gaúcho Luís Antônio de Assis Brasil retrata o episódio em seu romance Videiras de Cristal; e, em 2002, o diretor brasileiro Fábio Barreto adapta o romance de Assis Brasil sob o título A Paixão de Jacobina, com a atriz Letícia Spiller interpretando Jacobina Maurer. Os locais que serviram de locação para o filme também integram os Caminhos de Jacobina.

CONTROVÉRSIAS
Alguns historiadores defendem um lado “social” do episódio do Ferrabraz. Tal como foi com a Guerra de Canudos na Bahia, ou com a Guerra do Contestado, em Santa Catarina e Paraná (apesar de esses eventos serem muito posteriores ao fato em questão) a Revolta dos Muckers, na interpretação de historiadores marxistas, teria sido uma resposta dos colonos ao descaso do governo e ao autoritarismo das forças policiais, levando-os a se juntar em torno de líderes messiânicos, como foi, logo, com Jacobina Maurer.
Como bom católico, e portando se opondo a maneiras “alternativas” de louvar a Deus que não as religiões oficiais, Fidélis Barbosa, em OS FANÁTICOS DE JACOBINA, retrata os muckers, e principalmente Jacobina, como vilões, fanáticos e perversos. Como não se sensibilizar, por exemplo, com as cenas dos ataques dos muckers às casas de opositores, matando seus familiares a tiros, coronhadas ou carbonizando as vítimas junto com as casas?
Narrando a história em um estilo compreensível ao leitor em geral, de forma linear, Fidélis Barbosa, conduz a história com inserções de diálogos e didatismo, sem o uso de análise psicológica dos personagens – ou melhor, narrando a história diretamente, sem perder muito tempo com explicações. Por isso o romance é bem curto, e praticamente é um “curso” sobre a Revolta dos Muckers. Fidélis Barbosa escreveu como um professor, citando à larga nomes dos envolvidos, datas e ações. É possível, graças à diagramação do livro, praticamente saber onde começam e terminam os capítulos publicados no Correio Vacariense, apesar de tais capítulos terem sido divididos em subtítulos, resultando em 43 capítulos.
Mas dá a entender que a Revolta dos Muckers foi fruto dos delírios messiânicos de uma mulher doente. Talvez seja. Mas, como historiador que sou, pretendo, em breve, trazer aos leitores alguns livros mais com a “segunda versão” dos fatos. Aguardem.
Facilmente encontrável em bibliotecas, OS FANÁTICOS DE JACOBINA reafirma o lado historiador de Fidélis Barbosa. Não tão extenso como seus livros posteriores onde conta histórias de cidades, mas vale uma olhada.

Esta postagem é uma versão revista e ampliada do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Caso haja alguma dificuldade para encontrar algum dos livros resenhados aqui no blog, peça orientação às bibliotecárias da Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges. Mas não deixem de visitar e prestigiar o local.
Em breve, uma nova resenha de livros aos leitores.

Até mais!

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Texto: O NEGRINHO DO PASTOREIO

Olá.
Aqui é o Rafael novamente.
No dia 31 de outubro, alguns setores da cultura brasileira comemoram o Dia do Saci, como uma forma de promoção da cultura e do folclore nacionais e como forma de resistência à importação do Halloween norte-americano, altamente promovido pela mídia.
Como contribuição para o Dia do Saci, trago hoje um texto: a versão de um escritor gaúcho para uma das mais tradicionais histórias folclóricas do Rio Grande do Sul. Acompanha vocabulário e duas ilustrações feitas por mim. Também pode ser utilizado por professores para as aulas de português e leitura.

O NEGRINHO DO PASTOREIO

Versão: Fidélis Dalcin Barbosa
Baseada na versão original de Simões Lopes Neto

            O minuano – vento gelado que sopra dos Andes – varria inclemente os pampas sem fim do Rio Grande do Sul. Medonho, aquele inverno! Feias chuvaradas encharcando os campos. Nevadas e geadas cobrindo as coxilhas de branco qual imenso lençol...
            Domingo de sol. Domingo bonito mas frio demais para uma carreira. Um estancieiro, muito rico e muito mau, ia correr com um vizinho. O cavalo baio do primeiro tinha fama tanto como o cavalo mouro do adversário.
            A parada era de mil onças de ouro. Deveriam ser distribuídas entre os pobres. Mas o estancieiro mau não concordou. Se ele ganhasse, o dinheiro seria todo dele, somente dele. Nunca ninguém viu um fazendeiro tão pão-duro como aquele.
            Por causa de sua maldade e da sua avareza, ninguém gostava dele. Vivia quase sozinho, o miserável. Na sua casa, moravam com ele apenas um filho, impertinente como o pai, e um negrinho. Um negrinho muito bom, bonito lustroso. Não tinha nome, não tinha pai, não tinha mãe e nem padrinho, o coitado. Por isso, Nossa senhora era a sua madrinha.
            O Negrinho cuidava dos cavalos do estancieiro cauíla e era ele que faria de jóquei da carreira. Se porventura o baio perdesse, ninguém pode imaginar o que o malvado do estancieiro faria daquele pobre escravo. E não é que o estancieiro mau perdeu mesmo?
            - Valha-me a Virgem madrinha Nossa Senhora! – gemeu o Negrinho.
            É verdade, os pobres se alegraram porque o ganhador distribuiu logo todo o valor das mil onças. Mas o Negrinho, nem queiram saber.
            O estancieiro voltou para casa com a alma em pedaços. Apeou do cavalo. Mandou amarrar o Negrinho a um palanque e deu-lhe uma tremenda surra de relho.
            De madrugada saiu com o Negrinho pelo campo. Parou no alto de uma coxilha e falou:
            - Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste. Trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos... O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
            Chorando, lá ficou o coitadinho dia e noite, passando fome, passando frio. Enfim, enfraquecido e cansado, caiu com a soga do baio enleada no pulso. Deitou-se encostando a cabeça a um cupim.
            De noite, vieram as corujas. Voaram em roda, paradas no ar, sem mover as asas, os olhos reluzentes, amarelos, olhando para o Negrinho.
            Ele teve medo. Rezou à sua madrinha, Nossa Senhora, e adormeceu.
            Ia alta a noite, quando chegou o guaraxaim. Farejou o Negrinho. Depois roeu a guasca da soga, soltando o baio, que fugiu a galope, e toda a tropilha com ele, escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas canhadas.
            Com o tropel, o negrinho acordou. O guaraxaim fugiu, esganiçando. Os galos cantavam, longe.
            De manhã, a cerração encobria os campos e o Negrinho não enxergava o pastoreio. Chorou, pensando no castigo que iria levar.
            O filho do estancieiro, aquele menino mau, foi lá e voltou logo a contar ao pai que os cavalos não estavam...
            Então, o Negrinho foi outra vez amarrado pelos pulsos ao palanque, tomando tremenda surra de relho.
            Quando anoiteceu, o estancieiro ordenou que o Negrinho fosse campear a tropilha.
            Rengueando e gemendo, o Negrinho saiu. Rezou à sua madrinha, Nossa Senhora. Foi ao oratório da casa. Tomou o toco de vela aceso em frente da imagem e andou pelo campo.
            Foi andando, andando, pelas coxilhas e canhadas, pela beira dos lagões, paradeiros e restingas. E em toda a parte a vela ia pingando cera no chão. E de cada pingo nascia uma luz. Nasceu tanta luz, tanta luz, que clareava tudo.
            O gado ficou deitado. Os touros não escarvaram e as manadas xucras não dispararam. E os cavalos, vendo o Negrinho, relincharam todos juntos, contentes.
            O Negrinho montou no baio e tocou a tropilha por diante, até o alto da coxilha. Deitou-se e no mesmo instante se apagaram todas as luzes. Dormiu, sonhando com a Virgem, sua madrinha.
            E não apareceram as corujas, nem o guaraxaim. De manhã, o menino mau, o filho do estancieiro, foi e enxotou os cavalos, que dispararam campo afora, desguaritando-se nas canhadas.
            O tropel acordou o Negrinho. E o menino mau foi dizer ao pai que os cavalos não estavam lá...

* * *

            Aí o estancieiro mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos ao palanque e deu-lhe tremenda surra de relho. Deu-lhe tanto, recortando as carnes, o sangue vivo escorrendo do corpo...
            O Negrinho invocou sua madrinha, Nossa Senhora. Soltou um suspiro fundo e triste, parecendo morrer...
            O estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho numa panela de formigueiro. Depois assanhou bem as formigas.
            Quando as formigas principiaram a trincar-lhe o corpo, o estancieiro foi embora sem olhar para trás.
            Naquela noite, o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo mil vezes, que tinha mil filhos, mil negrinhos, mil cavalos baios e mil onças de ouro... e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno...
            Depois houve três dias de cerração forte, e três noites o estancieiro teve o mesmo sonho.

* * *

            A peonada correu o campo todo, mas ninguém viu a tropilha e nem o rastro.
            O estancieiro foi ao formigueiro. Viu lá o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, são e salvo, a sacudir as formigas do corpo. Ao lado, o cavalo baio e junto a tropilha dos trinta tordilhos, e, em frente, fazendo guarda ao pobrezinho, viu a Virgem Nossa Senhora, sua madrinha. Quando viu aquilo, o senhor caiu de joelhos diante do escravo.
            E o Negrinho, sarado e risonho, montou o baio em pelo e sem rédeas, chupou o beio e tocou a tropilha a galope...
            Na mesma noite, os posteiros e andantes, que dormiam em ranchos e camas de macega, ao relento, os tropeiros e carreteiros, viram, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocados pelo Negrinho, gineteando em pelo, em um cavalo baio...
            Hoje, nos campos do Rio Grande do Sul, quem perder uma coisa, o que for, acende uma vela à madrinha do Negrinho, Nossa Senhora, e então o Negrinho do Pastoreio campeia e acha...

(Extraído de: BARBOSA, Fidélis Dalcin. O Filho do Baby Doll. Canoas: Tipografia e Editora La Salle, 1992. P. 60 – 63)

VOCABULÁRIO:
Inclemente: severo, rigoroso;
Coxilhas: morros dos pampas gaúchos, sem vegetação arbórea constante, onde prevalece a rama, o capim, a vegetação rasteira;
Carreira: pequena corrida de cavalos;
Baio: cavalo de pelo castanho-amarelado;
Mouro: cavalo preto salpicado de branco;
Onças: antiga moeda de ouro circulante no Rio Grande do Sul do século XIX;
Impertinente: Rabugento, importuno;
Cauíla: avarento;
Apeou: desmontou do cavalo;
Relho: chicote de couro cru;
Quadra: área de cerca de 132 m2;
Cancha: raia, pista de corrida;
Tordilho: cavalo de pelo negro com grandes manchas brancas;
Piquete: guarda, vigia;
Soga: corda que prende os animais a um poste;
Enleada: enrolada;
Cupim: pedaço de couro (provavelmente, retirado da corcova do boi zebu, cuja carne recebe o mesmo nome);
Guaraxaim: animal mamífero e carnívoro da família dos canídeos;
Guasca: tira de couro;
Escaramuçando: rodopiando;
Desguaritando-se: extraviando-se;
Canhadas: vales entre colinas e coxilhas;
Esganiçando: gritar com voz aguda, semelhante à de um cão;
Cerração: nevoeiro;
Campear: procurar pelos campos;
Rengueando: arrastando as pernas;
Paradeiro: local em que se para;
Restinga: monte de areia ou pedras perto de locais com água;
Escarvar: cavar o solo superficialmente, com a pata;
Xucras: que não foram domadas;
Enxotou: espantou;
Panela de formigueiro: buraco de formigueiro construído no chão;
Trincar: morder, cortar a mordidas;
Peonada: grupo de peões de estância;
Posteiro: empregado rural responsável pela vigia junto à cerca da fazenda;
Macega: capim seco; tipo de erva daninha;

Relento: ao ar livre, sem proteção.

Em breve, nova contribuição para o blog da Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges.
O livro de onde o texto foi extraído se encontra no acervo da Biblioteca. Um motivo para vocês visitarem.
Aproveitem e conheçam o blog Estúdio Rafelipe: https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/.
Até mais!