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sexta-feira, 8 de junho de 2018

Clube do Livro do mês de Junho

    O Clube do Livro deste mês abordará a obra "Na berma de nenhuma estrada", do escritor moçambicano MIA COUTO.

O encontro será:


  • dia 27/06/18 - quarta-feira
  •  horário: 18h
  •  na Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges.


Conheça a biografia de Mia Couto, a seguir relacionada:   



Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto, nasceu em 5 de Julho de 1955 na cidade da Beira em Moçambique. É filho de uma família de emigrantes portugueses. O pai,Fernando Couto (**), natural de Rio Tinto, foi jornalista e poeta, pertencendo a círculos intelectuais, tipo cineclubes, onde se faziam debates. Chegou a escrever dois livros que demonstraram preocupação social em relação à situação de conflito existente em Moçambique. Mia Couto publicou os seus primeiros poemas no jornal Notícias da Beira, com 14 anos. Iniciava assim o seu percurso literário dentro de uma área específica da literatura – a poesia –, mas posteriormente viria a escrever as suas obras em prosa. Em 1972 deixou a Beira e foi para Lourenço Marques para estudar medicina. A partir de 1974 enveredou pelo jornalismo, tornando-se, com a independência, repórter e diretor da Agência de Informação de Moçambique (AIM) – de 1976 a 1979; da revista semanal Tempo – de 1979 a 1981 e do jornal Notícias – de 1981 a 1985. Em 1985 abandonou a carreira jornalística.

Reingressou na Universidade de Eduardo Mondlane para se formar em biologia, especializando-se na área de ecologia, sendo atualmente professor da cadeira de Ecologia em diversas faculdades desta universidade. Como biólogo tem realizado trabalhos de pesquisa em diversas áreas, com incidência na gestão de zonas costeiras e na recolha de mitos, lendas e crenças que intervêm na gestão tradicional dos recursos naturais. É diretor da empresa Impacto, Avaliações de Impacto Ambiental. Em 1992, foi o responsável pela preservação da reserva natural da Ilha de Inhaca.

Mia Couto é um “escritor da terra”, escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a própria natureza humana na sua relação umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular percepção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra inventada como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a intuição de mundos fantásticos e em certa medida um pouco surrealistas, subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos – o mundo vivo das histórias. Mia Couto é um excelente contador de histórias. É o único escritor africano que é membro da Academia Brasileira de Letras, como sócio correspondente, eleito em 1998, sendo o sexto ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa.

Atualmente é o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no exterior e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal. As suas obras são traduzidas e publicadas em 24 países. Várias das suas obras têm sido adaptadas ao teatro e cinema. Tem recebido vários prêmios nacionais e internacionais, por vários dos seus livros e pelo conjunto da sua obra literária.

É, comparado a Gabriel Garcia Márquez e Guimarães Rosa. Seu romance Terra sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007 o prêmio União Latina de Literaturas Românicas.


Fonte da biografia: Blog Oficial do escritor - Mia Couto

quinta-feira, 16 de março de 2017

Seção Resenha de Cinema: CONCERTO CAMPESTRE

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em mais uma colaboração seguida para o blog da Biblioteca Pública. E hoje, com a Seção Resenha de Cinema – filmes baseados em livros.
Na última postagem, tratei do belíssimo romance Concerto Campestre, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Um libreto de ópera sul-riograndense, de leitura rápida e proveitosa.
Pois hoje, vou tratar de seu produto derivado: CONCERTO CAMPESTRE – o filme. Tão belo quanto o livro – até certo ponto.

ASPECTOS TÉCNICOS
Bem. CONCERTO CAMPESTRE, o livro, foi publicado em 1997; no ano seguinte, o cineasta Henrique de Freitas Lima, percebendo o potencial do romance para uma adaptação cinematográfica, inicia o projeto para a dita adaptação. O projeto correu de 1998 a 2003, e CONCERTO CAMPESTRE, o filme, chega aos cinemas em 2005. Duração de 100 minutos. Com direção de Henrique de Freitas Lima, com assistência de Nestor Monastério. O roteiro da adaptação é de José Mandel Fernandez, Pedro Zimmermann e Tabajara Ruas, com produção da Empresa Cinematográfica Pampeana.
CONCERTO CAMPESTRE é a segunda adaptação de um romance de Luiz Antonio de Assis Brasil para o cinema – a primeira foi A Paixão de Jacobina, de 2002, criticada adaptação de Fábio Barreto do romance Videiras de Cristal (1990). Vamos lembrar que Assis Brasil já foi vertido cinco vezes para o cinema: além de Videiras de Cristal e Concerto Campestre, tivemos as adaptações de Um Quarto de Légua em Quadro (1976), sob o nome Diário de Um Novo Mundo (direção de Paulo Nascimento, 2005); Manhã Transfigurada (1982) rendeu um filme homônimo (dirigido por Sérgio de Assis Brasil, 2008); e Ensaios Íntimos e Imperfeitos (2008) é adaptado para uma série de mini documentários dirigidos por Douglas Machado, em 2016, com atuação do próprio Assis Brasil. Esses documentários podem ser assistidos no website do autor.

VOLTANDO AO FILME...
CONCERTO CAMPESTRE tem, a seu favor: a boa reconstituição histórica (o filme se passa no ano de 1860, no contexto da era das charqueadas no Rio Grande do Sul), a estonteante cenografia e a enorme fidelidade ao romance. Freitas Lima e seus cúmplices tomaram apenas algumas liberdades e fizeram algumas mudanças em detalhes do enredo, mas a história do livro, em si, não apresenta grandes mudanças – os fatos principais da história, do começo ao fim, foram mantidos. Alguns acréscimos, de fatos e personagens novos, enriquecem o enredo.
Uma das preocupações de Freitas Lima e equipe foi manter o principal motor da trama, a música. As músicas de fundo se compõem de peças conhecidas e/ou pouco conhecidas de música clássica, interpretadas pela orquestra regida por Jean Potiguara; e, assim, o filme transmite bem a proposta de retratar a época em que se passa. Outra preocupação da equipe do filme foi expressar em imagens o tom bucólico do romance, passado quase todo em uma fazenda do interior do Rio Grande do Sul (então chamado Província de São Pedro). Isso fica explícito logo na cena de abertura, com a sequência mostrando o trabalho numa charqueada – vaqueiros manejando o gado nos campos e nos cercados, carneando bois, e escravos (na época, 1860, ainda imperava a escravidão nas atividades produtivas brasileiras) tratando a carne, colocando-a para secar ao sol, livrando-se dos restos dos bois, e o sangue das reses correndo através de canaletas até um poço próximo.
A charqueada pertence ao rude Major Eleutério de Fontes (Antonio Abujamra). Um dia, ele escuta, durante um passeio pela propriedade, dois índios missioneiros e nômades tocando música sob uma árvore; o Major gosta do que ouve, e contrata os índios para sua fazenda, para tocar para ele. O Major reside com sua família na fazenda charqueadora: entre os membros, a severa esposa, Dona Brígida (Araci Esteves, que, entre outros trabalhos, participou de outros dois filmes ambientados no Rio Grande do Sul, Anahy de las Misiones [direção de Sérgio Silva, 1997] e Netto Perde Sua Alma [direção de Tabajara Ruas e Beto Souza, 2001]), que acha o gosto do Major pela música uma perda de tempo, e a filha, Clara Victoria (Samara Felippo), petulante e com arroubos de rebeldia.
A notícia se espalha, e logo outros músicos chegam para trabalhar na estância, em boa parte vagabundos sem ter para onde ir. O Major confidencia com o Vigário da Vila de São Vicente (Miguel Ramos) a possibilidade de montar uma orquestra; e o Vigário recomenda o aventureiro Miguel, vulgo Maestro (Leonardo Vieira) para organizar os músicos em uma orquestra decente.
O sedutor Maestro aceita a incumbência da organização da orquestra, mas logo vê que as coisas não são tão simples como a princípio imaginava. O Major recomenda ao Maestro “severidade e virtude”, traduzidos como “trabalho e disciplina”. O estancieiro manda buscar, inclusive, instrumentos para a organização da orquestra, batizada de Orquestra Santa Cecília, por sugestão do Vigário.
O Maestro trabalha com afinco e alguma severidade para organizar o grupo de músicos de talento mediano (entre os músicos está o ator e violinista Hique Gomes, do espetáculo humorístico Tangos e Tragédias, inclusive protagonizando uma cena cômica!). Enquanto isso, seus passos são observados tanto pelo Major quanto pela mocinha Clara Victoria, que se interessa pela figura do mulato. Mas, este, a princípio, vive às turras com a moça – em uma cena, implica com Clara Victoria quando ela resolve arear panelas, junto com as criadas, perto do galpão onde os músicos ensaiam.
O Maestro, enquanto escreve pautas e dedilha seu bandolim nas horas de folga, e enquanto ensaia com a orquestra durante horas, observa o dia-a-dia da charqueada. Vê que, apesar de demonstrar um pendor para a modernidade com a sua orquestra, o Major mantém códigos morais conservadores para com as pessoas que o cercam: é severo com os escravos e familiares. Em uma cena, o Maestro usa como exemplo de castigo por indisciplina, aos músicos, um escravo que foi morto por empregados da fazenda durante uma tentativa de fuga do cativeiro. Em outra, o Major pune, amarrando ao tronco e dando-lhes chibatadas, um escravo rebelde, João Congo (Sirmar Antunes). Dona Brígida, por sua vez, vê na orquestra um sinal de loucura do marido, enquanto se preocupa com um bom casamento para Clara Victoria – tenta empurrar a filha para se casar com Silvestre Pimentel (Alexandre Paternost, que esteve no elenco de A Paixão de Jacobina como João Maurer, o marido da protagonista), o herdeiro de uma estância vizinha. Entretanto, a moça, embora obedeça a mãe, demonstra sinais de rebeldia, com suas respostas petulantes e não correspondendo à afeição do bonito, porém tedioso, Silvestre. Fica evidente, inclusive, que o Major e Dona Brígida não se dão bem um com o outro – eles partilham apenas dos códigos morais conservadores e algo tacanhos. Dona Brígida acaba ganhando ares de vilania.
A orquestra, já ensaiando na capela da fazenda, só começa a ir para a frente com a entrada do erudito Antônio de Lima, o Rossini (Roberto Birindelli), que se torna grande amigo e confidente do Maestro.
Mas não sem algum conflito: o Maestro tem um desentendimento com o Major porque resolve convocar o escravo João Congo para tocar os tambores, depois de presenciá-lo, na senzala, batucando durante o velório ao modo africano do escravo morto. A contragosto, o Major concorda em colocar o rebelde na orquestra. E, dentro de breve, a Orquestra Santa Cecília consegue encontrar a harmonia.
O Major convoca pessoas dos arredores para assistir a primeira apresentação da orquestra, que se torna um sucesso. E, logo, a Orquestra Santa Cecília sai em turnê pela Província. O Major até constrói um palco ao ar livre em um terreno da estância para futuras apresentações da Orquestra anta Cecília.
Enquanto isso, começa a se desenvolver a relação amorosa entre Clara Victoria e o Maestro. Aos poucos, o mulato se apaixona pela mocinha – o Maestro, a pedido da moça, ensina-a a ler e escrever. E daí, desenvolve-se o romance. Clara Victoria engravida do músico, e consegue esconder o fato o quanto pode, enquanto continua obrigada a se encontrar com Silvestre Pimentel, que está, sim, interessado na mocinha. Apenas Rossini, comparando a situação a uma ópera, sabe do romance proibido. Mas, logo, o Vigário acaba descobrindo, mediante confissão da mocinha, e tenta, nesse ínterim, adiantar o casamento entre Clara Victoria e Silvestre Pimentel, o que desperta desconfiança por parte do Major.
Entretanto, logo que os pais descobrem que a filha engravida, tudo se encaminha para a tragédia: Dona Brígida e o Major acreditam que o responsável pela gravidez foi Silvestre Pimentel, e o estancieiro tenta matar o rapaz a tiros, conseguindo apenas, entretanto, aleijá-lo. Clara Victoria acaba expulsa de casa, levada a viver em uma casa abandonada na beira de um arroio, dentro de uma mata, tendo apenas o capataz, Salvador (Pedro Machado) e a criada Sinhá Gonçalves (Naiara Harry) para se preocupar com seu destino. Na casa, Clara Victoria tem sua filha, que é levada para ser amamentada por uma mulher da vila.
O Major, que ainda proíbe que se fale da filha em casa, ainda despede a Orquestra Santa Cecília. O Maestro sofre muito, mesmo consolado por Rossini, e ainda é repreendido pelo Vigário. E o Major, sem sua orquestra, começa a enlouquecer, sempre indo ao palco construído, ouvindo orquestras imaginárias. Dona Brígida também começa a surtar com a loucura que toma conta de seu lar. Aí, a Orquestra Santa Cecília resolve retornar para a estância – a ideia do maestro é confrontar o Major e tentar convencê-lo a reconsiderar o castigo dado a Clara Victoria. Aí, um fato fantástico ocorre para o desfecho da trama, enquanto Guará (Lori Nelson), empregado de Silvestre Pimentel, se encaminha para a estância para vingar o sofrimento do patrão...
Talvez a parte mais fraca de todo o filme seja a sequência final – a cena da tempestade que cai sobre a fazenda, e do pé-de-vento que cai sobre o poço de sangue bovino, fazendo chover sangue sobre as pessoas que estão assistindo a apresentação final da orquestra. A tempestade, produzida de maneira digital, não ficou convincente, apesar dos esforços da equipe de efeitos especiais, coordenada por Paulo Crespo e Hugo Werle.
Mas o restante do filme vale a assistida. Houve esmero na reconstituição histórica. O enredo acabou enriquecido com os detalhes acrescentados em relação ao livro – por exemplo: o Maestro, no livro, não tem seu nome verdadeiro revelado: é só no filme que ele se chama Miguel. E o personagem João Congo não existe no livro – sua inclusão no roteiro foi uma boa aquisição, aliás, no livro, Assis Brasil não inclui escravos entre os personagens centrais. O contexto pelo qual o Maestro e Rossini se conhecem também é diferente entre o livro e o filme – o Maestro encontra Rossini durante uma viagem para Porto Alegre, no livro, enquanto que, no filme, Rossini se apresenta na estância, e aparece durante o primeiro ensaio da orquestra na capela. Do personagem Vigário, foi retirada dele sua característica de consultar constantemente o termômetro, mantendo seu caráter conservador. E nem Guará existe no livro – ele, no filme, dá um fim diferente do constante no livro a Silvestre Pimentel e ao Major... Oh: a tapera do boqueirão, para onde Clara Victoria é levada, é apresentada no início do livro como um local mal-assombrado, de onde escravos do Major vão colher uvas muito apreciadas; tal característica, a das “uvas do fantasma”, é retirada do roteiro do filme, e a tapera é apresentada bem depois. Ah: a turnê da Orquestra Santa Cecília pela província, se bem me lembro, também não consta no livro.
Mas, no mais, o filme é bem fiel ao livro. Mantém toda a estrutura de sua história, sem tirar demais, sem acrescentar demais. E as interpretações dos personagens são excelentes. O resultado ficou bem melhor que A Paixão de Jacobina, que pouco trouxe do romance original. Ressalta bem o bucolismo proposto do Assis Brasil, e é excelente para exibição em escolas, como retrato de uma época – seus 100 minutos passam voando. Algumas peças de música clássica que fazem parte da trilha sonora são reconhecíveis, principalmente para quem cresceu apreciando esse tipo de música através dos desenhos animados.
Ainda que o cinema nacional seja algo para se ver com reservas, CONCERTO CAMPESTRE vale uma sessão. Com os típicos elementos de uma novela. E já que temos atores globais no elenco, isso fica evidente.
Ah: o filme completo já pode ser encontrado no YouTube, até o momento em que escrevo (assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=X-dUBEMCS9k), embora seja fácil acha-lo em DVD nas locadoras. Não duvido que também já esteja disponível nos sites de streaming na internet.

Este texto é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Assistam ao filme, mas também não deixem de ler o livro! Este também está disponível na Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges!
Em breve, nova resenha. Tanto de livro como de filme.

Até mais!

domingo, 18 de dezembro de 2016

Seção Resenha de Cinema: A PAIXÃO DE JACOBINA

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje, volto a falar de filme – esta é a Seção Resenha de Cinema, falando de adaptações de livros para a Sétima Arte.
Volto a falar da Revolta dos Mucker. Volto a falar de Jacobina Maurer. E hoje vou falar do produto mais “comercial” a respeito do conflito messiânico da zona de imigração alemã do Rio Grande do Sul do século XIX.
Anteriormente, falei a respeito do livro Videiras de Cristal, de Luiz Antônio de Assis Brasil, a recriação ficcional em livro mais famosa do conflito. Hoje, então, resenho a adaptação cinematográfica do livro, A PAIXÃO DE JACOBINA. Ou melhor, adaptação, nem tanto adaptação: o filme de fato foi mais inspirado no livro do que adaptado do livro. Já explico.
Para começar, A PAIXÃO DE JACOBINA, filme brasileiro lançado em 2002, foi dirigido por Fábio Barreto, diretor que se consagrou com O Quatrilho (1995), adaptação do romance do escritor gaúcho José Clemente Pozenato, que até concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Barreto também é conhecido pelos filmes Luzia-Homem (1988), Bela Donna (1997), Nossa Senhora do Caravaggio (2007) e Lula – O Filho do Brasil (2009). Desde dezembro de 2009, após sofrer um grave acidente de carro, Barreto não dirige mais filmes. Após uma delicada cirurgia, em janeiro de 2010, está em casa, em tratamento.
O roteiro de A PAIXÃO DE JACOBINA é de Leopoldo Serran. E seu elenco é basicamente composto de atores consagrados, “globais”.
Antes de A PAIXÃO DE JACOBINA, a Revolta dos Mucker (1868 – 1874), o qual nem me darei ao trabalho de refrescar a memória dos leitores, havia sido retratada, nos cinemas, no filme Os Mucker (1978), de Jorge Bodanzky e Wolf Gauer. E, visualmente, A PAIXÃO DE JACOBINA tem muito jeito de ser um filme mais palatável ao público que seu antecessor. O filme de 2002 tem mais recursos que o de 1978: mais claridade, imagens mais nítidas, músicas de fundo, efeitos especiais, interpretações em linguagem mais novelesca e até uma inserção de merchandising. Além disso, enquanto o filme de 1978 foi gravado no estado de São Paulo, as locações do filme de 2002 são mais próximas do local dos acontecimentos: o filme foi gravado em Sapiranga e outros municípios do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. As locações do filme, hoje, fazem parte do roteiro turístico da cidade de Sapiranga.
Porém, é menos fiel à realidade histórica: os diálogos são todos em português (enquanto o filme de 1978 tinha diálogos alternando entre português e alemão hunsrückisch) e há deturpação dos fatos até mesmo em relação ao livro-fonte. Até mesmo uma inserção de uma trama romântica onde não havia.
Bão. O filme de Fábio Barreto também procura retratar a líder messiânica Jacobina Maurer (interpretada por Letícia Spiller), desta vez com um recorte de tempo maior: ela é mostrada rapidamente na infância, depois na adolescência, e no fim, na vida adulta. Antes e depois de se tornar a “Mutter” dos colonos alemães abandonados pelo poder público da época, antes e depois de dizer-se encarnação de Cristo na Terra, antes e depois de se tornar profetiza. Claro que essa vida é mostrada com um pouco de “trapaça” e deturpação.
A deturpação começa através do personagem Franz (Thiago Lacerda). Esse personagem não existiu nem na vida real, nem no livro de Assis Brasil – ele é cunhado de Jacobina, mas tem outro nome. Bem: nas cenas iniciais do filme, Jacobina demonstra, de um modo mal disfarçado, que é apaixonada por Franz, no dia do casamento deste. Porém, ambos os personagens vivem em tensão amorosa. Em uma cena, Franz flagra Jacobina tomando banho de cachoeira, e, mesmo sendo ambos casados, ambos tem um flerte ali mesmo, na piscina natural. Em crise de consciência, Jacobina dá o fora em Franz e segue sua vida. Mais tarde, Franz volta à vida de Jacobina quando ela já era considerada santa pela população local, e o casal vive em um vai e vem até Franz se juntar em definitivo à seita, conduzindo ao tradicional final dramático. Nada disso consta no livro.
Voltemos a Jacobina Maurer, antes Mentz. Bem, a personagem tem o seu caráter divino reforçado pelo roteiro do filme. No início do filme, ela é mostrada ainda na infância, com a mãe e os irmãos, fugindo da Guerra dos Farrapos; as crianças tem fome, mas a mãe impede-as de comerem de uma panela de feijão abandonada nas ruínas de uma casa, em uma tentativa de reforçar nelas o caráter de honestidade e de força nas adversidades (essa parte, sim, consta no livro). Em vários momentos, ela sofre desmaios e crises de sono letárgico, mas nessas crises ela tem ouve a voz de Deus falando com ela. E, nessas crises, ela tem o acompanhamento do médico Dr. Hillebrandt (Werner Schünemann). Foi após a primeira crise de desmaio, no momento em que a família bate uma fotografia na cerimônia de casamento de Franz, que Jacobina conhece o marido, João Maurer (Alexandre Paternost), então curandeiro – e que, inesperadamente, após a consulta, se declara a ela. Os dois se casam, e Jacobina ajuda João Maurer no tratamento de pacientes – enquanto vive a tensão amorosa com Franz – em casa, ao pé do morro do Ferrabraz. Foi após o parto da única filha (na vida real, Jacobina Maurer teve seis filhos) que Jacobina começa a “ouvir” a voz de Deus.
Outro personagem que vive em tensão constante com Jacobina, mas desta vez no campo das ideias, é o pastor Boeber (Antonio Calloni), que antes ouvia as confissões de Jacobina, porém, depois, a excomunga de sua comunidade e passa à oposição dos chamados mucker. E a maquete da igreja a qual o pastor passa boa parte do livro construindo, e que no romance tem um caráter simbólico (ela representa um projeto de comunidade religiosa da vida do pastor), aparece no filme, mas sem grande importância. No livro, a maquete inacabada acaba sendo destruída junto com a morte de Boeber; no filme, nem um nem outro morrem.
Bem. Pouco depois, Jacobina resolve assumir seu caráter de representante de Deus na Terra, despindo-se frente a um crucifixo cheio de luzes, depois realizando milagres junto aos pacientes do marido (se é que podemos chamar de milagre ela ter beijado os ferimentos da perna de um homem e este ter largado as muletas de repente) e, com trechos da Bíblia, confortando-os com palavras. Nesse ponto, ela passa a trajar apenas uma camisola branca; depois, ela é coroada com uma coroa de flores pelos fieis. Jacobina começa a juntar fieis em torno de si, pregando a Bíblia e o fim do mundo, e abençoando os fiéis com... beijos na boca. Entre os fiéis, entre familiares e simples gente que teve de vender suas propriedades ao governo, estão o parvo Jacó Mula (Leon Góes) e o violento Robinson (Felipe Kannenberg). Inicialmente frequentando os cultos, estava o mercador Nadler (Zé Victor Castiel) que, depois, escandalizado com o comportamento de Jacobina, retira-se da seita.
A seita já começa a arranjar opositores logo no início. Fica evidente na cena em que Jacó Mula, ao defender Jacobina no mercado de Nadler, é agredido por homens violentos. Esses mesmos homens matam, mais tarde, um seguidor da seita e seus cavalos. Depois, um dos agressores é morto e enforcado por homens mascarados, supostos mucker; e só aí é que a atenção das autoridades é despertada. A lei é representada pelo delegado João Lehn (Caco Ciocler), tendo como aliados o Dr. Hillebrandt e o Pastor Boeber. E, inicialmente aliado a estes, Franz.
Aliás, Lehn vive uma tensão amorosa (mais ou menos como no livro) com a mucker Elizabeth Carolina (Talita Castro) – mas, no filme, tal relação tem menos arrogância por parte do homem.
A tensão entre os mucker e os “ímpios” aumenta a cada instante. O mercador Nadler é encontrado morto dias depois de negar vender produtos a uma mulher mucker; depois, um membro da seita é encontrado morto de forma violenta. Jacobina até consegue fazer chover (literalmente) durante seu enterro.
Já não é mais possível manter as pregações de não-violência – a gota d’água é quando as autoridades conduzem Jacobina à justiça. Estando em crise de sono letárgico, ela é conduzida de carroça, deitada, a São Leopoldo, e sentenciada a ser internada na Santa Casa de Porto Alegre para se tratar do suposto distúrbio mental – e acaba tendo a cabeça raspada. E de cabeça raspada ela permanece até o fim do filme. Um fato astronômico previsto por Jacobina acaba dando mais força a ela e aos mucker: um meteoro cruza o céu no dia de Pentecostes (não consta no livro!). Após o retorno ao Ferrabraz, o discurso pacífico de Jacobina muda, e os mucker passam a perseguir os “ímpios” do mesmo modo que foram perseguidos. Fica evidente que a luta dos muckers, antes de tudo, é contra o sistema social injusto, ainda que pessoas inocentes também acabem pagando.
A gota d’água foi o atentado à vida de João Lehn: foi determinante para que as autoridades chamem o exército imperial, sob o comando do coronel Genuíno (Felipe Camargo) para combater os mucker.
E, nas cenas finais, há mais afastamento da realidade: na vida real, foram necessárias três expedições para dar fim aos mucker, e na segunda, o Coronel Genuíno morre acidentalmente, e Jacobina consegue escapar para o mato; no filme, foram necessários dois ataques, no segundo o “templo” de Jacobina acaba destruído, ela perece no fogo junto com Franz, e Genuíno não morre. Barreto e Serran trapacearam!
Well. O filme teve bilheteria razoável – só no Rio Grande do Sul foram 95 mil espectadores, segundo informações colhidas da internet – e teve apoio tanto de uma boa parte técnica, uma cenografia que capta bem as belezas da região do Vale dos Sinos, uma boa reconstituição dos cenários de época – e apenas dos cenários!
Mas as interpretações do filme geram algumas controvérsias.
Letícia Spiller como Jacobina, por exemplo. Para caracterizar a personagem, ela contou, inclusive, com o uso de perucas. E ela passa a maior parte do tempo olhando para o vazio, expressão distante, numa tentativa de reforçar a suposta deficiência mental de Jacobina Maurer (de acordo com as descrições dos historiadores). Sua interpretação, de um modo geral, é um tanto exagerada, bem de personagem de novela – e a presença de Franz só reforça a pieguice. E pensar que a ideia inicial do diretor Fábio Barreto era que a modelo gaúcha Gisele Bündchen interpretasse Jacobina Maurer...
Isso faz com que o título do filme adquira dois sentidos: “paixão”, tanto no significado do amor romântico entre Jacobina e Franz, como no sentido divino, o martírio da personagem próximo ao sofrido por Jesus Cristo.
Foi muito criticada a cena em que ela anda pelos campos, cercada de borboletas criadas digitalmente. O melhor efeito especial do filme ainda é a passagem do meteoro.
Já Alexandre Paternost, como João Maurer, praticamente expressa perfeitamente a insignificância que o personagem assume ao longo da história, simplesmente “desaparecendo” durante o filme. Afinal, como concorrer com a mulher beata e um rival galã?
Outros personagens do livro perdem empatia com relação a suas contrapartes do filme. É o caso de Jacó Mula, que no filme parece um débil mental (no livro nem é tanto assim), sempre soprando seus apitos e falando com dificuldade; e de Elizabeth Carolina, cuja tensão amorosa e crise de consciência ficam em segundo plano em todo filme. As atenções ficam voltadas, logo, para Jacobina, eliminando as histórias paralelas que enriqueciam o enredo. Tudo para a história caber em seus 103 minutos.
O roteiro de Serran corta também alguns personagens do livro, como o médico Christian Fischer, que estabelece uma relação de cumplicidade com Jacó Mula (ficou de fora até a trama supérflua em torno dos cactos que Fischer recolhe para remeter a um tio da Alemanha, o que foi um acerto de Barreto e Serran), o piedoso padre católico Matias Münsch, a criada e confidente de Jacobina, Ana Maria Hoffstätter, e o militar Santiago Dantas, responsável pelo ataque final. Desse modo, podemos reforçar que o filme foi mais inspirado por Videiras de Cristal que adaptado do romance.
Como se não bastasse, conseguiram inserir no filme um merchandising da fábrica de calçados Azaléia, que patrocinou o filme. É na cena em que uma personagem passa em um sapateiro. Jeitinho brasileiro é isso aí.
A direção do filme também foi muito criticada – ficou aquém de O Quatrilho, que até concorreu ao Oscar!
Ainda assim, A PAIXÃO DE JACOBINA é mais palatável ao público que Os Mucker. Cumpriu sua função, que era a de apresentar ao público brasileiro as paisagens de Sapiranga. Porque, na parte da História, não foi lá essas coisas... A História, aqui, ficou no “padrão Globo” (representada por sua filial, a RBS), já que até atores “globais” o filme teve. Ah, mas se o próprio Luiz Antônio de Assis Brasil confessou, no posfácio de Videiras de Cristal, que não teve o compromisso de seguir os fatos reais em sua reconstituição da história de Jacobina Maurer, por que não também Barreto e Serran? Assim, todos estão redimidos.
Ah: até o momento em que escrevo, A PAIXÃO DE JACOBINA está disponível, completo, no YouTube, para quem quiser conferir (assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=zLel0siiLdY). Mas, sendo filme mais recente, é fácil encontrá-lo também em DVD.

Esta postagem é uma versão revisada e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Os livros ainda são a melhor fonte para se conhecer a História: “trapaceiam” menos que o cinema. Portanto: visitem a Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges. Em caso de dúvidas se o livro que procura está disponível ou não, peça auxílio às bibliotecárias. Doações também são bem-vindas.
Até mais!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Resenha de filmes: OS MUCKER

Olá.
Aqui é o Rafael Grasel novamente, em mais uma colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje, o blog trará uma novidade: vamos falar de filmes. De vez em quando, iremos trazer resenhas de filmes que tenham relação com a literatura, sejam adaptações de obras literárias ou que tenham apenas alguma relação com temas anteriormente tratados.
O filme escolhido de hoje tem apenas relação com um livro anteriormente resenhado – é um filme de fundo histórico.
Na última postagem, resenhei um livro de Fidélis Dalcin Barbosa, Os Fanáticos de Jacobina, que tratava a respeito da Revolta dos Muckers de Sapiranga, RS (1868 – 1874). Quando falei desse livro, citei que haviam sido produzidos dois filmes sobre esse episódio histórico, que por muito tempo havia sido um tabu da história do Rio Grande do Sul.
Sim, hoje vou falar de um desses filmes. Começo logo pelo primeiro, OS MUCKER, de 1978.

O FILME EM SI
Well. OS MUCKER – O MASSACRE DA SEITA DO FERRABRAZ (Jakobine, na versão internacional) foi a primeira produção cinematográfica a respeito da Revolta dos Muckers. Produção conjunta entre Brasil e Alemanha Ocidental (lembrem-se: nos anos 1970, a Alemanha era dividida em duas, por conta da Guerra Fria entre EUA e URSS). Com produção do Estúdio Stopfilm, distribuição da Embrafilme. Dirigida pelo brasileiro Jorge Bodanzky e pelo alemão Wolf Gauer (este último é o autor, também, do roteiro, enquanto Bodanzky cuidou também da câmera).
O filme é ambientado no Brasil, e foi gravado no estado de São Paulo (pelo que descobri em pesquisas) em paisagens que procuram imitar as do Rio Grande do Sul, mas boa parte dos diálogos é em hunsrückisch, um dialeto germânico comum entre os descendentes de alemães. Há trechos de diálogos em português, mas é o alemão, o tal hunsrückisch, que domina boa parte do filme (com legendas, claro).
Algo que contribui substancialmente para a veracidade do drama de 105 minutos é o fato de boa parte de seus elenco ser de descendentes de muckers, que não eram atores profissionais. O filme foi bastante premiado em sua época: recebeu os troféus Kikito de Melhor Atriz (para a atriz principal, Marlise Saueressig), Melhor Direção e Melhor Cenografia (para Dorlai Schumacher) do Festival de Cinema de Gramado, RS, em 1979, e os prêmios de Melhor Filme e Melhor Direção do Prêmio Air France, RJ, no mesmo ano.
Para melhor tratar a respeito do filme e de opiniões a respeito, faço uso das palavras da jornalista Gabriela Soutello, de um artigo publicado na época em que o diretor Wolf Gauer veio ao Brasil, em agosto de 2015. A matéria foi extraída do site Uol Notícias – link: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2015/08/19/para-diretor-tematica-religiosa-do-filme-os-mucker-segue-atual.htm

Para diretor, temática religiosa do filme "Os Mucker" segue atual

Gabriela Soutello
19/08/2015 – 14h45
Fundamentalismo religioso continua presente na sociedade brasileira, afirma cineasta alemão Wolf Gauer, que participou em São Paulo de um debate sobre o seu filme que narra a história da seita religiosa gaúcha.
Por volta de 1824 chegavam ao sul do Brasil os primeiros imigrantes da Alemanha, em fuga principalmente da pobreza e movidos pela esperança de uma vida melhor. Cinquenta anos depois, um novo grupo de alemães desembarcava na mesma região, mas com maior dificuldade para se estabelecer: as melhores terras do Vale do Rio do Sinos, no interior do Rio Grande do Sul, já estavam ocupadas.
O filme Os Mucker, co-produção de 1978 do diretor alemão Wolf Gauer com o brasileiro Jorge Bodanzky, foi exibido (...) na Cia Paidéia de Teatro, em Santo Amaro, zona sul de São Paulo. A exibição foi seguida de um debate entre o público e Gauer.
A obra narra a trajetória de um grupo socialmente isolado, que não usava dinheiro em suas trocas comerciais e cujos membros não bebiam nem fumavam. No sectarismo e no fundamentalismo religioso, eles encontraram uma resposta à necessidade de sobreviver em condições miseráveis.
O grupo é liderado por Jacobina Mentz, considerada pelos seguidores como uma nova Jesus Cristo, e seu marido, João Jorge Maurer, curandeiro. Jacobina, além de um gênio forte, tinha epilepsia, "desde os tempos antigos vista como predestinação divina", como afirma Gauer, e não demorou a se tornar "porta-voz e líder dos menos afortunados".

Temática contemporânea
Acusados de feitiçaria e rechaçados pela comunidade da região, os seguidores de Jacobina foram exterminados pelo poder estatal. "Quem era diferente logo era considerado bruxo, feiticeiro ou criminoso, principalmente pelas igrejas tradicionais", comenta Gauer. "O filme tenta explicar a origem da violência entre grupos sociais, mesmo sendo esses grupos quase homogêneos e de caráter religioso."
Ainda que Os Mucker se passe no século 18, alguns aspectos abordados no filme permanecem atuais. "Jacobina recorreu ao pensamento religioso porque não tinha outro modelo de pensar", afirma Gauer. "Existem processos parecidos na atualidade brasileira, como o afluxo de pessoas pobres a seitas religiosas e a autodenominadas 'igrejas', que prometem resolver com 'milagres' os problemas dos que aderem. Há um fundamentalismo generalizado", diz.
O diretor explica que o filme tem falas em alemão e em português, de acordo com a língua nativa dos que participaram da produção. "Muitos descendentes dos Mucker, e que não eram atores profissionais, trabalharam no filme", diz Gauer.
"Até o surgimento do filme, a história dos Mucker era vista como uma 'mancha negra' do Rio Grande do Sul. Depois dele, alguns atores declararam se sentir 'absolvidos' do trauma de serem descendentes de supostos criminosos", afirma.
Sobre a coprodução de filmes com Bodanzky - Gauer no roteiro e o brasileiro na câmera -, que começou com filmes educativos na Alemanha, o diretor alemão afirma que foi o interesse social que inspirou os trabalhos. "Trata-se da abordagem de processos e conflitos dentro da sociedade que não são explicados pela mídia. E com a prerrogativa de sempre trazer a participação da população envolvida com a história de cada filme."
(...)

VOLTANDO ÀS MINHAS PRÓPRIAS PALAVRAS
Bueno. A matéria transcrita já disse várias coisas a respeito de OS MUCKER: sinopse, direção, algumas curiosidades dos bastidores, as opiniões de Wolf Gauer comparando a época atual e a da produção do filme. Acho que nem vou me dar ao trabalho de rememorar o que foi a Revolta dos Muckers, quem foi Jacobina Maurer, os resultados. Comparando com o citado livro de Fidélis Barbosa, publicado alguns anos antes do filme (em forma de folhetim para o jornal Correio Riograndense, de Caxias do Sul, em 1970, em livro em 1976), podemos em princípio dizer que OS MUCKER é fiel aos fatos históricos. O filme busca deixar claro que o messianismo em torno da figura de Jacobina Maurer é uma resposta ao abandono por parte do Poder Público da época, mas sem deixar claro quem eram os “mocinhos” e quem eram os “vilões” da história.
Jacobina Maurer é interpretada pela atriz Marlise Saueressig. No elenco, ainda constam os nomes dos brasileiros Paulo César Pereio, como o Capitão da Polícia, e José Lewgoy, como o Juiz Abílio – ambos envolvidos no conflito do lado oposto aos muckers.
Bem. Para começar, a cenografia capta bem a paisagem do local das filmagens, passando ao espectador a ideia do isolamento aos quais os colonos alemães se encontravam, em seu trabalho na terra, no Morro do Ferrabraz, o matagal cercando as casas, boa parte com as tábuas lascadas, algumas construções de alvenaria. Esse isolamento é reforçado pelo fato de o filme não ter trilha sonora de fundo. Algumas músicas são tocadas e/ou entoadas pelos atores, mas o filme é praticamente silencioso: apenas os diálogos e os sons do ambiente em redor – cantos de pássaros e de grilos. Mas algumas cópias possuem problemas na parte do som, que não está sincronizado às falas dos atores, e mesmo os efeitos sonoros tem problemas: dá para notar que os sons dos disparos das armas são falsos. A ideia é recriar, sim, o ambiente do século XIX dos pontos isolados do Rio Grande do Sul. Claro que no estado de São Paulo...
O enredo do filme se desenrola lentamente, sem muita pressa. O recorte de tempo escolhido foi o ano final da Revolta, 1874. Somos apresentados ao contexto da época, etc.
Quase tudo o que diz respeito aos muckers é tratado no filme: as reuniões conduzidas por Jacobina Maurer – e alguns de seus fiéis a tratando como encarnação de Jesus Cristo; o caráter ambíguo da personagem – incitando o desrespeito às autoridades da época e a perseguição aos opositores da seita, e até “deitando-se” com fiéis no campo – bem como as opiniões ambíguas a respeito dela, gente que crê na suposta santa, e gente que vê nela uma embusteira, sendo algumas oposições ocorrendo dentro de famílias; as primeiras perseguições policiais aos muckers, incluindo a vez em que Jacobina acaba conduzida de carroça para São Leopoldo, em uma de suas crises de sono letárgico, com colchão e tudo – quando ela acorda, em frente à Prefeitura, sob a cantoria do séquito que a acompanha, ela faz um discurso contra as autoridades, diante do prefeito de São Leopoldo (Tito Lívio) e do Juiz Abílio, antes de deitar de novo; a preparação, pelos muckers, de um memorial para o Imperador do Brasil pedindo proteção à seita; o armamento dos muckers por recomendação de Jacobina, os conflitos com a polícia, e os consequentes ataques dos muckers às famílias de colonos opositores, pondo fogo em residências e matando as famílias a tiros e coronhadas; o refúgio dos muckers em um matagal; e o conflito final no morro entre os muckers e o exército, onde Jacobina e vários seguidores acabam perecendo. Já a atuação de João Maurer, marido de Jacobina, no início da formação da seita, é mais citado por alto do que mostrado – o foco do filme acaba sendo Jacobina.
Em paralelo à história de Jacobina, são contadas outras histórias. Uma delas é a do velho Pedro Hauber (Abdon Schnorr), que, no início do filme, acaba tendo os bens apreendidos por determinação judicial, incluindo o filho Georg (Romeu Schutz). Membro da seita mucker, Hauber, mais tarde, é encontrado enforcado no mato – as pessoas que encontram seu corpo creem que ele fora vítima de feitiçaria por parte de Jacobina, que seu suicídio foi induzido.
Outra história que corre em paralelo é a do jovem Wilhelm Golzer (Marcus Schimidt), filho do deputado Golzer (Fritz Hill). Ele é instado pelo pai para viajar para a Alemanha fazer compras para a colônia. Wilhelm tem uma relação amorosa com uma colona, Maria Sehn (Carla Saueressig) – e ambos tem seus diálogos em português. Em um primeiro encontro, quando a jovem está lavando uma galinha no rio, Maria chega a pedir que Wilhelm a leve junto para a Alemanha. Ao longo do filme, ambos vão desenvolvendo o relacionamento, que acaba de modo trágico. Wilhelm acaba se juntando aos muckers, e seu casamento com Maria é celebrado por Jacobina; ambos, no entanto, acabam perecendo durante um ataque, não se sabe se de muckers ou de opositores dos muckers.
Vários outros personagens são creditados na história, mas não é fácil identifica-los, pois muitas vezes seus nomes nem são ditos ao longo do filme.
Bem. OS MUCKER não é um filme fácil de assistir – tem pretensões filosóficas demais, e por isso não consegue atingir o grande público. É um filme brasileiro “de arte”, daqueles que nem os brasileiros natos tem paciência para assistir – e que precisa ser assistido mais de uma vez para ser integralmente compreendido. Por isso não é fácil nem para eu fazer esta resenha. Talvez sejamos nós, espectadores, que nos acostumamos mal ao que o cinema contemporâneo nos trouxe. Não tenho notícias se o filme está disponível em DVD, mas, até o momento em que escrevo, ele está disponível, na íntegra, no YouTube (link: https://www.youtube.com/watch?v=W54QRKsnJN8). A quem quiser se arriscar, fica a recomendação.
Para breve, hei de trazer a vocês, continuando a falar a respeito da Revolta dos Muckers, resenhas do livro Videiras de Cristal, de Luís Antônio de Assis Brasil, e de seu produto derivado, o filme A Paixão de Jacobina. A Revolta dos Muckers, por si mesma, não é um tema histórico fácil. O que seria realmente: um mero conflito conduzido por um bando de fanáticos, ou um movimento messiânico surgido como resposta ao descaso das autoridades? Decidam vocês.

Esta postagem é uma versão revista e alterada do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br). Aproveitem e conheçam.
E não se esqueçam de ler livros de vez em quando: os livros ainda são a melhor fonte histórica disponível, já que o cinema não é 100% comprometido com a realidade.

Até mais!