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segunda-feira, 4 de junho de 2018

Dica de Leitura

Um Castelo no Pampa - Vol. 1 "Perversas Famílias"
Do amor de um homem por uma mulher surge um sonho: construir um castelo no meio do pampa gaúcho. Mas a concretização de tamanha empreitada caberia ao filho dele, Olímpio. Assim tem início Perversas famílias, o primeiro volume da série 'Um castelo no pampa'. Luiz Antonio de Assis Brasil, um dos maiores romancista brasileiros, conta a saga da família Borges da Fonseca e Menezes, que se confunde com a história do próprio Rio Grande do Sul. Narrada em um vaivém temporal, Perversas famílias revela aos poucos quem é quem. E como o título já diz, disseca as mentiras e a hipocrisia que rondam as relações entre pais, filhos e irmãos ao mesmo tempo em que põe por terra as contradições do projeto latifundiário-pecuarista, num turbilhão de emoções que tem continuidade nos outros livros da série, Pedra da memória e Os senhores do século.

Um Castelo no Pampa - Vol. 2 "Pedra da Memória"
“Pedra da memória”, segundo volume da série “Um castelo no pampa”, dá continuidade à saga da família Borges da Fonseca e Menezes. Se em Perversas famílias é apresentado o drama de Olímpio, da Condessa e de seus três filhos, aqui as histórias dos habitantes do castelo - contadas numa narrativa que ora avança, ora retrocede no tempo - começam a ser desvendadas, e a aura majestosa do castelo rui, assim como rui a pompa da aristocracia gaúcha.

Um Castelo no Pampa - Vol. 3 "Os Senhores do Século"
Neste último volume da série 'Um castelo no Pampa', o protagonista, misto de político e patriarca familiar, é atingido brutalmente pelos inúmeros conflitos que sempre evitou encarar, e procura salvação num projeto espantoso.

Conheça estes livros e muito mais sobre a obra deste grande escritor gaúcho: Luiz Antônio Assis Brasil, visitando a Biblioteca Municipal Theobaldo Paim Borges.

Sinopses: Livraria Saraiva
Foto: Arquivo pessoal

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Clube de Leitura - Janeiro/2018


A Associação Amigos da Biblioteca Pública Municipal - ABT  C O N V I D A  você para mais um encontro do Clube de Leitura. Neste mês de Janeiro será o livro do escritor gaúcho Assis Brasil, com o livro CONCERTO CAMPESTRE.

Este é o 12º livro de Assis Brasil, que explora a tensão entre civilização e barbárie - refletida tanto no plano exterior, por meio do contraste entre a orquestra e a rústica paisagem campeira, quanto no interior, na personalidade de um homem que se deixa transportar pela música, mas é capaz de ir às últimas consequências para punir quem desobedece seu rígido código moral.

O Clube de Leitura, neste ano, está propondo uma "viagem literária" por todo o planeta. Estamos iniciando pelo Brasil, mais especificamente pelo Rio Grande do Sul, com esta obra. Venha participar deste tour literário. Traga sua sugestão de leitura para o próximo país a "visitar".

O CLUBE DE LEITURA se reúne sempre na última quarta-feira de cada mês (em Janeiro será dia 31), às 18 horas, na Biblioteca Pública Municipal (ao lado da Catedral).



quinta-feira, 16 de março de 2017

Seção Resenha de Cinema: CONCERTO CAMPESTRE

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em mais uma colaboração seguida para o blog da Biblioteca Pública. E hoje, com a Seção Resenha de Cinema – filmes baseados em livros.
Na última postagem, tratei do belíssimo romance Concerto Campestre, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Um libreto de ópera sul-riograndense, de leitura rápida e proveitosa.
Pois hoje, vou tratar de seu produto derivado: CONCERTO CAMPESTRE – o filme. Tão belo quanto o livro – até certo ponto.

ASPECTOS TÉCNICOS
Bem. CONCERTO CAMPESTRE, o livro, foi publicado em 1997; no ano seguinte, o cineasta Henrique de Freitas Lima, percebendo o potencial do romance para uma adaptação cinematográfica, inicia o projeto para a dita adaptação. O projeto correu de 1998 a 2003, e CONCERTO CAMPESTRE, o filme, chega aos cinemas em 2005. Duração de 100 minutos. Com direção de Henrique de Freitas Lima, com assistência de Nestor Monastério. O roteiro da adaptação é de José Mandel Fernandez, Pedro Zimmermann e Tabajara Ruas, com produção da Empresa Cinematográfica Pampeana.
CONCERTO CAMPESTRE é a segunda adaptação de um romance de Luiz Antonio de Assis Brasil para o cinema – a primeira foi A Paixão de Jacobina, de 2002, criticada adaptação de Fábio Barreto do romance Videiras de Cristal (1990). Vamos lembrar que Assis Brasil já foi vertido cinco vezes para o cinema: além de Videiras de Cristal e Concerto Campestre, tivemos as adaptações de Um Quarto de Légua em Quadro (1976), sob o nome Diário de Um Novo Mundo (direção de Paulo Nascimento, 2005); Manhã Transfigurada (1982) rendeu um filme homônimo (dirigido por Sérgio de Assis Brasil, 2008); e Ensaios Íntimos e Imperfeitos (2008) é adaptado para uma série de mini documentários dirigidos por Douglas Machado, em 2016, com atuação do próprio Assis Brasil. Esses documentários podem ser assistidos no website do autor.

VOLTANDO AO FILME...
CONCERTO CAMPESTRE tem, a seu favor: a boa reconstituição histórica (o filme se passa no ano de 1860, no contexto da era das charqueadas no Rio Grande do Sul), a estonteante cenografia e a enorme fidelidade ao romance. Freitas Lima e seus cúmplices tomaram apenas algumas liberdades e fizeram algumas mudanças em detalhes do enredo, mas a história do livro, em si, não apresenta grandes mudanças – os fatos principais da história, do começo ao fim, foram mantidos. Alguns acréscimos, de fatos e personagens novos, enriquecem o enredo.
Uma das preocupações de Freitas Lima e equipe foi manter o principal motor da trama, a música. As músicas de fundo se compõem de peças conhecidas e/ou pouco conhecidas de música clássica, interpretadas pela orquestra regida por Jean Potiguara; e, assim, o filme transmite bem a proposta de retratar a época em que se passa. Outra preocupação da equipe do filme foi expressar em imagens o tom bucólico do romance, passado quase todo em uma fazenda do interior do Rio Grande do Sul (então chamado Província de São Pedro). Isso fica explícito logo na cena de abertura, com a sequência mostrando o trabalho numa charqueada – vaqueiros manejando o gado nos campos e nos cercados, carneando bois, e escravos (na época, 1860, ainda imperava a escravidão nas atividades produtivas brasileiras) tratando a carne, colocando-a para secar ao sol, livrando-se dos restos dos bois, e o sangue das reses correndo através de canaletas até um poço próximo.
A charqueada pertence ao rude Major Eleutério de Fontes (Antonio Abujamra). Um dia, ele escuta, durante um passeio pela propriedade, dois índios missioneiros e nômades tocando música sob uma árvore; o Major gosta do que ouve, e contrata os índios para sua fazenda, para tocar para ele. O Major reside com sua família na fazenda charqueadora: entre os membros, a severa esposa, Dona Brígida (Araci Esteves, que, entre outros trabalhos, participou de outros dois filmes ambientados no Rio Grande do Sul, Anahy de las Misiones [direção de Sérgio Silva, 1997] e Netto Perde Sua Alma [direção de Tabajara Ruas e Beto Souza, 2001]), que acha o gosto do Major pela música uma perda de tempo, e a filha, Clara Victoria (Samara Felippo), petulante e com arroubos de rebeldia.
A notícia se espalha, e logo outros músicos chegam para trabalhar na estância, em boa parte vagabundos sem ter para onde ir. O Major confidencia com o Vigário da Vila de São Vicente (Miguel Ramos) a possibilidade de montar uma orquestra; e o Vigário recomenda o aventureiro Miguel, vulgo Maestro (Leonardo Vieira) para organizar os músicos em uma orquestra decente.
O sedutor Maestro aceita a incumbência da organização da orquestra, mas logo vê que as coisas não são tão simples como a princípio imaginava. O Major recomenda ao Maestro “severidade e virtude”, traduzidos como “trabalho e disciplina”. O estancieiro manda buscar, inclusive, instrumentos para a organização da orquestra, batizada de Orquestra Santa Cecília, por sugestão do Vigário.
O Maestro trabalha com afinco e alguma severidade para organizar o grupo de músicos de talento mediano (entre os músicos está o ator e violinista Hique Gomes, do espetáculo humorístico Tangos e Tragédias, inclusive protagonizando uma cena cômica!). Enquanto isso, seus passos são observados tanto pelo Major quanto pela mocinha Clara Victoria, que se interessa pela figura do mulato. Mas, este, a princípio, vive às turras com a moça – em uma cena, implica com Clara Victoria quando ela resolve arear panelas, junto com as criadas, perto do galpão onde os músicos ensaiam.
O Maestro, enquanto escreve pautas e dedilha seu bandolim nas horas de folga, e enquanto ensaia com a orquestra durante horas, observa o dia-a-dia da charqueada. Vê que, apesar de demonstrar um pendor para a modernidade com a sua orquestra, o Major mantém códigos morais conservadores para com as pessoas que o cercam: é severo com os escravos e familiares. Em uma cena, o Maestro usa como exemplo de castigo por indisciplina, aos músicos, um escravo que foi morto por empregados da fazenda durante uma tentativa de fuga do cativeiro. Em outra, o Major pune, amarrando ao tronco e dando-lhes chibatadas, um escravo rebelde, João Congo (Sirmar Antunes). Dona Brígida, por sua vez, vê na orquestra um sinal de loucura do marido, enquanto se preocupa com um bom casamento para Clara Victoria – tenta empurrar a filha para se casar com Silvestre Pimentel (Alexandre Paternost, que esteve no elenco de A Paixão de Jacobina como João Maurer, o marido da protagonista), o herdeiro de uma estância vizinha. Entretanto, a moça, embora obedeça a mãe, demonstra sinais de rebeldia, com suas respostas petulantes e não correspondendo à afeição do bonito, porém tedioso, Silvestre. Fica evidente, inclusive, que o Major e Dona Brígida não se dão bem um com o outro – eles partilham apenas dos códigos morais conservadores e algo tacanhos. Dona Brígida acaba ganhando ares de vilania.
A orquestra, já ensaiando na capela da fazenda, só começa a ir para a frente com a entrada do erudito Antônio de Lima, o Rossini (Roberto Birindelli), que se torna grande amigo e confidente do Maestro.
Mas não sem algum conflito: o Maestro tem um desentendimento com o Major porque resolve convocar o escravo João Congo para tocar os tambores, depois de presenciá-lo, na senzala, batucando durante o velório ao modo africano do escravo morto. A contragosto, o Major concorda em colocar o rebelde na orquestra. E, dentro de breve, a Orquestra Santa Cecília consegue encontrar a harmonia.
O Major convoca pessoas dos arredores para assistir a primeira apresentação da orquestra, que se torna um sucesso. E, logo, a Orquestra Santa Cecília sai em turnê pela Província. O Major até constrói um palco ao ar livre em um terreno da estância para futuras apresentações da Orquestra anta Cecília.
Enquanto isso, começa a se desenvolver a relação amorosa entre Clara Victoria e o Maestro. Aos poucos, o mulato se apaixona pela mocinha – o Maestro, a pedido da moça, ensina-a a ler e escrever. E daí, desenvolve-se o romance. Clara Victoria engravida do músico, e consegue esconder o fato o quanto pode, enquanto continua obrigada a se encontrar com Silvestre Pimentel, que está, sim, interessado na mocinha. Apenas Rossini, comparando a situação a uma ópera, sabe do romance proibido. Mas, logo, o Vigário acaba descobrindo, mediante confissão da mocinha, e tenta, nesse ínterim, adiantar o casamento entre Clara Victoria e Silvestre Pimentel, o que desperta desconfiança por parte do Major.
Entretanto, logo que os pais descobrem que a filha engravida, tudo se encaminha para a tragédia: Dona Brígida e o Major acreditam que o responsável pela gravidez foi Silvestre Pimentel, e o estancieiro tenta matar o rapaz a tiros, conseguindo apenas, entretanto, aleijá-lo. Clara Victoria acaba expulsa de casa, levada a viver em uma casa abandonada na beira de um arroio, dentro de uma mata, tendo apenas o capataz, Salvador (Pedro Machado) e a criada Sinhá Gonçalves (Naiara Harry) para se preocupar com seu destino. Na casa, Clara Victoria tem sua filha, que é levada para ser amamentada por uma mulher da vila.
O Major, que ainda proíbe que se fale da filha em casa, ainda despede a Orquestra Santa Cecília. O Maestro sofre muito, mesmo consolado por Rossini, e ainda é repreendido pelo Vigário. E o Major, sem sua orquestra, começa a enlouquecer, sempre indo ao palco construído, ouvindo orquestras imaginárias. Dona Brígida também começa a surtar com a loucura que toma conta de seu lar. Aí, a Orquestra Santa Cecília resolve retornar para a estância – a ideia do maestro é confrontar o Major e tentar convencê-lo a reconsiderar o castigo dado a Clara Victoria. Aí, um fato fantástico ocorre para o desfecho da trama, enquanto Guará (Lori Nelson), empregado de Silvestre Pimentel, se encaminha para a estância para vingar o sofrimento do patrão...
Talvez a parte mais fraca de todo o filme seja a sequência final – a cena da tempestade que cai sobre a fazenda, e do pé-de-vento que cai sobre o poço de sangue bovino, fazendo chover sangue sobre as pessoas que estão assistindo a apresentação final da orquestra. A tempestade, produzida de maneira digital, não ficou convincente, apesar dos esforços da equipe de efeitos especiais, coordenada por Paulo Crespo e Hugo Werle.
Mas o restante do filme vale a assistida. Houve esmero na reconstituição histórica. O enredo acabou enriquecido com os detalhes acrescentados em relação ao livro – por exemplo: o Maestro, no livro, não tem seu nome verdadeiro revelado: é só no filme que ele se chama Miguel. E o personagem João Congo não existe no livro – sua inclusão no roteiro foi uma boa aquisição, aliás, no livro, Assis Brasil não inclui escravos entre os personagens centrais. O contexto pelo qual o Maestro e Rossini se conhecem também é diferente entre o livro e o filme – o Maestro encontra Rossini durante uma viagem para Porto Alegre, no livro, enquanto que, no filme, Rossini se apresenta na estância, e aparece durante o primeiro ensaio da orquestra na capela. Do personagem Vigário, foi retirada dele sua característica de consultar constantemente o termômetro, mantendo seu caráter conservador. E nem Guará existe no livro – ele, no filme, dá um fim diferente do constante no livro a Silvestre Pimentel e ao Major... Oh: a tapera do boqueirão, para onde Clara Victoria é levada, é apresentada no início do livro como um local mal-assombrado, de onde escravos do Major vão colher uvas muito apreciadas; tal característica, a das “uvas do fantasma”, é retirada do roteiro do filme, e a tapera é apresentada bem depois. Ah: a turnê da Orquestra Santa Cecília pela província, se bem me lembro, também não consta no livro.
Mas, no mais, o filme é bem fiel ao livro. Mantém toda a estrutura de sua história, sem tirar demais, sem acrescentar demais. E as interpretações dos personagens são excelentes. O resultado ficou bem melhor que A Paixão de Jacobina, que pouco trouxe do romance original. Ressalta bem o bucolismo proposto do Assis Brasil, e é excelente para exibição em escolas, como retrato de uma época – seus 100 minutos passam voando. Algumas peças de música clássica que fazem parte da trilha sonora são reconhecíveis, principalmente para quem cresceu apreciando esse tipo de música através dos desenhos animados.
Ainda que o cinema nacional seja algo para se ver com reservas, CONCERTO CAMPESTRE vale uma sessão. Com os típicos elementos de uma novela. E já que temos atores globais no elenco, isso fica evidente.
Ah: o filme completo já pode ser encontrado no YouTube, até o momento em que escrevo (assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=X-dUBEMCS9k), embora seja fácil acha-lo em DVD nas locadoras. Não duvido que também já esteja disponível nos sites de streaming na internet.

Este texto é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Assistam ao filme, mas também não deixem de ler o livro! Este também está disponível na Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges!
Em breve, nova resenha. Tanto de livro como de filme.

Até mais!

quarta-feira, 15 de março de 2017

Seção Resenha de Livros: CONCERTO CAMPESTRE

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública. Faz tempo que não passo aos leitores outra resenha de livros, então, vamos dar uma movimentada neste blog.
Vamos falar, hoje, de livro. De romance. De romance de fundo histórico ambientado no Rio Grande do Sul. Vamos trazer de novo aos holofotes o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, um especialista no gênero.
Vamos hoje falar de CONCERTO CAMPESTRE.

O LIVRO
CONCERTO CAMPESTRE, hoje o livro mais lembrado de Assis Brasil – muito por conta da adaptação do mesmo para cinema – foi publicado pela primeira vez em 1997, pela editora L&PM, atual editora das obras do escritor. A capa acima é da primeira edição, com ilustração do cartunista Caulos – e com essa ilustração permanece nas edições posteriores.
O romance, ao contrário dos dois outros que resenhei aqui no blog – Cães da Província e Videiras de Cristal – não se serve de fatos reais para a construção ficcional, ou melhor, só um pouco. CONCERTO CAMPESTRE se utiliza de um contexto histórico conhecido pela historiografia e de uma história lendária para a condução do enredo, além de carregar um pouco da experiência de vida do autor – o motor do enredo é a música clássica, e Luiz Antonio de Assis Brasil já havia sido músico, tendo tocado na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) como violoncelista, nos anos 1970, antes de abraçar a literatura.
Outro motor do enredo ele relata em uma nota no posfácio da obra:
“A história da moça abandonada no boqueirão me foi contada por uma amiga, a escritora Hilda Simões Lopes, e aconteceu no século passado [século XIX], nos campos de sua família. É, portanto, uma ‘história real’, o que lhe dá certa nota picante; mas aqui, como em todas as realidades, a fantasia ocupa o lugar do trivial e do desconhecido – e isso é apenas uma homenagem à Literatura. (L.A. de A.B.)” (in: Concerto Campestre – L&PM, 1997, p. 175).
CONCERTO CAMPESTRE ganhou ainda mais notoriedade após a adaptação para cinema, dirigida por Henrique de Freitas Lima em 2004. Deste falamos depois.
A narrativa de CONCERTO CAMPESTRE é conduzida fazendo uso do insólito, do inesperado, do suspense e do bucolismo (forma de poesia que valoriza a vida pastoril), conduzido suavemente como uma valsa ecoando na solidão do pampa, num enredo que envolve preconceitos, paixões, violência e termina num final surpreendente. Além disso, é um livro que se lê em uma só sentada: a primeira edição tem 176 páginas, sem contar capa, e só sete capítulos. Só o que pode assustar o leitor são os parágrafos contínuos, intermináveis, e quase sem travessões para indicar os diálogos. Fora isso, o livro de narrativa não-linear, com idas e vindas constantes de um ponto do tempo a outro, ritmo de uma ópera e revelações surpreendentes ao fim de cada capítulo, é agradável.

O ENREDO DA ÓPERA
A história de CONCERTO CAMPESTRE se passa na segunda metade do século XIX, no interior do Rio Grande do Sul, na vila de São Vicente, à beira do Rio Santa Maria. Ali, está a estância charqueadora (fazenda de criação de gado e produção de carne-seca para comércio) pertencente ao conservador e autoritário Major Antônio Eleutério Fontes, homem de passado rude que atuara na Guerra dos Farrapos. Ali, ele vive com a família, composta pela esposa, a ainda mais conservadora D. Brígida, três filhos homens, dois netos e uma filha temporã, Clara Vitória.
Apesar do conservadorismo e dos códigos morais hoje tacanhos, que ele procura preservar a todo custo, o Major Eleutério cultiva uma excentricidade, que podemos tomar como um sinal de modernidade, naquele local ermo e praticamente longe de outros sinais de civilização: uma orquestra particular, a Lira Santa Cecília.
Começou quando o Major encontrou dois índios missioneiros e andarilhos tocando seus instrumentos, e, após uma desconfiança inicial, praticamente gostou do que viu e ouviu, contratando os dois índios para trabalhar na estância, e, claro, tocar de vez em quando para ele. Naquela época, música, de acordo com a moral dos estancieiros, era coisa malvista, coisa de gente de má vida – bêbados e prostitutas – e aceitável apenas dentro das igrejas, por isso D. Brígida, principalmente, símbolo da mentalidade arcaica que se contrapõe ao sinal de modernidade do Major, desaprova a atitude inicial do marido, e o que vem depois...
A notícia de que o Major estava admitindo músicos em sua estância se espalha, e logo outros músicos procuram trabalho na estância. A coisa, no entanto, foge um pouco do controle, pois a maioria desses músicos era de andarilhos e vagabundos – e os índios foram embora, ou pela natureza nômade ou por causa do preconceito dos outros músicos – e então, por sugestão do Vigário da Paróquia de São Vicente – um padre dividido entre o conservadorismo e a modernidade, já que, apesar de se opor às relações amorosas “modernas”, costuma consultar um termômetro para avaliar o tempo – o Major resolve organizar os músicos em uma orquestra.
Para colocar ordem nos músicos da fazenda, o Vigário recomenda ao Major o musico conhecido apenas como Maestro. O mulato, nascido em Minas Gerais, teve uma vida de verdadeiras aventuras, entre empregos como músico em igrejas e no exército, e convivendo com gente “de má fama”, sempre acompanhado de seu bandolim, que ele dedilha nas horas de folga. O Maestro, pago para se dedicar exclusivamente à orquestra, e que ganhou inclusive seu próprio quarto, coloca ordem na casa: organiza os músicos em uma orquestra respeitável, com instrumentos de cordas e metais (que o próprio Major importa), inclusive trazendo músicos de Porto Alegre. Entre eles, o rabequista veterano conhecido como Rossini, por conta de seu gosto por ópera, talentoso e erudito, e que se torna o grande amigo e confidente do Maestro.
Mas o Maestro não é necessariamente um modelo de bom comportamento: apesar das recomendações do vigário e do Major, em uma noite, o mulato seduz uma cozinheira da estância. O Maestro, após ser denunciado, leva uma reprimenda do Major, que, por via das dúvidas, despede a cozinheira.
A Lira Santa Cecília logo se organiza, tocando melodias suaves e agradáveis em festas, velórios ou apenas para o deleite do Major, chamando a atenção inclusive dos amigos dele. Um deles faz questão que a Lira toque em seu velório, como um último desejo. Entre um ensaio e outro, o Maestro acaba chamando a atenção da adolescente Clara Vitória, então na flor da virgindade e da pureza, e em idade de casar – tanto que, por imposição da mãe, passa boa parte do tempo confeccionando seu enxoval, embora seu real desejo seja o de aprender a ler e escrever.
A moça se apaixona pelo Maestro, mas inicialmente o músico a rechaça; mas, pouco a pouco, o Maestro começa a corresponder à afeição da garota. E ambos começam a viver uma relação amorosa proibida e secreta. O Maestro chega a dedicar a Clara Vitória uma composição. E a garota, entre um encontro furtivo e outro no quarto do Maestro, acaba engravidando do mulato.
A gravidez ficou escondida o quanto foi possível. Enquanto isso, D. Brígida, que acha a organização da orquestra uma perda de tempo e preocupada com a posição social da família, tenta arranjar o casamento de Clara Vitória com Silvestre Pimentel, sobrinho e herdeiro do Barão de Três Rios, dono de uma estância vizinha. Vive arranjando encontros entre os dois, sem desconfiar que a filha ama outro, claro. Enquanto isso, Silvestre Pimentel vai adiando a data do casamento – nesse meio tempo, seu tio falece.
Mas não demora para que D. Brígida descubra a gravidez da filha. O primeiro a saber do assunto, mediante confissão, foi o Vigário. Felizmente, quando a gravidez de Clara Vitória vem à tona, a família imagina que o responsável foi Silvestre Pimentel, já que, em uma ocasião, os dois haviam saído sozinhos ao pomar, mas sob os olhares de uma criada. Mas, infelizmente, os inocentes acabam pagando o pato: o Major tenta matar Silvestre Pimentel, mas fracassa. Já quanto a Clara Vitória, leva bofetadas da mãe e o pai acaba a renegando, condenando-a a viver em uma casa abandonada dentro do mato. Essa casa era tida como mal-assombrada, e no local então só entravam alguns escravos para colher cachos de uvas de uma parreira próxima. O acesso à floresta é cortado e vigiado. Em outro acesso de loucura, o Major despede a Lira Santa Cecília, e o Maestro, Rossini e os outros músicos vão para Porto Alegre.
Com o passar do tempo, todos passam por uma degradação moral. O Major vai perdendo a razão, e sua estância, agora administrada pelos filhos mais velhos, passa a ser evitada por todos, inclusive pelo Vigário, depois do que o Major fez a Clara Vitória; a filha, por sua vez, começa a se acostumar com a solidão do lugar ermo, cujo contato com o mundo passa a ser através do capataz da fazenda, que lhe traz comida dia sim dia não, e da parteira – Clara Vitória tem sua filha ali na tapera, e a menina é levada para ser amamentada por uma ama da estância; e o Maestro, por sua vez, vai padecendo de saudades de sua amada, e leva uma vida indisciplinada em seu novo emprego. Está decidido a voltar para a estância e resgatar Clara Vitória.
Afinal, depois de algum tempo, ele consegue realizar seu intento: levando a Lira Santa Cecília, o Maestro retorna, e é recebido com alegria pelo Major, que solicita uma apresentação. Porém, como nenhum dos amigos do Major quer comparecer ao concerto, o homem obriga a criadagem a assistir a apresentação. E os acontecimentos que se seguem são os mais insólitos, envolvendo uma morte e uma inesperada chuva de sangue, conduzindo ao final de uma ópera... com final trágico porém allegro.
Luiz Antonio de Assis Brasil conduz uma ópera sul-riograndense, com influência das poesias bucólicas do poeta romano Virgílio e traduzindo em palavras os sentimentos de quem está preso ao campo em todos os sentidos: desde o espaço geográfico até as convicções morais. Conflito entre modernidade e conservadorismo, até mesmo na forma de amar. A narrativa, apesar da linguagem erudita, prende o leitor até o fim, depois que ele se acostuma com a forma do texto.
CONCERTO CAMPESTRE pode ser encontrado com facilidade nas bibliotecas e em algumas livrarias. Disponível também nos formatos pocket e e-book.

Esta postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Não deixem de visitar a Biblioteca Municipal Theobaldo Paim Borges! Leiam o livro, e depois assistam ao filme!
Falando nisso, na próxima postagem: CONCERTO CAMPESTRE, o filme.

Até mais!

domingo, 18 de dezembro de 2016

Seção Resenha de Cinema: A PAIXÃO DE JACOBINA

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje, volto a falar de filme – esta é a Seção Resenha de Cinema, falando de adaptações de livros para a Sétima Arte.
Volto a falar da Revolta dos Mucker. Volto a falar de Jacobina Maurer. E hoje vou falar do produto mais “comercial” a respeito do conflito messiânico da zona de imigração alemã do Rio Grande do Sul do século XIX.
Anteriormente, falei a respeito do livro Videiras de Cristal, de Luiz Antônio de Assis Brasil, a recriação ficcional em livro mais famosa do conflito. Hoje, então, resenho a adaptação cinematográfica do livro, A PAIXÃO DE JACOBINA. Ou melhor, adaptação, nem tanto adaptação: o filme de fato foi mais inspirado no livro do que adaptado do livro. Já explico.
Para começar, A PAIXÃO DE JACOBINA, filme brasileiro lançado em 2002, foi dirigido por Fábio Barreto, diretor que se consagrou com O Quatrilho (1995), adaptação do romance do escritor gaúcho José Clemente Pozenato, que até concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Barreto também é conhecido pelos filmes Luzia-Homem (1988), Bela Donna (1997), Nossa Senhora do Caravaggio (2007) e Lula – O Filho do Brasil (2009). Desde dezembro de 2009, após sofrer um grave acidente de carro, Barreto não dirige mais filmes. Após uma delicada cirurgia, em janeiro de 2010, está em casa, em tratamento.
O roteiro de A PAIXÃO DE JACOBINA é de Leopoldo Serran. E seu elenco é basicamente composto de atores consagrados, “globais”.
Antes de A PAIXÃO DE JACOBINA, a Revolta dos Mucker (1868 – 1874), o qual nem me darei ao trabalho de refrescar a memória dos leitores, havia sido retratada, nos cinemas, no filme Os Mucker (1978), de Jorge Bodanzky e Wolf Gauer. E, visualmente, A PAIXÃO DE JACOBINA tem muito jeito de ser um filme mais palatável ao público que seu antecessor. O filme de 2002 tem mais recursos que o de 1978: mais claridade, imagens mais nítidas, músicas de fundo, efeitos especiais, interpretações em linguagem mais novelesca e até uma inserção de merchandising. Além disso, enquanto o filme de 1978 foi gravado no estado de São Paulo, as locações do filme de 2002 são mais próximas do local dos acontecimentos: o filme foi gravado em Sapiranga e outros municípios do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. As locações do filme, hoje, fazem parte do roteiro turístico da cidade de Sapiranga.
Porém, é menos fiel à realidade histórica: os diálogos são todos em português (enquanto o filme de 1978 tinha diálogos alternando entre português e alemão hunsrückisch) e há deturpação dos fatos até mesmo em relação ao livro-fonte. Até mesmo uma inserção de uma trama romântica onde não havia.
Bão. O filme de Fábio Barreto também procura retratar a líder messiânica Jacobina Maurer (interpretada por Letícia Spiller), desta vez com um recorte de tempo maior: ela é mostrada rapidamente na infância, depois na adolescência, e no fim, na vida adulta. Antes e depois de se tornar a “Mutter” dos colonos alemães abandonados pelo poder público da época, antes e depois de dizer-se encarnação de Cristo na Terra, antes e depois de se tornar profetiza. Claro que essa vida é mostrada com um pouco de “trapaça” e deturpação.
A deturpação começa através do personagem Franz (Thiago Lacerda). Esse personagem não existiu nem na vida real, nem no livro de Assis Brasil – ele é cunhado de Jacobina, mas tem outro nome. Bem: nas cenas iniciais do filme, Jacobina demonstra, de um modo mal disfarçado, que é apaixonada por Franz, no dia do casamento deste. Porém, ambos os personagens vivem em tensão amorosa. Em uma cena, Franz flagra Jacobina tomando banho de cachoeira, e, mesmo sendo ambos casados, ambos tem um flerte ali mesmo, na piscina natural. Em crise de consciência, Jacobina dá o fora em Franz e segue sua vida. Mais tarde, Franz volta à vida de Jacobina quando ela já era considerada santa pela população local, e o casal vive em um vai e vem até Franz se juntar em definitivo à seita, conduzindo ao tradicional final dramático. Nada disso consta no livro.
Voltemos a Jacobina Maurer, antes Mentz. Bem, a personagem tem o seu caráter divino reforçado pelo roteiro do filme. No início do filme, ela é mostrada ainda na infância, com a mãe e os irmãos, fugindo da Guerra dos Farrapos; as crianças tem fome, mas a mãe impede-as de comerem de uma panela de feijão abandonada nas ruínas de uma casa, em uma tentativa de reforçar nelas o caráter de honestidade e de força nas adversidades (essa parte, sim, consta no livro). Em vários momentos, ela sofre desmaios e crises de sono letárgico, mas nessas crises ela tem ouve a voz de Deus falando com ela. E, nessas crises, ela tem o acompanhamento do médico Dr. Hillebrandt (Werner Schünemann). Foi após a primeira crise de desmaio, no momento em que a família bate uma fotografia na cerimônia de casamento de Franz, que Jacobina conhece o marido, João Maurer (Alexandre Paternost), então curandeiro – e que, inesperadamente, após a consulta, se declara a ela. Os dois se casam, e Jacobina ajuda João Maurer no tratamento de pacientes – enquanto vive a tensão amorosa com Franz – em casa, ao pé do morro do Ferrabraz. Foi após o parto da única filha (na vida real, Jacobina Maurer teve seis filhos) que Jacobina começa a “ouvir” a voz de Deus.
Outro personagem que vive em tensão constante com Jacobina, mas desta vez no campo das ideias, é o pastor Boeber (Antonio Calloni), que antes ouvia as confissões de Jacobina, porém, depois, a excomunga de sua comunidade e passa à oposição dos chamados mucker. E a maquete da igreja a qual o pastor passa boa parte do livro construindo, e que no romance tem um caráter simbólico (ela representa um projeto de comunidade religiosa da vida do pastor), aparece no filme, mas sem grande importância. No livro, a maquete inacabada acaba sendo destruída junto com a morte de Boeber; no filme, nem um nem outro morrem.
Bem. Pouco depois, Jacobina resolve assumir seu caráter de representante de Deus na Terra, despindo-se frente a um crucifixo cheio de luzes, depois realizando milagres junto aos pacientes do marido (se é que podemos chamar de milagre ela ter beijado os ferimentos da perna de um homem e este ter largado as muletas de repente) e, com trechos da Bíblia, confortando-os com palavras. Nesse ponto, ela passa a trajar apenas uma camisola branca; depois, ela é coroada com uma coroa de flores pelos fieis. Jacobina começa a juntar fieis em torno de si, pregando a Bíblia e o fim do mundo, e abençoando os fiéis com... beijos na boca. Entre os fiéis, entre familiares e simples gente que teve de vender suas propriedades ao governo, estão o parvo Jacó Mula (Leon Góes) e o violento Robinson (Felipe Kannenberg). Inicialmente frequentando os cultos, estava o mercador Nadler (Zé Victor Castiel) que, depois, escandalizado com o comportamento de Jacobina, retira-se da seita.
A seita já começa a arranjar opositores logo no início. Fica evidente na cena em que Jacó Mula, ao defender Jacobina no mercado de Nadler, é agredido por homens violentos. Esses mesmos homens matam, mais tarde, um seguidor da seita e seus cavalos. Depois, um dos agressores é morto e enforcado por homens mascarados, supostos mucker; e só aí é que a atenção das autoridades é despertada. A lei é representada pelo delegado João Lehn (Caco Ciocler), tendo como aliados o Dr. Hillebrandt e o Pastor Boeber. E, inicialmente aliado a estes, Franz.
Aliás, Lehn vive uma tensão amorosa (mais ou menos como no livro) com a mucker Elizabeth Carolina (Talita Castro) – mas, no filme, tal relação tem menos arrogância por parte do homem.
A tensão entre os mucker e os “ímpios” aumenta a cada instante. O mercador Nadler é encontrado morto dias depois de negar vender produtos a uma mulher mucker; depois, um membro da seita é encontrado morto de forma violenta. Jacobina até consegue fazer chover (literalmente) durante seu enterro.
Já não é mais possível manter as pregações de não-violência – a gota d’água é quando as autoridades conduzem Jacobina à justiça. Estando em crise de sono letárgico, ela é conduzida de carroça, deitada, a São Leopoldo, e sentenciada a ser internada na Santa Casa de Porto Alegre para se tratar do suposto distúrbio mental – e acaba tendo a cabeça raspada. E de cabeça raspada ela permanece até o fim do filme. Um fato astronômico previsto por Jacobina acaba dando mais força a ela e aos mucker: um meteoro cruza o céu no dia de Pentecostes (não consta no livro!). Após o retorno ao Ferrabraz, o discurso pacífico de Jacobina muda, e os mucker passam a perseguir os “ímpios” do mesmo modo que foram perseguidos. Fica evidente que a luta dos muckers, antes de tudo, é contra o sistema social injusto, ainda que pessoas inocentes também acabem pagando.
A gota d’água foi o atentado à vida de João Lehn: foi determinante para que as autoridades chamem o exército imperial, sob o comando do coronel Genuíno (Felipe Camargo) para combater os mucker.
E, nas cenas finais, há mais afastamento da realidade: na vida real, foram necessárias três expedições para dar fim aos mucker, e na segunda, o Coronel Genuíno morre acidentalmente, e Jacobina consegue escapar para o mato; no filme, foram necessários dois ataques, no segundo o “templo” de Jacobina acaba destruído, ela perece no fogo junto com Franz, e Genuíno não morre. Barreto e Serran trapacearam!
Well. O filme teve bilheteria razoável – só no Rio Grande do Sul foram 95 mil espectadores, segundo informações colhidas da internet – e teve apoio tanto de uma boa parte técnica, uma cenografia que capta bem as belezas da região do Vale dos Sinos, uma boa reconstituição dos cenários de época – e apenas dos cenários!
Mas as interpretações do filme geram algumas controvérsias.
Letícia Spiller como Jacobina, por exemplo. Para caracterizar a personagem, ela contou, inclusive, com o uso de perucas. E ela passa a maior parte do tempo olhando para o vazio, expressão distante, numa tentativa de reforçar a suposta deficiência mental de Jacobina Maurer (de acordo com as descrições dos historiadores). Sua interpretação, de um modo geral, é um tanto exagerada, bem de personagem de novela – e a presença de Franz só reforça a pieguice. E pensar que a ideia inicial do diretor Fábio Barreto era que a modelo gaúcha Gisele Bündchen interpretasse Jacobina Maurer...
Isso faz com que o título do filme adquira dois sentidos: “paixão”, tanto no significado do amor romântico entre Jacobina e Franz, como no sentido divino, o martírio da personagem próximo ao sofrido por Jesus Cristo.
Foi muito criticada a cena em que ela anda pelos campos, cercada de borboletas criadas digitalmente. O melhor efeito especial do filme ainda é a passagem do meteoro.
Já Alexandre Paternost, como João Maurer, praticamente expressa perfeitamente a insignificância que o personagem assume ao longo da história, simplesmente “desaparecendo” durante o filme. Afinal, como concorrer com a mulher beata e um rival galã?
Outros personagens do livro perdem empatia com relação a suas contrapartes do filme. É o caso de Jacó Mula, que no filme parece um débil mental (no livro nem é tanto assim), sempre soprando seus apitos e falando com dificuldade; e de Elizabeth Carolina, cuja tensão amorosa e crise de consciência ficam em segundo plano em todo filme. As atenções ficam voltadas, logo, para Jacobina, eliminando as histórias paralelas que enriqueciam o enredo. Tudo para a história caber em seus 103 minutos.
O roteiro de Serran corta também alguns personagens do livro, como o médico Christian Fischer, que estabelece uma relação de cumplicidade com Jacó Mula (ficou de fora até a trama supérflua em torno dos cactos que Fischer recolhe para remeter a um tio da Alemanha, o que foi um acerto de Barreto e Serran), o piedoso padre católico Matias Münsch, a criada e confidente de Jacobina, Ana Maria Hoffstätter, e o militar Santiago Dantas, responsável pelo ataque final. Desse modo, podemos reforçar que o filme foi mais inspirado por Videiras de Cristal que adaptado do romance.
Como se não bastasse, conseguiram inserir no filme um merchandising da fábrica de calçados Azaléia, que patrocinou o filme. É na cena em que uma personagem passa em um sapateiro. Jeitinho brasileiro é isso aí.
A direção do filme também foi muito criticada – ficou aquém de O Quatrilho, que até concorreu ao Oscar!
Ainda assim, A PAIXÃO DE JACOBINA é mais palatável ao público que Os Mucker. Cumpriu sua função, que era a de apresentar ao público brasileiro as paisagens de Sapiranga. Porque, na parte da História, não foi lá essas coisas... A História, aqui, ficou no “padrão Globo” (representada por sua filial, a RBS), já que até atores “globais” o filme teve. Ah, mas se o próprio Luiz Antônio de Assis Brasil confessou, no posfácio de Videiras de Cristal, que não teve o compromisso de seguir os fatos reais em sua reconstituição da história de Jacobina Maurer, por que não também Barreto e Serran? Assim, todos estão redimidos.
Ah: até o momento em que escrevo, A PAIXÃO DE JACOBINA está disponível, completo, no YouTube, para quem quiser conferir (assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=zLel0siiLdY). Mas, sendo filme mais recente, é fácil encontrá-lo também em DVD.

Esta postagem é uma versão revisada e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Os livros ainda são a melhor fonte para se conhecer a História: “trapaceiam” menos que o cinema. Portanto: visitem a Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges. Em caso de dúvidas se o livro que procura está disponível ou não, peça auxílio às bibliotecárias. Doações também são bem-vindas.
Até mais!

sábado, 17 de dezembro de 2016

Seção Resenha de Livros: VIDEIRAS DE CRISTAL

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje, volto a falar de livro. Conforme prometido há postagens atrás, voltamos a falar da Revolta dos Mucker (1868 – 1874), o movimento messiânico ocorrido em uma área de imigração alemã do Rio Grande do Sul. Voltamos a evocar a figura de Jacobina Maurer, usando para isso seu relato romanceado mais famoso.
Hoje, então, falo do romance VIDEIRAS DE CRISTAL, de Luiz Antônio de Assis Brasil.

ASPECTO FÍSICO
Bem. Há algum tempo atrás, falei a respeito do escritor gaúcho Luiz Antônio de Assis Brasil. Escritor, professor universitário, músico, com seus romances focando principalmente o passado do Rio Grande do Sul, Luiz Antônio de Assis Brasil é aclamado pela crítica, premiado, e teve livros seus adaptados para o cinema.
Já resenhei um livro dele, Cães da Província – para mais informações a respeito do escritor, acessem a postagem referente. Agora, falo a respeito de VIDEIRAS DE CRISTAL, que contribuiu não apenas para sua fama nacional, como também para lançar uma nova luz sobre o movimento mucker.
VIDEIRAS DE CRISTAL foi publicado pela primeira vez em 1990. A sua primeira edição foi pela editora Mercado Aberto (a capa acima é da 5ª edição, de 1997). Quem for ler, antes de tudo se preparem: o volume tem 544 páginas, sem contar capa.
Em 2002, VIDEIRAS DE CRISTAL ganhou uma adaptação para cinema: o diretor Fábio Barreto transpôs o romance para as telas sob o nome A Paixão de Jacobina. Assim, há uma edição do romance com capa especial referente ao filme, pela mesma editora Mercado Aberto. A edição mais recente do romance foi lançada em 2010, pela editora L&PM, atual editora da obra do autor, com 496 páginas (veja capas mais adiante).
O romance já foi bastante analisado em artigos de revistas literárias e trabalhos universitários – eu mesmo, na fase de pesquisa para esta postagem, encontrei uma porção desses trabalhos disponíveis na internet.
Do filme, falamos em outra ocasião. Vejamos primeiro o romance.

ASPECTO HISTÓRICO
Da Revolta dos Mucker – descobri recentemente que o correto para se referir ao movimento seria Revolta “dos Mucker”, e não “dos Muckers” pois o termo alemão é usado sem o “s” tanto no singular quanto no plural – já falei em duas ocasiões: quando resenhei o livro Os Fanáticos de Jacobina, de Fidélis Dalcin Barbosa, e quando resenhei o filme Os Mucker, de 1978, primeira produção artística focando o episódio que, durante muito tempo, foi um tabu para os descendentes de imigrantes alemães estabelecidos em Sapiranga, a “cidade das rosas”, que na época pertencia ao município de São Leopoldo.
Mas vamos recordar rapidamente: o movimento mucker – termo alemão que, em diversas obras, foi traduzido como “hipócrita”, “fanático”, “falso santo” – foi um movimento messiânico (conflito social que gira em torno dos seguidores de um profeta ou pessoa que afirma ser santa, tal como foi a Revolta de Canudos): uma leva de colonos alemães estabelecidos na região de Padre Eterno, na base do Morro do Ferrabraz, em Sapiranga, reuniu-se em torno da figura de Jacobina Maurer, uma mulher de aspecto frágil e, segundo alguns, com indícios de doença mental, que se dizia encarnação de Jesus Cristo, fazia previsões sobre o fim do mundo e confortava as pessoas injustiçadas. Em torno dela e de seu marido, João José Maurer, que já tinha fama na região como curandeiro, formou-se uma nova “religião”, baseada em preceitos que iam contra as regras do cristianismo e do protestantismo (vários imigrantes alemães eram luteranos, e essa corrente cristã era tolerada pelo Império Brasileiro, oficialmente católico, desde que seus adeptos não se reunissem em templos). Há quem enxergue no movimento à casa dos Maurer um ingrediente de protesto contra a intransigência das autoridades – muitos colonos sentiam-se abandonados pelo poder público da época.
Muita gente começou a se juntar à seita. Os que se opunham, os “ímpios”, começaram a espalhar boatos sobre o que realmente acontecia nas reuniões na casa dos Maurer e a açular as autoridades locais contra os chamados mucker. João e Jacobina chegaram a ser presos e conduzidos a São Leopoldo e a Porto Alegre algumas vezes. Os mucker já chegaram a enviar um ofício ao Imperador Pedro II pedindo proteção contra as perseguições das autoridades policiais.
O auge do conflito se deu quando, após muitas provocações por parte dos “ímpios”, os mucker, supostamente a mando de Jacobina, em 1872, começaram a estocar armas, matar e incendiar casas de colonos. Essa perturbação na paz da região foi o suficiente para as autoridades chamarem o Exército Imperial para caçar os mucker.
E foram necessárias três expedições para eliminar o foco principal da seita, ou seja, Jacobina Maurer – a ação do exército imperial foi dificultada pelo terreno conhecido do inimigo. Em uma das investidas, o comandante do exército imperial, coronel Genuíno Sampaio, veterano da Guerra do Paraguai e de outras guerras ocorridas no Brasil, consegue destruir o “templo” dos muckers, porém Jacobina e seguidores conseguiram escapar – e o Coronel Sampaio ainda morreu devido a complicações de um tiro recebido acidentalmente na perna. O cerco final foi no dia 2 de agosto, quando, sob o comando do capitão Francisco Santiago Dantas, o exército, graças à ajuda de um ex-membro da seita, elimina Jacobina e vários seguidores refugiados no mato do Ferrabraz. João Maurer foi encontrado morto tempos depois, supostamente suicidado, e seguidores remanescentes dos mucker foram perseguidos até a virada do século XIX para o XX.
Por muito tempo, os descendentes de personagens da história evitavam falar do assunto, mas, hoje, o movimento mucker rende alguns dividendos para Sapiranga, que hoje promove roteiros turísticos nos locais da tragédia. Por algum tempo, a cruz de madeira que marcava o suposto local onde Jacobina foi morta, erguida no início do século XX, ficou abandonada e até caiu, roída por cupins e bicada por pica-paus, mas uma nova foi erguida, e integra, junto com o monumento em homenagem ao Coronel Sampaio, o roteiro turístico chamado Caminhos de Jacobina.
Bem, é o básico para refrescar a memória dos leitores, porque, fora os artifícios literários usados por Assis Brasil, a história de VIDEIRAS DE CRISTAL é praticamente essa: toda a história do movimento mucker. Mas calma.

ASPECTO LITERÁRIO
VIDEIRAS DE CRISTAL – O ROMANCE DOS MUCKERS, seu subtítulo, compõe-se de diversas histórias correndo em paralelo à história principal. Como literato, construindo seu romance a partir de fato histórico, Luiz Antônio de Assis Brasil admite, parafraseando suas palavras no posfácio da obra, que não tinha muito compromisso com a realidade. Logo, sua versão do conflito dos mucker lança mão de recursos de realidade e de ficção. Desde já se sabe que os fatos históricos podem não ter ocorrido da maneira como foi narrada pelo autor, muito embora ele tenha feito a devida pesquisa para elaborar o romance.
Assis Brasil procurou falar do movimento mucker pelos dois lados: o dos seguidores de Jacobina, e o do lado dos “ímpios”, sem dar certezas de qual lado é o dos “mocinhos”, e de qual é o dos “bandidos”.
Há, claro, a certeza de que o movimento mucker foi uma resposta ao meio social desumano, de autoridades prepotentes e injustiças sociais, os mucker lutando pela única coisa que no momento lhes restava: a fé. Pelo menos, é assim na primeira metade do romance. Na segunda metade, os mucker é que se tornam os “bandidos” da história, quando passam eles mesmos a perseguirem os “ímpios”.
O título do romance faz referência a uma passagem bíblica que compara a alma humana a videiras de cristal: “fecunda nos verões luminosos mas quebradiça quando coberta pela geada do inverno”, uma referência à credulidade do ser humano, e de como tal credulidade às vezes o leva a cometer delitos contra pessoas. Parece que é isso.
A história de VIDEIRAS DE CRISTAL começa na Alemanha, em um vilarejo onde vive o abonado Hans Willibald, que tem por hobby colecionar cactos, mantidos em uma estufa – e isso, apesar de fazer tempo frio na região onde reside, e os cactos serem, antes de tudo, plantas tropicais. Hans passou parte da vida criando um sobrinho órfão, Christian Fischer, e lhe desejava um grande futuro como médico, tanto que custeou sua faculdade de medicina. Mas mal entendeu os motivos porque seu sobrinho resolveu se especializar em psicologia, uma área nova da ciência médica, e os de ele ter escolhido vir ao Brasil para montar seu consultório. Mas o Sr. Willibald autoriza a viagem, em troca de o sobrinho remeter, regularmente, amostras de cactos brasileiros (em princípio, as aparições de Willibald e sua estufa de cactos na trama serve apenas como uma “muleta” no romance, mas há um significado escondido na permanência desse núcleo).
Christian Fischer monta seu consultório em São Leopoldo. Em vários trechos do romance, Christian Fischer, personagem fictício, remete cartas – e os cactos – ao tio, descrevendo os costumes de pessoas da sociedade local e também os acontecimentos da perseguição aos mucker, entremeando alguns capítulos (aliás, não fica nítida a divisão dos capítulos do livro, que não são numerados, são divididos em cenas, em narração contínua como o roteiro de um filme – os grandes espaços em branco é que servem de limite entre as cenas do livro). Em certo momento, instado por um de seus pacientes, Jacó Fuchs, Christian acaba se juntando aos mucker, e lutando ao lado deles.
Jacó Fuchs, ou Jacó-Mula, é um dos personagens mais simpáticos do romance – e esse existiu mesmo! Tido como louco, ou simplesmente idiota, pela família e pelos amigos, e por isso não era levado a sério, Jacó-Mula encontra conforto e compreensão ao se juntar à seita de Jacobina. E segue a mulher cegamente, a ponto de abandonar a mulher e os filhos – decisão da qual se arrepende mais tarde. O homem cria uma cumplicidade com o médico Christian Fischer, a ponto de fazê-lo se juntar aos mucker – e também de arranjar alguns cactos para ele.
Do lado mucker, ainda temos, como personagens principais: Elizabeth Carolina Mentz, cunhada de Jacobina, que carrega em boa parte do livro um enorme sentimento de culpa – ela secretamente trai o marido, Henrique Mentz, com o inspetor de polícia João Lehn, caso que é descoberto pelo cunhado João Maurer, e a culpa acompanha a mulher até seu trágico fim; Ana Maria Hoffstätter, a criada de Jacobina, que acaba brigada com a própria família por conta de suas opções – e ela sofre bastante ao longo do romance, de estupro por bandoleiros até a perda de um amor secreto, morto por membros dos mucker por ter traído a seita; Rodolfo Sehn, suposto amante da Mutter Jacobina, e que se torna seu segundo “esposo” (um momento: segundo Fidélis Barbosa, o segundo esposo de Jacobina foi João Klein! Qual versão está certa?); o violento Robinson, o Ruivo; e o pastor Klein, que se junta à seita após ter perdido o cargo de pastor luterano para Wilhelm Boeber, o que o deixa rancoroso.
Por sua vez, Jacobina Maurer, a Mutter, é retratada no romance como convicta de ser mesmo uma representante do “Espírito Natural” na Terra – nesse ponto, as descrições alternam realidade e supostas visões divinas. O papel de Jacobina oscila entre o de mulher caridosa, que acolhe seus fieis como filhos, e o de mulher de fé, intransigente com as perseguições dos “ímpios”, alternando momentos de lucidez e surtos de sono letárgico. Ela chega a “santificar” sua filha de colo, Leidard, a “filha da Fé”.
Seu marido, João Maurer, anteriormente chamado de Wunderdoktor (Doutor Maravilhoso), anteriormente tinha fama como curandeiro, enquanto sua esposa Jacobina apenas o auxiliava na cura dos doentes e lendo a Bíblia aos fieis; porém, à medida que a importância de Jacobina cresce, o Wunderdoktor passa a perder importância, a ponto de praticamente “sumir” na trama – ele mesmo acaba reconhecendo sua inferioridade.
Do lado dos “ímpios”, temos: o pastor Boeber, que além da franca oposição aos mucker, passa boa parte do romance cuidando de uma maquete de madeira de uma catedral, cujo aspecto é tão simbólico quanto a trama dos cactos de Christian Fischer; o policial João Lehn, arrogante e violento, a paixão secreta de Elizabeth Carolina; o também violento delegado de polícia Schreiner, responsável pelas primeiras perseguições aos mucker; os ex-fiéis Carlos Brenner e Martinho Kassel, que acabam se tornando vítimas da fúria dos seguidores de Jacobina; os militares Genuíno Sampaio e San Tiago Dantas, os líderes da investida final contra os mucker – o primeiro, com um caráter mais violento e duvidoso, o segundo mais ponderado; e o padre Mathias Münsch, católico, cujas convicções e fé são abalados no decorrer da história, até ser vitimado pelas circunstâncias.
Há, no livro, dois capítulos que se passam no Rio de Janeiro, na corte imperial, quando uma comissão de mucker vai pedir proteção junto ao Imperador contra os abusos das autoridades policiais.
Enquanto correm essas histórias paralelas, correm linearmente os acontecimentos referentes aos mucker, conforme relatado anteriormente, então, nem é preciso nos darmos ao trabalho de recontar a história. Claro que o leitor lê VIDEIRAS DE CRISTAL já sabendo como a história termina, mas o que sustenta a narrativa é o estilo vigoroso de Assis Brasil, com as histórias em paralelo, as descrições ricas em detalhes, inclusive nas cenas de extrema violência, uma linguagem que evita ao máximo a extrema erudição que pode afastar leitores de obras desse feitio, e a capacidade de sensibilizar o leitor – está claro que, se os mucker se tornaram violentos, foi uma resposta à violência e à intolerância que eles próprios sofreram. E como não se sensibilizar com, por exemplo, o drama de Elizabeth Carolina, e com o triste fim do Padre Münsch, depois de acolher um deficiente mental que começa a carregar de um lado para outro após a morte dos familiares deste?
Estudiosos apontam, entretanto, que Assis Brasil assumiu o ponto de vista dos “vencedores” em sua narrativa, ou melhor, dos autores que retrataram, em seus estudos, os mucker como fanáticos e violentos, chefiados por um médico charlatão e por uma mulher louca e analfabeta, sem o elemento de denúncia social. Um dos primeiros autores a tratar do movimento mucker foi a padre Ambrósio Schupp, em livro redigido em alemão de cerca de 1900 – que serviu de base tanto para Assis Brasil como para Fidélis Barbosa. Atualmente, a visão de Schupp é contestada pelos historiadores, sobretudo os marxistas.
De todo modo, VIDEIRAS DE CRISTAL firma Luiz Antônio de Assis Brasil como um dos maiores escritores gaúchos, um mestre em retratar o passado gaúcho com ficção. VIDEIRAS DE CRISTAL mostra um autor em plena maturidade artística. Tudo bem que o romance tem mais de 500 páginas, mas garante horas de entretenimento ao leitor que desejar um pouco mais de cultura em sua cabeça. Ah: a edição da Mercado Aberto inclui ainda ilustrações – gravuras do século XIX mostrando os cenários da história, e um mapa da região conflagrada.
Em breve, falamos de seu produto derivado, o filme A Paixão de Jacobina.

Esta postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Este livro, assim como outros de Luiz Antônio de Assis Brasil, se encontra disponível no acervo da Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges. Em caso de dúvida, pergunte a uma das bibliotecárias, elas podem auxiliar.
Em breve, nova resenha de livros aos leitores, tanto de Vacaria quanto de outras localidades alcançadas pela internet.

Até mais!

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Seção Resenha de Livros: CÃES DA PROVÍNCIA

Olá.
Aqui é o Rafael de novo, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Por esses dias, bateu um súbito e louco interesse por um assunto histórico um tanto mórbido. Até o presente momento, já resenhei dois livros a respeito dos crimes da Rua do Arvoredo, ou caso da Linguiça Humana, ocorrida em Porto Alegre, entre 1863 e 1864.
Pues, hoje, vou resenhar mais um livro ligado à temática. Desta vez, é um romance. De um dos maiores escritores do Rio Grande do Sul do século XX – ou pelo menos, onde sua reputação ficou.
Hoje, então, falarei de CÃES DA PROVÍNCIA, de Luiz Antonio Assis Brasil.

O REDATOR
Antes de falar do livro, propriamente dito, é justo, como sempre faço, que antes eu fale do autor – no caso, Luiz Antonio de Assis Brasil, às vezes grafado sem o “de”.
A capa acima é da edição de 1997 – a sétima – de CÃES DA PROVÍNCIA, sua principal obra, publicada pela editora Mercado Aberto. É dessa edição que extraio a síntese biobibliográfica inicial a respeito do autor, com algumas inserções de informações extraídas da internet:
“Gaúcho de Porto Alegre, 1945. Embora de família fortemente ligada à formação do Estado, passou a infância e a adolescência em Estrela, zona de colonização germânica. De volta a Porto Alegre, estudou com os padres jesuítas e seguiu Direito [na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS], formando-se em 1970. Durante os estudos e mesmo depois, atuou na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre [OSPA] como violoncelista. A música, entretanto, foi substituída pela literatura, e a prática da advocacia pelo magistério superior. Doutor em Letras, (...) professor adjunto na PUC do Rio Grande do Sul onde, no Curso de Pós-graduação em Letras, coordena uma oficina de criação literária que já publicou várias antologias de contos [e revelou diversos escritores que ficariam célebres, como Letícia Wierzchowski, Cíntia Moscovich, Daniel Pellizzari, Monique Revillion e Daniel Galera].
Atuou na administração cultural, exercendo sucessivamente os cargos de diretor do Centro Municipal de Cultura de Porto Alegre e diretor do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul – em sua gestão deu início à publicação da série Autores Gaúchos, de repercussão nacional –, e foi, por último, subsecretário de Cultura de seu Estado. No inverno 84/85 foi bolsista do Goethe-Institut na República Federal da Alemanha. Por solicitação do Ministro Furtado fez parte, com Affonso Romano de Sant’Anna, da comissão especial que ofereceu sugestões para uma política federal do livro. Em 89/90 foi Catedrático Convidado de Literatura Brasileira na Universidade dos Açores, Portugal. Presidente da Associação gaúcha de Escritores no Biênio 88/90. Membro dos Conselhos Editoriais das editoras da PUC/RS e da Universidade de Caxias do Sul, bem como do Conselho Estadual de Cultura.
Obras publicadas: Um quarto de légua em quadro (1976) [...]; A prole do corvo (1978) [...]; Bacia das Almas (1981) [...]; Manhã transfigurada (1982) [...]; As virtudes da casa (1985) [...]; O homem amoroso (1986); Cães da Província (1987) [...]; Videiras de cristal (1990) [...]; [A trilogia Um Castelo no Pampa, composta por:] Perversas Famílias (1992) [...]; Pedra da Memória (1993) [...]; [e] Os senhores do século (1994) [...]; Anais da Província-Boi (1997); Concerto Campestre (1997). Em 1988 publica no jornal Diário do Sul o folhetim Breviário das Terras do Brasil [compilado em livro em 1997, que também foi o ano em que Luiz Antonio de Assis Brasil foi escolhido patrono da 43ª Feira do Livro de Porto Alegre].
Elogiado por A. Bosi, em sua História Concisa da literatura brasileira, foi incluído pelo brasilianista Malcolm Silverman na obra A Moderna sátira brasileira. Faz parte do livro A posse da terra, de Cremilda Medina (Ed. Casa da Moeda, Portugal), e é objeto de estudos e citações em obras de Antonio Hohfeldt, Regina Zilbermann, Flávio Loureiro Chaves, Volnyr Santos e outros. [...]
Prêmios recebidos, sem inscrição prévia: prêmio Ilha de Laytano (1977) por Um Quarto de Légua em Quadro; Prêmio Érico Veríssimo (1987), concedido pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre pelo conjunto de sua obra, e o Prêmio Literário Nacional, do Instituto Nacional do Livro (1988), por Cães da Província.(in: Cães da Província, 7ª edição. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1997, p. 3-4. As inserções entre colchetes saíram do verbete sobre o autor na Wikipedia).
Para completar as informações a respeito de Luiz Antonio de Assis Brasil, depois de 1997: em 1998, ele é palestrante convidado na Brown University, em Providence, EUA; em 2000, ele participa do programa Distinguished Brazilian Writer in Residence, na Berkeley University, Califórnia, EUA. E, entre 2011 e 2014, atuou como Secretário da Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, durante a gestão do governador Tarso Genro. Ele continua atuando como professor e, periodicamente, escreve para jornais, como Zero Hora.
Obras publicadas nos anos 2000: O Pintor de Retratos (2001); A margem imóvel do rio (2003); Música perdida (2006); Ensaios íntimos e imperfeitos (2008); e Figura na Sombra (2012). Seu livro mais recente é O Inverno e Depois, lançado em setembro de 2016, pela L&PM.
Prêmios recebidos nos anos 2000: prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional (2001), por O Pintor de retratos; menção honrosa do Prêmio Jabuti (2003) e prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira (2004), por A margem imóvel do rio.
A obra do autor, atualmente, está sendo editada pela editora L&PM, nas versões normal e pocket (mais adiante, veja a capa da edição de CÃES DA PROVÍNCIA pela L&PM). E também ganhou edições no exterior, na Europa e América Latina. E sua obra também é constantemente analisada em teses acadêmicas – já saíram até livros de análise de livros específicos do autor.
Ah: a obra de Luiz Antonio de Assis Brasil também já ganhou adaptação para o cinema! Foram quatro filmes até o momento em que escrevo, adaptando livros do autor: o primeiro foi Videiras de cristal, adaptado em 2002, pelo diretor Fábio Barreto, sob o nome A Paixão de Jacobina; em 2004, Concerto Campestre foi adaptado para um filme homônimo, por Henrique de Freitas Lima; em 2005, Um quarto de légua em quadro é adaptado pelo diretor Paulo Nascimento, sob o nome Diário de um Novo Mundo; em 2008, Manhã Transfigurada ganha um filme homônimo, dirigido por Sérgio de Assis Brasil; e Ensaios Íntimos e Imperfeitos é adaptado para uma série de mini-documentários, com direção de Douglas Machado, em 2016 – todos com atuação do próprio Assis Brasil. Há notícias de que O Pintor de Retratos também está prestes a ser adaptado para o cinema.
Luiz Antonio de Assis Brasil é tido como um importante escritor gaúcho, e, como tal, seus livros são mais “cabeça”, como todo bom literato gaúcho, ou, pelo menos, levando em conta as atuais tendências da literatura comercial, cujos maiores sucessos são, basicamente, livros de ficção fantástica. Por isso, tanto a linguagem como os temas abordados são mais voltados a leitores mais “instruídos”, e seus livros atraem mais quem já ouvira falar de sua obra anteriormente. E o tema mais recorrente da obra do autor é o passado do Rio Grande do Sul, principalmente o século XIX. Um Quarto de Légua em Quadro, por exemplo, se passa na época da colonização açoriana do Rio Grande do Sul, no século XVIII; A Prole do Corvo recupera episódios da Guerra dos Farrapos (1835 – 1845); As Virtudes da Casa, segundo o estudioso Valdocir Esquinsani, que até mesmo publicou em livro a sua tese (As Metamorfoses de um Mito, Passo Fundo, Editora Universitária, 2000), recria, no Rio Grande do Sul do século XIX, o mito grego do herói trágico Agamenon, imortalizado em peça teatral de Ésquilo; Videiras de Cristal recupera o episódio da Revolta dos Muckers, uma seita religiosa formada por colonos alemães na região de São Leopoldo, RS; Concerto Campestre se passa no contexto da atividade agropecuária do século XIX (e, assim como O Homem Amoroso, carrega um acento autobiográfico, tendo como tema condutor a música); e CÃES DA PROVÍNCIA trata de acontecimentos da cidade de Porto Alegre no século XIX.
Saibam mais sobre o autor em seu site pessoal: www.laab.com.br.

O HOMENAGEADO
Bão. CÃES DA PROVÍNCIA lança mão de dois episódios principais ocorridos na década de 1860: os crimes da Rua do Arvoredo, quando o ex-policial e açougueiro José Ramos se torna suspeito de fabricar linguiças com carne humana; e o julgamento do pedido de interdição dos bens do escritor José Joaquim de Campos Leão, também conhecido como Qorpo-Santo. Ambos personagens reais.
Antes de prosseguir, devo falar um pouco a respeito de Qorpo-Santo, o objeto do romance citado. Escritor de peças de teatro, e considerado por vários críticos teatrais o precursor do teatro do absurdo no Brasil – e, possivelmente, no mundo – José Joaquim de Campos Leão nasceu em Triunfo, RS, em 1829, e faleceu em Porto Alegre, em 1883, vitimado por uma tuberculose. Ele não foi reconhecido em vida – suas ousadas peças teatrais só foram redescobertas e montadas nos anos 1960.
Na juventude, teve o pai assassinado durante a Guerra dos Farrapos, em 1839; mudou-se para Porto Alegre para estudar gramática. Inicialmente, trabalha no comércio, e, a partir de 1850, habilita-se para o Magistério Público, fazendo carreira também como professor. Qorpo-Santo funda um grupo dramático em 1851, escreve para jornais da Província do Rio Grande do Sul a partir de 1852, e, em 1855, deixa o magistério e leciona em vários colégios. Em vida, Qorpo-Santo teve várias profissões, tanto em Porto Alegre como em Alegrete, para onde muda-se em 1857 com a família (no ano anterior, ele casou-se com Inácia de Campos Leão). Em Alegrete, Qorpo-Santo atua como delegado de polícia e vereador.
Em 1861, a família volta para Porto Alegre. No ano seguinte, Qorpo-Santo, já adotando o pseudônimo célebre (a grafia deve-se a uma proposta pessoal de reforma ortográfica – muitos leem “Corpo-Santo”, mas eu, pessoalmente, imagino que se leia, aproveitando o fonema da letra Q, “Kuorpo-Santo”), começa a escrever suas peças teatrais. Em 1862, ainda, se faz notar sinais dos transtornos mentais que levam Dona Inácia a pedir a interdição dos bens do marido. Qorpo-Santo é diagnosticado com monomania, com “superexcitação da atividade cerebral”, por sua compulsão de “tudo escrever” – apenas em maio de 1866, ele escrevera oito peças teatrais, das dezessete que escreveu ao todo! Porém, os psiquiatras da Porto Alegre daquele tempo não chegam a um acordo sobre o estado mental do paciente, que alterna momentos de lucidez com alucinações. Ainda assim, é decidida pela interdição dos bens. E Qorpo-Santo é enviado para novos exames psiquiátricos no Rio de Janeiro, que atestam que ele goza de boa saúde mental.
Mesmo assim, em 1868, sob novo julgamento, a interdição é mantida, e seus bens são administrados por terceiros – Dona Inácia também é impedida de administrar esses bens. Mesmo com o parecer favorável, o estigma está criado, e Qorpo-Santo se vê cada vez mais isolado, sendo obrigado a deixar a atividade jornalística. Ainda assim, em 1877, Qorpo-Santo monta uma gráfica, e por conta própria edita sua obra, reunida nos nove volumes da coletânea conhecida como Ensiqlopedia, ou seis mezes de huma enfermidade. É na Ensiqlopedia que, além de crônicas, poemas, confissões, receitas culinárias e outros textos, Qorpo-Santo edita suas ousadas peças teatrais. A partir dos anos 1960, inicia-se o resgate das obras de Qorpo-Santo – até hoje, só foram encontrados seis dos nove volumes da Ensiqlopedia. De vez em quando, é possível encontrar compilações de suas peças teatrais nas livrarias e bibliotecas.
Qorpo-Santo é tido como precursor do teatro do absurdo, com temas que iam contra as tendências do teatro da época, guiado pelos ideais do Romantismo. Dentre as dezessete peças até hoje identificadas de Qorpo-Santo, incluem-se: As Relações Naturais; Matheus e Matheusa; Hoje sou Um, Amanhã Sou Outro; Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte; Lanterna de Fogo; A Separação dos Dois Esposos. Nessas peças, Qorpo-Santo lança mão de ousadias para sua época, como colocar prostitutas como personagens; tratar do homossexualismo de forma natural; se incluir como personagem; e até mesmo indicar ousadias cênicas difíceis de reproduzir com as limitações cênicas do século XIX, como personagens que simulam perder partes do corpo, os atores contracenarem com animais vivos no palco ou o fim da peça com jorros e explosões de luz. Mas, o mais importante é que os personagens de Qorpo-Santo são projeções dele mesmo, principalmente em seu inconformismo com as regras sociais de seu tempo – inconformismo que se tornou mais forte depois que foi submetido aos exames, internações e à interjeição de seus bens. Há de lembrar que os tratamentos psiquiátricos do século XIX, pelos padrões de hoje, lançavam mão de técnicas cruéis e questionáveis, como isolamento em hospícios, aprisionamento com correntes e camisas-de-força, tratamentos com choques elétricos e até lobotomia.
(Fonte: sites Wikipedia e Enciclopédia Itaú Cultural [enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8151/qorpo-santo])

QORPO-SANTO NO ROMANCE
É como um sujeito inconformado com as regras sociais que Qorpo-Santo é retratado em CÃES DA PROVÍNCIA. No livro, lançado em 1987 e vencedor do Prêmio Literário Nacional do INL em 1988, Luiz Antonio de Assis Brasil reconstitui os aspectos da cidade de Porto Alegre no século XIX, tanto na parte física – a descrição da cidade – como social. A sociedade porto-alegrense do século XIX se encontrava muito presa às convenções sociais, às regras de conduta impostas pela Igreja, pela Política e pelos costumes, tanto as classes ricas como as pobres. Se portam como cães fiéis e obedientes a essas convenções (daí o nome do romance). Por seu provincianismo, qualquer fato que acabe saindo do comum agita e revolta a população da Capital da Província, mobiliza as autoridades, provoca interdições e depredações.
Por isso, as notícias da prisão de José Ramos, o linguiceiro, e da interdição dos bens de Qorpo-Santo agitam a população da capital. Além de não conseguirem aceitar o fato de terem, involuntariamente, consumido carne humana, não conseguem suportar o fato de um louco dizer o que pensa de todos esses acontecimentos, e expor a sociedade de uma forma que não consegue suportar. Ou, pelo menos, de alguém que acreditam ser louco: Qorpo-Santo é retratado como um homem de superioridade intelectual, o mais inteligente daquela cidade, mas que, como a grande maioria dos gênios, não foi reconhecido por seus contemporâneos. Loucos seriam, na verdade, os que queriam interditar o pobre gênio. Mas, mais que isso, tais processos acabam escancarando histórias de crimes, adultérios, incestos e outras crueldades, às quais Qorpo-Santo denuncia, a plenos pulmões a quem assiste seu julgamento, ou através de suas peças, que ele começa a escrever.
Para escrever CÃES DA PROVÍNCIA, Luiz Antonio de Assis Brasil também contou com a consultoria do historiador Décio Freitas, que conseguira o material referente ao processo contra José Ramos e a mulher, Catarina Palse. Foi só em 1996 que Freitas publicaria seu livro O Maior Crime da Terra – e só em 2004 que o escritor David Coimbra consultaria Freitas para escrever Canibais. Então, Assis Brasil chegou antes.
Bão. O romance conta, de forma não-linear, e intercalando personagens e situações, os acontecimentos ocorridos na Porto Alegre da década de 1860. Quanto à parte de Qorpo-Santo, os acontecimentos concentram-se desde o início do processo de interdição até a sua partida para o Rio de Janeiro.
Pelo menos um personagem ficcional tem grande importância na narrativa: o comerciante Eusébio Cavalcante, amigo de Qorpo-Santo, de início muito preocupado com as convenções sociais e seus negócios, até receber a notícia de que sua esposa, a geniosa Lucrécia, fugira com o amante. A ausência da esposa causa uma grande angústia a Eusébio – angústia que só aumenta quando, instado por Qorpo-Santo e levado a um necrotério, ele acaba reconhecendo um corpo esquartejado de mulher como sendo o de Lucrécia. Corpo esse que fora encontrado entre os restos das vítimas de José Ramos, na casa da Rua do Arvoredo. Nos dias que seguem, Eusébio se entrega ao luto, que até dá uma melhorada depois que faz uma viagem e se envolve com uma alemã, um caso rápido e fugaz; mas tem cada vez mais certeza de que Lucrécia está viva, vivendo com o amante, e reconhecera o corpo, e lhe dera enterro em nome da mulher, como uma forma de desviar a atenção da população.
Até que Lucrécia, de repente, volta para casa, arrependida do adultério, infeliz com a vida que levava com a família do amante... porém, não pode se mostrar ao público, e, trancada em casa, sucumbe aos poucos ante à loucura de Eusébio, e sua própria. O retorno da esposa só deixa o comerciante mais angustiado, e a libertação só se dá depois que consegue, afinal, se livrar da esposa, dando-lhes uma morte piedosa.
Não sei dizer se os personagens do Dr. Joaquim Pedro e do Dr. Landell são baseados em figuras reais. Esses são os médicos encarregados de discutir o caso do paciente Qorpo-Santo, para depois oferecerem o parecer ao juiz, determinando se ele deve ter os bens interditados ou não; e aproveitam qualquer ocasião para discutir o caso, desde uma caçada nos campos até uma aula de anatomia na Santa Casa de Porto Alegre – o principal hospital daquele tempo. Enquanto o Dr. Landell é favorável ao diagnóstico de que Qorpo-Santo é louco, o Dr. Joaquim Pedro é favorável ao diagnóstico de que Qorpo-Santo é são – e se convence disso depois de ler as peças escritas pelo paciente (há, inclusive, pequenas e breves descrições das peças de Qorpo-Santo ao longo do livro).
O delegado de polícia Dario Calado, sim, é real. Acompanhamos alguns de seus pensamentos diante dos casos que se apresentam diante de si. E também de seus interesses amorosos: ele chega a desejar a criminosa Catarina Palse – que tem uma participação muito breve no romance, assim como a de José Ramos – e, depois, deseja até mesmo Inácia, a esposa de Qorpo-Santo. Por pouco, em um segundo encontro, Calado não consuma seu desejo pela mulher do louco.
Inácia de Campos Leão vive, ao longo do romance, um sentimento conflitante em relação ao marido. Ambos se amam, mas Inácia não consegue suportar o fato de Qorpo-Santo estar entregue à sua atividade insana de escrever, e deixar a família de lado, vivendo na rua da amargura. Por isso, opta pela interdição dos bens, com a certeza de que poderá administrá-los. Como prova de sentimentos conflitantes, ela chega até a dormir com o marido, e, pouco depois, brigar com ele, que foge, nu, pelas ruas, e depois é preso.
Apesar da lucidez de Qorpo-Santo em denunciar as mazelas da sociedade em que vive, o personagem também alterna momentos de pura alucinação e ações ilógicas: cria um sagui em seu quarto, muda o nome de seu criado e confidente, Juvêncio, para Inesperto, tranca a porta da frente de seu sobrado com tábuas – o acesso para sua casa, agora, se dá através de uma escada portátil, pela janela de seu quarto – e recebe “visitas” do imperador francês Napoleão III (sobrinho de Napoleão Bonaparte), que exige que Qorpo-Santo reescreva seu destino, para que não termine como o tio. Em alguns momentos, Qorpo-Santo chega a apresentar o Imperador, que só ele vê, a pessoas em seu redor. Nos diálogos com o Imperador imaginário, Qorpo-Santo (ou melhor, Assis Brasil) aproveita para discutir reformas sociais lúcidas, e válidas para qualquer tempo. De vez em quando, a imaginação de Qorpo-Santo confunde Porto Alegre com Paris. Aí, se pode questionar: sim, Qorpo-Santo está louco. Essas não são atitudes de gente que denuncia mazelas de forma tão lúcida. Ou seriam uma forma racional de protesto? Os leitores podem decidir.
Inesperto também se mostra um personagem importante no livro, o ponto de equilíbrio de Qorpo-Santo entre a lucidez e suas alucinações, apesar de também agir como um “cão da província” – apenas cumpre ordens, sem maiores questionamentos, por mais insanas que sejam, e não tem, exatamente, uma opinião formada a respeito do que presencia. Inesperto é o contato entre seu patrão e a realidade, uma espécie de Sancho Pança para um Dom Quixote porto-alegrense.
Enfim. CÃES DA PROVÍNCIA pode ser encontrado nas livrarias e bibliotecas. É um romance “cabeça”, que pode exigir um pouco do leitor, mas livros, em tese, servem justamente para isso: colocar cultura na cabeça dos leitores. Acrescentar palavras novas ao vocabulário, acrescentar experiências novas à vida. E procurar entender não apenas por que Luiz Antonio de Assis Brasil é um de nossos escritores mais importantes; e porque CÃES DA PROVÍNCIA é um livro premiado.
Quem sabe, também, não se colocar no lugar do atormentado Qorpo-Santo.

Esta resenha é uma versão revisada e com alterações do texto publicado no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Este título, como tantos outros, está disponível na Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges. Procurem e surpreendam-se.
Em breve, nova resenha de livro.

Até mais!