Um Castelo no Pampa - Vol. 1 "Perversas Famílias"
Do amor de um homem por uma mulher surge um sonho: construir um castelo no meio do pampa gaúcho. Mas a concretização de tamanha empreitada caberia ao filho dele, Olímpio. Assim tem início Perversas famílias, o primeiro volume da série 'Um castelo no pampa'. Luiz Antonio de Assis Brasil, um dos maiores romancista brasileiros, conta a saga da família Borges da Fonseca e Menezes, que se confunde com a história do próprio Rio Grande do Sul. Narrada em um vaivém temporal, Perversas famílias revela aos poucos quem é quem. E como o título já diz, disseca as mentiras e a hipocrisia que rondam as relações entre pais, filhos e irmãos ao mesmo tempo em que põe por terra as contradições do projeto latifundiário-pecuarista, num turbilhão de emoções que tem continuidade nos outros livros da série, Pedra da memória e Os senhores do século.
Um Castelo no Pampa - Vol. 2 "Pedra da Memória"
“Pedra da memória”, segundo volume da série “Um castelo no pampa”, dá continuidade à saga da família Borges da Fonseca e Menezes. Se em Perversas famílias é apresentado o drama de Olímpio, da Condessa e de seus três filhos, aqui as histórias dos habitantes do castelo - contadas numa narrativa que ora avança, ora retrocede no tempo - começam a ser desvendadas, e a aura majestosa do castelo rui, assim como rui a pompa da aristocracia gaúcha.
Um Castelo no Pampa - Vol. 3 "Os Senhores do Século"
Neste último volume da série 'Um castelo no Pampa', o protagonista, misto de político e patriarca familiar, é atingido brutalmente pelos inúmeros conflitos que sempre evitou encarar, e procura salvação num projeto espantoso.
Conheça estes livros e muito mais sobre a obra deste grande escritor gaúcho: Luiz Antônio Assis Brasil, visitando a Biblioteca Municipal Theobaldo Paim Borges.
Sinopses: Livraria Saraiva
Foto: Arquivo pessoal
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segunda-feira, 4 de junho de 2018
terça-feira, 23 de janeiro de 2018
Clube de Leitura - Janeiro/2018
A Associação Amigos da Biblioteca Pública Municipal - ABT C O N V I D A você para mais um encontro do Clube de Leitura. Neste mês de Janeiro será o livro do escritor gaúcho Assis Brasil, com o livro CONCERTO CAMPESTRE.
Este é o 12º livro de Assis Brasil, que explora a tensão entre civilização e barbárie - refletida tanto no plano exterior, por meio do contraste entre a orquestra e a rústica paisagem campeira, quanto no interior, na personalidade de um homem que se deixa transportar pela música, mas é capaz de ir às últimas consequências para punir quem desobedece seu rígido código moral.
O Clube de Leitura, neste ano, está propondo uma "viagem literária" por todo o planeta. Estamos iniciando pelo Brasil, mais especificamente pelo Rio Grande do Sul, com esta obra. Venha participar deste tour literário. Traga sua sugestão de leitura para o próximo país a "visitar".
O CLUBE DE LEITURA se reúne sempre na última quarta-feira de cada mês (em Janeiro será dia 31), às 18 horas, na Biblioteca Pública Municipal (ao lado da Catedral).
quinta-feira, 16 de março de 2017
Seção Resenha de Cinema: CONCERTO CAMPESTRE
Olá.
Aqui
é o Rafael novamente, em mais uma colaboração seguida para o blog da Biblioteca
Pública. E hoje, com a Seção Resenha de Cinema – filmes baseados em livros.
Na
última postagem, tratei do belíssimo romance Concerto Campestre, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Um libreto de
ópera sul-riograndense, de leitura rápida e proveitosa.
Pois
hoje, vou tratar de seu produto derivado: CONCERTO CAMPESTRE – o filme. Tão
belo quanto o livro – até certo ponto.
ASPECTOS TÉCNICOS
Bem.
CONCERTO CAMPESTRE, o livro, foi publicado em 1997; no ano seguinte, o cineasta
Henrique de Freitas Lima, percebendo o potencial do romance para uma adaptação
cinematográfica, inicia o projeto para a dita adaptação. O projeto correu de
1998 a 2003, e CONCERTO CAMPESTRE, o filme, chega aos cinemas em 2005. Duração
de 100 minutos. Com direção de Henrique de Freitas Lima, com assistência de
Nestor Monastério. O roteiro da adaptação é de José Mandel Fernandez, Pedro
Zimmermann e Tabajara Ruas, com produção da Empresa Cinematográfica Pampeana.
CONCERTO
CAMPESTRE é a segunda adaptação de um romance de Luiz Antonio de Assis Brasil
para o cinema – a primeira foi A Paixão
de Jacobina, de 2002, criticada adaptação de Fábio Barreto do romance Videiras de Cristal (1990). Vamos
lembrar que Assis Brasil já foi vertido cinco vezes para o cinema: além de Videiras de Cristal e Concerto Campestre, tivemos as
adaptações de Um Quarto de Légua em
Quadro (1976), sob o nome Diário de
Um Novo Mundo (direção de Paulo Nascimento, 2005); Manhã Transfigurada (1982) rendeu um filme homônimo (dirigido por
Sérgio de Assis Brasil, 2008); e Ensaios
Íntimos e Imperfeitos (2008) é adaptado para uma série de mini
documentários dirigidos por Douglas Machado, em 2016, com atuação do próprio
Assis Brasil. Esses documentários podem ser assistidos no website do autor.
VOLTANDO AO FILME...
CONCERTO
CAMPESTRE tem, a seu favor: a boa reconstituição histórica (o filme se passa no
ano de 1860, no contexto da era das charqueadas no Rio Grande do Sul), a
estonteante cenografia e a enorme fidelidade ao romance. Freitas Lima e seus
cúmplices tomaram apenas algumas liberdades e fizeram algumas mudanças em
detalhes do enredo, mas a história do livro, em si, não apresenta grandes
mudanças – os fatos principais da história, do começo ao fim, foram mantidos.
Alguns acréscimos, de fatos e personagens novos, enriquecem o enredo.
Uma
das preocupações de Freitas Lima e equipe foi manter o principal motor da
trama, a música. As músicas de fundo se compõem de peças conhecidas e/ou pouco
conhecidas de música clássica, interpretadas pela orquestra regida por Jean
Potiguara; e, assim, o filme transmite bem a proposta de retratar a época em
que se passa. Outra preocupação da equipe do filme foi expressar em imagens o
tom bucólico do romance, passado quase todo em uma fazenda do interior do Rio
Grande do Sul (então chamado Província de São Pedro). Isso fica explícito logo
na cena de abertura, com a sequência mostrando o trabalho numa charqueada –
vaqueiros manejando o gado nos campos e nos cercados, carneando bois, e
escravos (na época, 1860, ainda imperava a escravidão nas atividades produtivas
brasileiras) tratando a carne, colocando-a para secar ao sol, livrando-se dos
restos dos bois, e o sangue das reses correndo através de canaletas até um poço
próximo.
A
charqueada pertence ao rude Major Eleutério de Fontes (Antonio Abujamra). Um
dia, ele escuta, durante um passeio pela propriedade, dois índios missioneiros
e nômades tocando música sob uma árvore; o Major gosta do que ouve, e contrata
os índios para sua fazenda, para tocar para ele. O Major reside com sua família
na fazenda charqueadora: entre os membros, a severa esposa, Dona Brígida (Araci
Esteves, que, entre outros trabalhos, participou de outros dois filmes ambientados
no Rio Grande do Sul, Anahy de las
Misiones [direção de Sérgio Silva, 1997] e Netto Perde Sua Alma [direção de Tabajara Ruas e Beto Souza, 2001]),
que acha o gosto do Major pela música uma perda de tempo, e a filha, Clara
Victoria (Samara Felippo), petulante e com arroubos de rebeldia.
A
notícia se espalha, e logo outros músicos chegam para trabalhar na estância, em
boa parte vagabundos sem ter para onde ir. O Major confidencia com o Vigário da
Vila de São Vicente (Miguel Ramos) a possibilidade de montar uma orquestra; e o
Vigário recomenda o aventureiro Miguel, vulgo Maestro (Leonardo Vieira) para
organizar os músicos em uma orquestra decente.
O
sedutor Maestro aceita a incumbência da organização da orquestra, mas logo vê
que as coisas não são tão simples como a princípio imaginava. O Major recomenda
ao Maestro “severidade e virtude”, traduzidos como “trabalho e disciplina”. O
estancieiro manda buscar, inclusive, instrumentos para a organização da
orquestra, batizada de Orquestra Santa Cecília, por sugestão do Vigário.
O
Maestro trabalha com afinco e alguma severidade para organizar o grupo de
músicos de talento mediano (entre os músicos está o ator e violinista Hique
Gomes, do espetáculo humorístico Tangos e
Tragédias, inclusive protagonizando uma cena cômica!). Enquanto isso, seus
passos são observados tanto pelo Major quanto pela mocinha Clara Victoria, que
se interessa pela figura do mulato. Mas, este, a princípio, vive às turras com
a moça – em uma cena, implica com Clara Victoria quando ela resolve arear
panelas, junto com as criadas, perto do galpão onde os músicos ensaiam.
O
Maestro, enquanto escreve pautas e dedilha seu bandolim nas horas de folga, e
enquanto ensaia com a orquestra durante horas, observa o dia-a-dia da
charqueada. Vê que, apesar de demonstrar um pendor para a modernidade com a sua
orquestra, o Major mantém códigos morais conservadores para com as pessoas que
o cercam: é severo com os escravos e familiares. Em uma cena, o Maestro usa
como exemplo de castigo por indisciplina, aos músicos, um escravo que foi morto
por empregados da fazenda durante uma tentativa de fuga do cativeiro. Em outra,
o Major pune, amarrando ao tronco e dando-lhes chibatadas, um escravo rebelde,
João Congo (Sirmar Antunes). Dona Brígida, por sua vez, vê na orquestra um
sinal de loucura do marido, enquanto se preocupa com um bom casamento para
Clara Victoria – tenta empurrar a filha para se casar com Silvestre Pimentel
(Alexandre Paternost, que esteve no elenco de A Paixão de Jacobina como João Maurer, o marido da protagonista), o
herdeiro de uma estância vizinha. Entretanto, a moça, embora obedeça a mãe,
demonstra sinais de rebeldia, com suas respostas petulantes e não
correspondendo à afeição do bonito, porém tedioso, Silvestre. Fica evidente,
inclusive, que o Major e Dona Brígida não se dão bem um com o outro – eles
partilham apenas dos códigos morais conservadores e algo tacanhos. Dona Brígida
acaba ganhando ares de vilania.
A
orquestra, já ensaiando na capela da fazenda, só começa a ir para a frente com
a entrada do erudito Antônio de Lima, o Rossini (Roberto Birindelli), que se
torna grande amigo e confidente do Maestro.
Mas
não sem algum conflito: o Maestro tem um desentendimento com o Major porque
resolve convocar o escravo João Congo para tocar os tambores, depois de
presenciá-lo, na senzala, batucando durante o velório ao modo africano do
escravo morto. A contragosto, o Major concorda em colocar o rebelde na
orquestra. E, dentro de breve, a Orquestra Santa Cecília consegue encontrar a
harmonia.
O
Major convoca pessoas dos arredores para assistir a primeira apresentação da
orquestra, que se torna um sucesso. E, logo, a Orquestra Santa Cecília sai em
turnê pela Província. O Major até constrói um palco ao ar livre em um terreno
da estância para futuras apresentações da Orquestra anta Cecília.
Enquanto
isso, começa a se desenvolver a relação amorosa entre Clara Victoria e o
Maestro. Aos poucos, o mulato se apaixona pela mocinha – o Maestro, a pedido da
moça, ensina-a a ler e escrever. E daí, desenvolve-se o romance. Clara Victoria
engravida do músico, e consegue esconder o fato o quanto pode, enquanto
continua obrigada a se encontrar com Silvestre Pimentel, que está, sim,
interessado na mocinha. Apenas Rossini, comparando a situação a uma ópera, sabe
do romance proibido. Mas, logo, o Vigário acaba descobrindo, mediante confissão
da mocinha, e tenta, nesse ínterim, adiantar o casamento entre Clara Victoria e
Silvestre Pimentel, o que desperta desconfiança por parte do Major.
Entretanto,
logo que os pais descobrem que a filha engravida, tudo se encaminha para a
tragédia: Dona Brígida e o Major acreditam que o responsável pela gravidez foi
Silvestre Pimentel, e o estancieiro tenta matar o rapaz a tiros, conseguindo
apenas, entretanto, aleijá-lo. Clara Victoria acaba expulsa de casa, levada a
viver em uma casa abandonada na beira de um arroio, dentro de uma mata, tendo
apenas o capataz, Salvador (Pedro Machado) e a criada Sinhá Gonçalves (Naiara
Harry) para se preocupar com seu destino. Na casa, Clara Victoria tem sua
filha, que é levada para ser amamentada por uma mulher da vila.
O
Major, que ainda proíbe que se fale da filha em casa, ainda despede a Orquestra
Santa Cecília. O Maestro sofre muito, mesmo consolado por Rossini, e ainda é
repreendido pelo Vigário. E o Major, sem sua orquestra, começa a enlouquecer,
sempre indo ao palco construído, ouvindo orquestras imaginárias. Dona Brígida
também começa a surtar com a loucura que toma conta de seu lar. Aí, a Orquestra
Santa Cecília resolve retornar para a estância – a ideia do maestro é
confrontar o Major e tentar convencê-lo a reconsiderar o castigo dado a Clara
Victoria. Aí, um fato fantástico ocorre para o desfecho da trama, enquanto
Guará (Lori Nelson), empregado de Silvestre Pimentel, se encaminha para a estância
para vingar o sofrimento do patrão...
Talvez
a parte mais fraca de todo o filme seja a sequência final – a cena da
tempestade que cai sobre a fazenda, e do pé-de-vento que cai sobre o poço de
sangue bovino, fazendo chover sangue sobre as pessoas que estão assistindo a
apresentação final da orquestra. A tempestade, produzida de maneira digital,
não ficou convincente, apesar dos esforços da equipe de efeitos especiais,
coordenada por Paulo Crespo e Hugo Werle.
Mas
o restante do filme vale a assistida. Houve esmero na reconstituição histórica.
O enredo acabou enriquecido com os detalhes acrescentados em relação ao livro –
por exemplo: o Maestro, no livro, não tem seu nome verdadeiro revelado: é só no
filme que ele se chama Miguel. E o personagem João Congo não existe no livro –
sua inclusão no roteiro foi uma boa aquisição, aliás, no livro, Assis Brasil
não inclui escravos entre os personagens centrais. O contexto pelo qual o
Maestro e Rossini se conhecem também é diferente entre o livro e o filme – o
Maestro encontra Rossini durante uma viagem para Porto Alegre, no livro,
enquanto que, no filme, Rossini se apresenta na estância, e aparece durante o
primeiro ensaio da orquestra na capela. Do personagem Vigário, foi retirada
dele sua característica de consultar constantemente o termômetro, mantendo seu
caráter conservador. E nem Guará existe no livro – ele, no filme, dá um fim
diferente do constante no livro a Silvestre Pimentel e ao Major... Oh: a tapera
do boqueirão, para onde Clara Victoria é levada, é apresentada no início do
livro como um local mal-assombrado, de onde escravos do Major vão colher uvas
muito apreciadas; tal característica, a das “uvas do fantasma”, é retirada do
roteiro do filme, e a tapera é apresentada bem depois. Ah: a turnê da Orquestra
Santa Cecília pela província, se bem me lembro, também não consta no livro.
Mas,
no mais, o filme é bem fiel ao livro. Mantém toda a estrutura de sua história,
sem tirar demais, sem acrescentar demais. E as interpretações dos personagens
são excelentes. O resultado ficou bem melhor que A Paixão de Jacobina, que pouco trouxe do romance original.
Ressalta bem o bucolismo proposto do Assis Brasil, e é excelente para exibição
em escolas, como retrato de uma época – seus 100 minutos passam voando. Algumas
peças de música clássica que fazem parte da trilha sonora são reconhecíveis,
principalmente para quem cresceu apreciando esse tipo de música através dos
desenhos animados.
Ainda
que o cinema nacional seja algo para se ver com reservas, CONCERTO CAMPESTRE
vale uma sessão. Com os típicos elementos de uma novela. E já que temos atores
globais no elenco, isso fica evidente.
Ah:
o filme completo já pode ser encontrado no YouTube, até o momento em que
escrevo (assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=X-dUBEMCS9k), embora seja fácil acha-lo em DVD nas locadoras. Não duvido que também
já esteja disponível nos sites de streaming na internet.
Este
texto é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente no
blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Assistam
ao filme, mas também não deixem de ler o livro! Este também está disponível na
Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges!
Em
breve, nova resenha. Tanto de livro como de filme.
Até
mais!
quarta-feira, 15 de março de 2017
Seção Resenha de Livros: CONCERTO CAMPESTRE
Olá.
Aqui
é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Faz tempo que não passo aos leitores outra resenha de livros, então, vamos dar
uma movimentada neste blog.
Vamos
falar, hoje, de livro. De romance. De romance de fundo histórico ambientado no
Rio Grande do Sul. Vamos trazer de novo aos holofotes o escritor Luiz Antonio
de Assis Brasil, um especialista no gênero.
Vamos
hoje falar de CONCERTO CAMPESTRE.
O LIVRO
CONCERTO
CAMPESTRE, hoje o livro mais lembrado de Assis Brasil – muito por conta da
adaptação do mesmo para cinema – foi publicado pela primeira vez em 1997, pela
editora L&PM, atual editora das obras do escritor. A capa acima é da
primeira edição, com ilustração do cartunista Caulos – e com essa ilustração
permanece nas edições posteriores.
O
romance, ao contrário dos dois outros que resenhei aqui no blog – Cães da Província e Videiras de Cristal – não se serve de fatos reais para a construção
ficcional, ou melhor, só um pouco. CONCERTO CAMPESTRE se utiliza de um contexto
histórico conhecido pela historiografia e de uma história lendária para a
condução do enredo, além de carregar um pouco da experiência de vida do autor –
o motor do enredo é a música clássica, e Luiz Antonio de Assis Brasil já havia
sido músico, tendo tocado na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) como
violoncelista, nos anos 1970, antes de abraçar a literatura.
Outro
motor do enredo ele relata em uma nota no posfácio da obra:
“A história da moça
abandonada no boqueirão me foi contada por uma amiga, a escritora Hilda Simões
Lopes, e aconteceu no século passado [século XIX], nos campos de sua família.
É, portanto, uma ‘história real’, o que lhe dá certa nota picante; mas aqui,
como em todas as realidades, a
fantasia ocupa o lugar do trivial e do desconhecido – e isso é apenas uma
homenagem à Literatura. (L.A. de A.B.)” (in: Concerto Campestre – L&PM, 1997, p. 175).
CONCERTO
CAMPESTRE ganhou ainda mais notoriedade após a adaptação para cinema, dirigida
por Henrique de Freitas Lima em 2004. Deste falamos depois.
A
narrativa de CONCERTO CAMPESTRE é conduzida fazendo uso do insólito, do
inesperado, do suspense e do bucolismo (forma de poesia que valoriza a vida
pastoril), conduzido suavemente como uma valsa ecoando na solidão do pampa, num
enredo que envolve preconceitos, paixões, violência e termina num final
surpreendente. Além disso, é um livro que se lê em uma só sentada: a primeira
edição tem 176 páginas, sem contar capa, e só sete capítulos. Só o que pode assustar
o leitor são os parágrafos contínuos, intermináveis, e quase sem travessões para
indicar os diálogos. Fora isso, o livro de narrativa não-linear, com idas e
vindas constantes de um ponto do tempo a outro, ritmo de uma ópera e revelações
surpreendentes ao fim de cada capítulo, é agradável.
O ENREDO DA ÓPERA
A
história de CONCERTO CAMPESTRE se passa na segunda metade do século XIX, no
interior do Rio Grande do Sul, na vila de São Vicente, à beira do Rio Santa
Maria. Ali, está a estância charqueadora (fazenda de criação de gado e produção
de carne-seca para comércio) pertencente ao conservador e autoritário Major
Antônio Eleutério Fontes, homem de passado rude que atuara na Guerra dos
Farrapos. Ali, ele vive com a família, composta pela esposa, a ainda mais
conservadora D. Brígida, três filhos homens, dois netos e uma filha temporã,
Clara Vitória.
Apesar
do conservadorismo e dos códigos morais hoje tacanhos, que ele procura
preservar a todo custo, o Major Eleutério cultiva uma excentricidade, que
podemos tomar como um sinal de modernidade, naquele local ermo e praticamente
longe de outros sinais de civilização: uma orquestra particular, a Lira Santa
Cecília.
Começou
quando o Major encontrou dois índios missioneiros e andarilhos tocando seus
instrumentos, e, após uma desconfiança inicial, praticamente gostou do que viu
e ouviu, contratando os dois índios para trabalhar na estância, e, claro, tocar
de vez em quando para ele. Naquela época, música, de acordo com a moral dos
estancieiros, era coisa malvista, coisa de gente de má vida – bêbados e
prostitutas – e aceitável apenas dentro das igrejas, por isso D. Brígida,
principalmente, símbolo da mentalidade arcaica que se contrapõe ao sinal de
modernidade do Major, desaprova a atitude inicial do marido, e o que vem
depois...
A
notícia de que o Major estava admitindo músicos em sua estância se espalha, e
logo outros músicos procuram trabalho na estância. A coisa, no entanto, foge um
pouco do controle, pois a maioria desses músicos era de andarilhos e vagabundos
– e os índios foram embora, ou pela natureza nômade ou por causa do preconceito
dos outros músicos – e então, por sugestão do Vigário da Paróquia de São
Vicente – um padre dividido entre o conservadorismo e a modernidade, já que,
apesar de se opor às relações amorosas “modernas”, costuma consultar um
termômetro para avaliar o tempo – o Major resolve organizar os músicos em uma
orquestra.
Para
colocar ordem nos músicos da fazenda, o Vigário recomenda ao Major o musico
conhecido apenas como Maestro. O mulato, nascido em Minas Gerais, teve uma vida
de verdadeiras aventuras, entre empregos como músico em igrejas e no exército,
e convivendo com gente “de má fama”, sempre acompanhado de seu bandolim, que
ele dedilha nas horas de folga. O Maestro, pago para se dedicar exclusivamente
à orquestra, e que ganhou inclusive seu próprio quarto, coloca ordem na casa:
organiza os músicos em uma orquestra respeitável, com instrumentos de cordas e
metais (que o próprio Major importa), inclusive trazendo músicos de Porto
Alegre. Entre eles, o rabequista veterano conhecido como Rossini, por conta de
seu gosto por ópera, talentoso e erudito, e que se torna o grande amigo e
confidente do Maestro.
Mas
o Maestro não é necessariamente um modelo de bom comportamento: apesar das
recomendações do vigário e do Major, em uma noite, o mulato seduz uma
cozinheira da estância. O Maestro, após ser denunciado, leva uma reprimenda do
Major, que, por via das dúvidas, despede a cozinheira.
A
Lira Santa Cecília logo se organiza, tocando melodias suaves e agradáveis em
festas, velórios ou apenas para o deleite do Major, chamando a atenção
inclusive dos amigos dele. Um deles faz questão que a Lira toque em seu
velório, como um último desejo. Entre um ensaio e outro, o Maestro acaba
chamando a atenção da adolescente Clara Vitória, então na flor da virgindade e
da pureza, e em idade de casar – tanto que, por imposição da mãe, passa boa
parte do tempo confeccionando seu enxoval, embora seu real desejo seja o de
aprender a ler e escrever.
A
moça se apaixona pelo Maestro, mas inicialmente o músico a rechaça; mas, pouco
a pouco, o Maestro começa a corresponder à afeição da garota. E ambos começam a
viver uma relação amorosa proibida e secreta. O Maestro chega a dedicar a Clara
Vitória uma composição. E a garota, entre um encontro furtivo e outro no quarto
do Maestro, acaba engravidando do mulato.
A
gravidez ficou escondida o quanto foi possível. Enquanto isso, D. Brígida, que
acha a organização da orquestra uma perda de tempo e preocupada com a posição
social da família, tenta arranjar o casamento de Clara Vitória com Silvestre
Pimentel, sobrinho e herdeiro do Barão de Três Rios, dono de uma estância
vizinha. Vive arranjando encontros entre os dois, sem desconfiar que a filha
ama outro, claro. Enquanto isso, Silvestre Pimentel vai adiando a data do
casamento – nesse meio tempo, seu tio falece.
Mas
não demora para que D. Brígida descubra a gravidez da filha. O primeiro a saber
do assunto, mediante confissão, foi o Vigário. Felizmente, quando a gravidez de
Clara Vitória vem à tona, a família imagina que o responsável foi Silvestre
Pimentel, já que, em uma ocasião, os dois haviam saído sozinhos ao pomar, mas
sob os olhares de uma criada. Mas, infelizmente, os inocentes acabam pagando o
pato: o Major tenta matar Silvestre Pimentel, mas fracassa. Já quanto a Clara
Vitória, leva bofetadas da mãe e o pai acaba a renegando, condenando-a a viver
em uma casa abandonada dentro do mato. Essa casa era tida como mal-assombrada,
e no local então só entravam alguns escravos para colher cachos de uvas de uma
parreira próxima. O acesso à floresta é cortado e vigiado. Em outro acesso de
loucura, o Major despede a Lira Santa Cecília, e o Maestro, Rossini e os outros
músicos vão para Porto Alegre.
Com
o passar do tempo, todos passam por uma degradação moral. O Major vai perdendo
a razão, e sua estância, agora administrada pelos filhos mais velhos, passa a
ser evitada por todos, inclusive pelo Vigário, depois do que o Major fez a
Clara Vitória; a filha, por sua vez, começa a se acostumar com a solidão do
lugar ermo, cujo contato com o mundo passa a ser através do capataz da fazenda,
que lhe traz comida dia sim dia não, e da parteira – Clara Vitória tem sua
filha ali na tapera, e a menina é levada para ser amamentada por uma ama da
estância; e o Maestro, por sua vez, vai padecendo de saudades de sua amada, e
leva uma vida indisciplinada em seu novo emprego. Está decidido a voltar para a
estância e resgatar Clara Vitória.
Afinal,
depois de algum tempo, ele consegue realizar seu intento: levando a Lira Santa
Cecília, o Maestro retorna, e é recebido com alegria pelo Major, que solicita
uma apresentação. Porém, como nenhum dos amigos do Major quer comparecer ao
concerto, o homem obriga a criadagem a assistir a apresentação. E os
acontecimentos que se seguem são os mais insólitos, envolvendo uma morte e uma
inesperada chuva de sangue, conduzindo ao final de uma ópera... com final
trágico porém allegro.
Luiz
Antonio de Assis Brasil conduz uma ópera sul-riograndense, com influência das
poesias bucólicas do poeta romano Virgílio e traduzindo em palavras os
sentimentos de quem está preso ao campo em todos os sentidos: desde o espaço
geográfico até as convicções morais. Conflito entre modernidade e
conservadorismo, até mesmo na forma de amar. A narrativa, apesar da linguagem
erudita, prende o leitor até o fim, depois que ele se acostuma com a forma do
texto.
CONCERTO
CAMPESTRE pode ser encontrado com facilidade nas bibliotecas e em algumas
livrarias. Disponível também nos formatos pocket e e-book.
Esta
postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente
no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Não
deixem de visitar a Biblioteca Municipal Theobaldo Paim Borges! Leiam o livro,
e depois assistam ao filme!
Falando
nisso, na próxima postagem: CONCERTO CAMPESTRE, o filme.
Até
mais!
domingo, 18 de dezembro de 2016
Seção Resenha de Cinema: A PAIXÃO DE JACOBINA
Olá.
Aqui
é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje,
volto a falar de filme – esta é a Seção Resenha de Cinema, falando de
adaptações de livros para a Sétima Arte.
Volto
a falar da Revolta dos Mucker. Volto a falar de Jacobina Maurer. E hoje vou
falar do produto mais “comercial” a respeito do conflito messiânico da zona de
imigração alemã do Rio Grande do Sul do século XIX.
Anteriormente,
falei a respeito do livro Videiras de
Cristal, de Luiz Antônio de Assis Brasil, a recriação ficcional em livro
mais famosa do conflito. Hoje, então, resenho a adaptação cinematográfica do
livro, A PAIXÃO DE JACOBINA. Ou melhor, adaptação, nem tanto adaptação: o filme
de fato foi mais inspirado no livro
do que adaptado do livro. Já explico.
Para
começar, A PAIXÃO DE JACOBINA, filme brasileiro lançado em 2002, foi dirigido
por Fábio Barreto, diretor que se consagrou com O Quatrilho (1995),
adaptação do romance do escritor gaúcho José Clemente Pozenato, que até concorreu ao Oscar de melhor
filme estrangeiro. Barreto também é conhecido pelos filmes Luzia-Homem (1988), Bela
Donna (1997), Nossa Senhora do
Caravaggio (2007) e Lula – O Filho do
Brasil (2009). Desde dezembro de 2009, após sofrer um grave acidente de
carro, Barreto não dirige mais filmes. Após uma delicada cirurgia, em janeiro
de 2010, está em casa, em tratamento.
O
roteiro de A PAIXÃO DE JACOBINA é de Leopoldo Serran. E seu elenco é
basicamente composto de atores consagrados, “globais”.
Antes
de A PAIXÃO DE JACOBINA, a Revolta dos Mucker (1868 – 1874), o qual nem me
darei ao trabalho de refrescar a memória dos leitores, havia sido retratada,
nos cinemas, no filme Os Mucker (1978),
de Jorge Bodanzky e Wolf Gauer. E, visualmente, A PAIXÃO DE JACOBINA tem muito
jeito de ser um filme mais palatável ao público que seu antecessor. O filme de
2002 tem mais recursos que o de 1978: mais claridade, imagens mais nítidas, músicas
de fundo, efeitos especiais, interpretações em linguagem mais novelesca e até
uma inserção de merchandising. Além disso, enquanto o filme de 1978 foi gravado
no estado de São Paulo, as locações do filme de 2002 são mais próximas do local
dos acontecimentos: o filme foi gravado em Sapiranga e outros municípios do
Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. As locações do filme, hoje, fazem parte
do roteiro turístico da cidade de Sapiranga.
Porém,
é menos fiel à realidade histórica: os diálogos são todos em português (enquanto
o filme de 1978 tinha diálogos alternando entre português e alemão hunsrückisch) e há deturpação dos fatos
até mesmo em relação ao livro-fonte. Até mesmo uma inserção de uma trama
romântica onde não havia.
Bão.
O filme de Fábio Barreto também procura retratar a líder messiânica Jacobina
Maurer (interpretada por Letícia Spiller), desta vez com um recorte de tempo
maior: ela é mostrada rapidamente na infância, depois na adolescência, e no
fim, na vida adulta. Antes e depois de se tornar a “Mutter” dos colonos alemães
abandonados pelo poder público da época, antes e depois de dizer-se encarnação
de Cristo na Terra, antes e depois de se tornar profetiza. Claro que essa vida
é mostrada com um pouco de “trapaça” e deturpação.
A
deturpação começa através do personagem Franz (Thiago Lacerda). Esse personagem
não existiu nem na vida real, nem no livro de Assis Brasil – ele é cunhado de
Jacobina, mas tem outro nome. Bem: nas cenas iniciais do filme, Jacobina
demonstra, de um modo mal disfarçado, que é apaixonada por Franz, no dia do
casamento deste. Porém, ambos os personagens vivem em tensão amorosa. Em uma
cena, Franz flagra Jacobina tomando banho de cachoeira, e, mesmo sendo ambos
casados, ambos tem um flerte ali mesmo, na piscina natural. Em crise de
consciência, Jacobina dá o fora em Franz e segue sua vida. Mais tarde, Franz
volta à vida de Jacobina quando ela já era considerada santa pela população
local, e o casal vive em um vai e vem até Franz se juntar em definitivo à
seita, conduzindo ao tradicional final dramático. Nada disso consta no livro.
Voltemos
a Jacobina Maurer, antes Mentz. Bem, a personagem tem o seu caráter divino
reforçado pelo roteiro do filme. No início do filme, ela é mostrada ainda na
infância, com a mãe e os irmãos, fugindo da Guerra dos Farrapos; as crianças
tem fome, mas a mãe impede-as de comerem de uma panela de feijão abandonada nas
ruínas de uma casa, em uma tentativa de reforçar nelas o caráter de honestidade
e de força nas adversidades (essa parte, sim, consta no livro). Em vários
momentos, ela sofre desmaios e crises de sono letárgico, mas nessas crises ela
tem ouve a voz de Deus falando com ela. E, nessas crises, ela tem o
acompanhamento do médico Dr. Hillebrandt (Werner Schünemann). Foi após a
primeira crise de desmaio, no momento em que a família bate uma fotografia na
cerimônia de casamento de Franz, que Jacobina conhece o marido, João Maurer
(Alexandre Paternost), então curandeiro – e que, inesperadamente, após a
consulta, se declara a ela. Os dois se casam, e Jacobina ajuda João Maurer no
tratamento de pacientes – enquanto vive a tensão amorosa com Franz – em casa,
ao pé do morro do Ferrabraz. Foi após o parto da única filha (na vida real,
Jacobina Maurer teve seis filhos) que Jacobina começa a “ouvir” a voz de Deus.
Outro
personagem que vive em tensão constante com Jacobina, mas desta vez no campo
das ideias, é o pastor Boeber (Antonio Calloni), que antes ouvia as confissões
de Jacobina, porém, depois, a excomunga de sua comunidade e passa à oposição
dos chamados mucker. E a maquete da igreja a qual o pastor passa boa parte do
livro construindo, e que no romance tem um caráter simbólico (ela representa um
projeto de comunidade religiosa da vida do pastor), aparece no filme, mas sem
grande importância. No livro, a maquete inacabada acaba sendo destruída junto
com a morte de Boeber; no filme, nem um nem outro morrem.
Bem.
Pouco depois, Jacobina resolve assumir seu caráter de representante de Deus na
Terra, despindo-se frente a um crucifixo cheio de luzes, depois realizando
milagres junto aos pacientes do marido (se é que podemos chamar de milagre ela
ter beijado os ferimentos da perna de um homem e este ter largado as muletas de
repente) e, com trechos da Bíblia, confortando-os com palavras. Nesse ponto,
ela passa a trajar apenas uma camisola branca; depois, ela é coroada com uma
coroa de flores pelos fieis. Jacobina começa a juntar fieis em torno de si,
pregando a Bíblia e o fim do mundo, e abençoando os fiéis com... beijos na
boca. Entre os fiéis, entre familiares e simples gente que teve de vender suas
propriedades ao governo, estão o parvo Jacó Mula (Leon Góes) e o violento
Robinson (Felipe Kannenberg). Inicialmente frequentando os cultos, estava o
mercador Nadler (Zé Victor Castiel) que, depois, escandalizado com o
comportamento de Jacobina, retira-se da seita.
A seita
já começa a arranjar opositores logo no início. Fica evidente na cena em que
Jacó Mula, ao defender Jacobina no mercado de Nadler, é agredido por homens
violentos. Esses mesmos homens matam, mais tarde, um seguidor da seita e seus
cavalos. Depois, um dos agressores é morto e enforcado por homens mascarados,
supostos mucker; e só aí é que a atenção das autoridades é despertada. A lei é
representada pelo delegado João Lehn (Caco Ciocler), tendo como aliados o Dr.
Hillebrandt e o Pastor Boeber. E, inicialmente aliado a estes, Franz.
Aliás,
Lehn vive uma tensão amorosa (mais ou menos como no livro) com a mucker
Elizabeth Carolina (Talita Castro) – mas, no filme, tal relação tem menos
arrogância por parte do homem.
A
tensão entre os mucker e os “ímpios” aumenta a cada instante. O mercador Nadler
é encontrado morto dias depois de negar vender produtos a uma mulher mucker;
depois, um membro da seita é encontrado morto de forma violenta. Jacobina até
consegue fazer chover (literalmente) durante seu enterro.
Já não
é mais possível manter as pregações de não-violência – a gota d’água é quando
as autoridades conduzem Jacobina à justiça. Estando em crise de sono letárgico,
ela é conduzida de carroça, deitada, a São Leopoldo, e sentenciada a ser
internada na Santa Casa de Porto Alegre para se tratar do suposto distúrbio
mental – e acaba tendo a cabeça raspada. E de cabeça raspada ela permanece até
o fim do filme. Um fato astronômico previsto por Jacobina acaba dando mais
força a ela e aos mucker: um meteoro cruza o céu no dia de Pentecostes (não
consta no livro!). Após o retorno ao Ferrabraz, o discurso pacífico de Jacobina
muda, e os mucker passam a perseguir os “ímpios” do mesmo modo que foram
perseguidos. Fica evidente que a luta dos muckers, antes de tudo, é contra o
sistema social injusto, ainda que pessoas inocentes também acabem pagando.
A
gota d’água foi o atentado à vida de João Lehn: foi determinante para que as
autoridades chamem o exército imperial, sob o comando do coronel Genuíno
(Felipe Camargo) para combater os mucker.
E,
nas cenas finais, há mais afastamento da realidade: na vida real, foram
necessárias três expedições para dar fim aos mucker, e na segunda, o Coronel
Genuíno morre acidentalmente, e Jacobina consegue escapar para o mato; no
filme, foram necessários dois ataques, no segundo o “templo” de Jacobina acaba
destruído, ela perece no fogo junto com Franz, e Genuíno não morre. Barreto e
Serran trapacearam!
Well.
O filme teve bilheteria razoável – só no Rio Grande do Sul foram 95 mil
espectadores, segundo informações colhidas da internet – e teve apoio tanto de
uma boa parte técnica, uma cenografia que capta bem as belezas da região do
Vale dos Sinos, uma boa reconstituição dos cenários de época – e apenas dos
cenários!
Mas
as interpretações do filme geram algumas controvérsias.
Letícia
Spiller como Jacobina, por exemplo. Para caracterizar a personagem, ela contou,
inclusive, com o uso de perucas. E ela passa a maior parte do tempo olhando
para o vazio, expressão distante, numa tentativa de reforçar a suposta
deficiência mental de Jacobina Maurer (de acordo com as descrições dos
historiadores). Sua interpretação, de um modo geral, é um tanto exagerada, bem
de personagem de novela – e a presença de Franz só reforça a pieguice. E pensar
que a ideia inicial do diretor Fábio Barreto era que a modelo gaúcha Gisele
Bündchen interpretasse Jacobina Maurer...
Isso
faz com que o título do filme adquira dois sentidos: “paixão”, tanto no
significado do amor romântico entre Jacobina e Franz, como no sentido divino, o
martírio da personagem próximo ao sofrido por Jesus Cristo.
Foi
muito criticada a cena em que ela anda pelos campos, cercada de borboletas
criadas digitalmente. O melhor efeito especial do filme ainda é a passagem do
meteoro.
Já
Alexandre Paternost, como João Maurer, praticamente expressa perfeitamente a
insignificância que o personagem assume ao longo da história, simplesmente
“desaparecendo” durante o filme. Afinal, como concorrer com a mulher beata e um
rival galã?
Outros
personagens do livro perdem empatia com relação a suas contrapartes do filme. É
o caso de Jacó Mula, que no filme parece um débil mental (no livro nem é tanto
assim), sempre soprando seus apitos e falando com dificuldade; e de Elizabeth
Carolina, cuja tensão amorosa e crise de consciência ficam em segundo plano em
todo filme. As atenções ficam voltadas, logo, para Jacobina, eliminando as
histórias paralelas que enriqueciam o enredo. Tudo para a história caber em
seus 103 minutos.
O
roteiro de Serran corta também alguns personagens do livro, como o médico
Christian Fischer, que estabelece uma relação de cumplicidade com Jacó Mula
(ficou de fora até a trama supérflua em torno dos cactos que Fischer recolhe
para remeter a um tio da Alemanha, o que foi um acerto de Barreto e Serran), o
piedoso padre católico Matias Münsch, a criada e confidente de Jacobina, Ana
Maria Hoffstätter, e o militar Santiago Dantas, responsável pelo ataque final.
Desse modo, podemos reforçar que o filme foi mais inspirado por Videiras de
Cristal que adaptado do romance.
Como
se não bastasse, conseguiram inserir no filme um merchandising da fábrica de
calçados Azaléia, que patrocinou o filme. É na cena em que uma personagem passa
em um sapateiro. Jeitinho brasileiro é isso aí.
A direção
do filme também foi muito criticada – ficou aquém de O Quatrilho, que até concorreu ao Oscar!
Ainda
assim, A PAIXÃO DE JACOBINA é mais palatável ao público que Os Mucker. Cumpriu sua função, que era a
de apresentar ao público brasileiro as paisagens de Sapiranga. Porque, na parte
da História, não foi lá essas coisas... A História, aqui, ficou no “padrão
Globo” (representada por sua filial, a RBS), já que até atores “globais” o
filme teve. Ah, mas se o próprio Luiz Antônio de Assis Brasil confessou, no
posfácio de Videiras de Cristal, que
não teve o compromisso de seguir os fatos reais em sua reconstituição da
história de Jacobina Maurer, por que não também Barreto e Serran? Assim, todos
estão redimidos.
Ah:
até o momento em que escrevo, A PAIXÃO DE JACOBINA está disponível, completo,
no YouTube, para quem quiser conferir (assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=zLel0siiLdY).
Mas, sendo filme mais recente, é fácil encontrá-lo também em DVD.
Esta
postagem é uma versão revisada e com alterações do texto publicado
anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Os
livros ainda são a melhor fonte para se conhecer a História: “trapaceiam” menos
que o cinema. Portanto: visitem a Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges. Em
caso de dúvidas se o livro que procura está disponível ou não, peça auxílio às
bibliotecárias. Doações também são bem-vindas.
Até
mais!
sábado, 17 de dezembro de 2016
Seção Resenha de Livros: VIDEIRAS DE CRISTAL
Olá.
Aqui
é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje,
volto a falar de livro. Conforme prometido há postagens atrás, voltamos a falar
da Revolta dos Mucker (1868 – 1874), o movimento messiânico ocorrido em uma
área de imigração alemã do Rio Grande do Sul. Voltamos a evocar a figura de
Jacobina Maurer, usando para isso seu relato romanceado mais famoso.
Hoje,
então, falo do romance VIDEIRAS DE CRISTAL, de Luiz Antônio de Assis Brasil.
ASPECTO FÍSICO
Bem.
Há algum tempo atrás, falei a respeito do escritor gaúcho Luiz Antônio de Assis
Brasil. Escritor, professor universitário, músico, com seus romances focando
principalmente o passado do Rio Grande do Sul, Luiz Antônio de Assis Brasil é
aclamado pela crítica, premiado, e teve livros seus adaptados para o cinema.
Já
resenhei um livro dele, Cães da Província
– para mais informações a respeito do escritor, acessem a postagem
referente. Agora, falo a respeito de VIDEIRAS DE CRISTAL, que contribuiu não apenas
para sua fama nacional, como também para lançar uma nova luz sobre o movimento
mucker.
VIDEIRAS
DE CRISTAL foi publicado pela primeira vez em 1990. A sua primeira edição foi
pela editora Mercado Aberto (a capa acima é da 5ª edição, de 1997). Quem for ler,
antes de tudo se preparem: o volume tem 544 páginas, sem contar capa.
Em
2002, VIDEIRAS DE CRISTAL ganhou uma adaptação para cinema: o diretor Fábio
Barreto transpôs o romance para as telas sob o nome A Paixão de Jacobina. Assim, há uma edição do romance com capa
especial referente ao filme, pela mesma editora Mercado Aberto. A edição mais
recente do romance foi lançada em 2010, pela editora L&PM, atual editora da
obra do autor, com 496 páginas (veja capas mais adiante).
O
romance já foi bastante analisado em artigos de revistas literárias e trabalhos
universitários – eu mesmo, na fase de pesquisa para esta postagem, encontrei
uma porção desses trabalhos disponíveis na internet.
Do
filme, falamos em outra ocasião. Vejamos primeiro o romance.
ASPECTO HISTÓRICO
Da
Revolta dos Mucker – descobri recentemente que o correto para se referir ao
movimento seria Revolta “dos Mucker”, e não “dos Muckers” pois o termo alemão é
usado sem o “s” tanto no singular quanto no plural – já falei em duas ocasiões:
quando resenhei o livro Os Fanáticos de
Jacobina, de Fidélis Dalcin Barbosa, e quando resenhei o filme Os Mucker, de 1978, primeira produção
artística focando o episódio que, durante muito tempo, foi um tabu para os
descendentes de imigrantes alemães estabelecidos em Sapiranga, a “cidade das
rosas”, que na época pertencia ao município de São Leopoldo.
Mas
vamos recordar rapidamente: o movimento mucker – termo alemão que, em diversas
obras, foi traduzido como “hipócrita”, “fanático”, “falso santo” – foi um
movimento messiânico (conflito social que gira em torno dos seguidores de um
profeta ou pessoa que afirma ser santa, tal como foi a Revolta de Canudos): uma
leva de colonos alemães estabelecidos na região de Padre Eterno, na base do
Morro do Ferrabraz, em Sapiranga, reuniu-se em torno da figura de Jacobina
Maurer, uma mulher de aspecto frágil e, segundo alguns, com indícios de doença
mental, que se dizia encarnação de Jesus Cristo, fazia previsões sobre o fim do
mundo e confortava as pessoas injustiçadas. Em torno dela e de seu marido, João
José Maurer, que já tinha fama na região como curandeiro, formou-se uma nova
“religião”, baseada em preceitos que iam contra as regras do cristianismo e do
protestantismo (vários imigrantes alemães eram luteranos, e essa corrente
cristã era tolerada pelo Império Brasileiro, oficialmente católico, desde que seus
adeptos não se reunissem em templos). Há quem enxergue no movimento à casa dos
Maurer um ingrediente de protesto contra a intransigência das autoridades –
muitos colonos sentiam-se abandonados pelo poder público da época.
Muita
gente começou a se juntar à seita. Os que se opunham, os “ímpios”, começaram a espalhar
boatos sobre o que realmente acontecia nas reuniões na casa dos Maurer e a açular
as autoridades locais contra os chamados mucker. João e Jacobina chegaram a ser
presos e conduzidos a São Leopoldo e a Porto Alegre algumas vezes. Os mucker já
chegaram a enviar um ofício ao Imperador Pedro II pedindo proteção contra as
perseguições das autoridades policiais.
O
auge do conflito se deu quando, após muitas provocações por parte dos “ímpios”,
os mucker, supostamente a mando de Jacobina, em 1872, começaram a estocar
armas, matar e incendiar casas de colonos. Essa perturbação na paz da região foi
o suficiente para as autoridades chamarem o Exército Imperial para caçar os
mucker.
E
foram necessárias três expedições para eliminar o foco principal da seita, ou
seja, Jacobina Maurer – a ação do exército imperial foi dificultada pelo
terreno conhecido do inimigo. Em uma das investidas, o comandante do exército
imperial, coronel Genuíno Sampaio, veterano da Guerra do Paraguai e de outras
guerras ocorridas no Brasil, consegue destruir o “templo” dos muckers, porém
Jacobina e seguidores conseguiram escapar – e o Coronel Sampaio ainda morreu
devido a complicações de um tiro recebido acidentalmente na perna. O cerco
final foi no dia 2 de agosto, quando, sob o comando do capitão Francisco
Santiago Dantas, o exército, graças à ajuda de um ex-membro da seita, elimina
Jacobina e vários seguidores refugiados no mato do Ferrabraz. João Maurer foi
encontrado morto tempos depois, supostamente suicidado, e seguidores
remanescentes dos mucker foram perseguidos até a virada do século XIX para o
XX.
Por
muito tempo, os descendentes de personagens da história evitavam falar do
assunto, mas, hoje, o movimento mucker rende alguns dividendos para Sapiranga,
que hoje promove roteiros turísticos nos locais da tragédia. Por algum tempo, a
cruz de madeira que marcava o suposto local onde Jacobina foi morta, erguida no
início do século XX, ficou abandonada e até caiu, roída por cupins e bicada por
pica-paus, mas uma nova foi erguida, e integra, junto com o monumento em
homenagem ao Coronel Sampaio, o roteiro turístico chamado Caminhos de Jacobina.
Bem,
é o básico para refrescar a memória dos leitores, porque, fora os artifícios
literários usados por Assis Brasil, a história de VIDEIRAS DE CRISTAL é
praticamente essa: toda a história do movimento mucker. Mas calma.
ASPECTO LITERÁRIO
VIDEIRAS
DE CRISTAL – O ROMANCE DOS MUCKERS, seu subtítulo, compõe-se de diversas
histórias correndo em paralelo à história principal. Como literato, construindo
seu romance a partir de fato histórico, Luiz Antônio de Assis Brasil admite,
parafraseando suas palavras no posfácio da obra, que não tinha muito
compromisso com a realidade. Logo, sua versão do conflito dos mucker lança mão
de recursos de realidade e de ficção. Desde já se sabe que os fatos históricos
podem não ter ocorrido da maneira como foi narrada pelo autor, muito embora ele
tenha feito a devida pesquisa para elaborar o romance.
Assis
Brasil procurou falar do movimento mucker pelos dois lados: o dos seguidores de
Jacobina, e o do lado dos “ímpios”, sem dar certezas de qual lado é o dos
“mocinhos”, e de qual é o dos “bandidos”.
Há,
claro, a certeza de que o movimento mucker foi uma resposta ao meio social
desumano, de autoridades prepotentes e injustiças sociais, os mucker lutando
pela única coisa que no momento lhes restava: a fé. Pelo menos, é assim na
primeira metade do romance. Na segunda metade, os mucker é que se tornam os
“bandidos” da história, quando passam eles mesmos a perseguirem os “ímpios”.
O
título do romance faz referência a uma passagem bíblica que compara a alma
humana a videiras de cristal: “fecunda nos verões luminosos mas quebradiça
quando coberta pela geada do inverno”, uma referência à credulidade do ser
humano, e de como tal credulidade às vezes o leva a cometer delitos contra
pessoas. Parece que é isso.
A
história de VIDEIRAS DE CRISTAL começa na Alemanha, em um vilarejo onde vive o
abonado Hans Willibald, que tem por hobby colecionar cactos, mantidos em uma
estufa – e isso, apesar de fazer tempo frio na região onde reside, e os cactos
serem, antes de tudo, plantas tropicais. Hans passou parte da vida criando um
sobrinho órfão, Christian Fischer, e lhe desejava um grande futuro como médico,
tanto que custeou sua faculdade de medicina. Mas mal entendeu os motivos porque
seu sobrinho resolveu se especializar em psicologia, uma área nova da ciência
médica, e os de ele ter escolhido vir ao Brasil para montar seu consultório.
Mas o Sr. Willibald autoriza a viagem, em troca de o sobrinho remeter,
regularmente, amostras de cactos brasileiros (em princípio, as aparições de
Willibald e sua estufa de cactos na trama serve apenas como uma “muleta” no
romance, mas há um significado escondido na permanência desse núcleo).
Christian
Fischer monta seu consultório em São Leopoldo. Em vários trechos do romance,
Christian Fischer, personagem fictício, remete cartas – e os cactos – ao tio,
descrevendo os costumes de pessoas da sociedade local e também os
acontecimentos da perseguição aos mucker, entremeando alguns capítulos (aliás,
não fica nítida a divisão dos capítulos do livro, que não são numerados, são
divididos em cenas, em narração contínua como o roteiro de um filme – os
grandes espaços em branco é que servem de limite entre as cenas do livro). Em
certo momento, instado por um de seus pacientes, Jacó Fuchs, Christian acaba se
juntando aos mucker, e lutando ao lado deles.
Jacó
Fuchs, ou Jacó-Mula, é um dos personagens mais simpáticos do romance – e esse
existiu mesmo! Tido como louco, ou simplesmente idiota, pela família e pelos
amigos, e por isso não era levado a sério, Jacó-Mula encontra conforto e
compreensão ao se juntar à seita de Jacobina. E segue a mulher cegamente, a
ponto de abandonar a mulher e os filhos – decisão da qual se arrepende mais
tarde. O homem cria uma cumplicidade com o médico Christian Fischer, a ponto de
fazê-lo se juntar aos mucker – e também de arranjar alguns cactos para ele.
Do
lado mucker, ainda temos, como personagens principais: Elizabeth Carolina
Mentz, cunhada de Jacobina, que carrega em boa parte do livro um enorme
sentimento de culpa – ela secretamente trai o marido, Henrique Mentz, com o
inspetor de polícia João Lehn, caso que é descoberto pelo cunhado João Maurer,
e a culpa acompanha a mulher até seu trágico fim; Ana Maria Hoffstätter, a
criada de Jacobina, que acaba brigada com a própria família por conta de suas
opções – e ela sofre bastante ao longo do romance, de estupro por bandoleiros
até a perda de um amor secreto, morto por membros dos mucker por ter traído a
seita; Rodolfo Sehn, suposto amante da Mutter
Jacobina, e que se torna seu segundo “esposo” (um momento: segundo Fidélis
Barbosa, o segundo esposo de Jacobina foi João Klein! Qual versão está certa?);
o violento Robinson, o Ruivo; e o pastor Klein, que se junta à seita após ter
perdido o cargo de pastor luterano para Wilhelm Boeber, o que o deixa
rancoroso.
Por
sua vez, Jacobina Maurer, a Mutter, é
retratada no romance como convicta de ser mesmo uma representante do “Espírito
Natural” na Terra – nesse ponto, as descrições alternam realidade e supostas
visões divinas. O papel de Jacobina oscila entre o de mulher caridosa, que
acolhe seus fieis como filhos, e o de mulher de fé, intransigente com as
perseguições dos “ímpios”, alternando momentos de lucidez e surtos de sono
letárgico. Ela chega a “santificar” sua filha de colo, Leidard, a “filha da Fé”.
Seu
marido, João Maurer, anteriormente chamado de Wunderdoktor (Doutor Maravilhoso), anteriormente tinha fama como
curandeiro, enquanto sua esposa Jacobina apenas o auxiliava na cura dos doentes
e lendo a Bíblia aos fieis; porém, à medida que a importância de Jacobina
cresce, o Wunderdoktor passa a perder
importância, a ponto de praticamente “sumir” na trama – ele mesmo acaba
reconhecendo sua inferioridade.
Do
lado dos “ímpios”, temos: o pastor Boeber, que além da franca oposição aos
mucker, passa boa parte do romance cuidando de uma maquete de madeira de uma
catedral, cujo aspecto é tão simbólico quanto a trama dos cactos de Christian
Fischer; o policial João Lehn, arrogante e violento, a paixão secreta de
Elizabeth Carolina; o também violento delegado de polícia Schreiner,
responsável pelas primeiras perseguições aos mucker; os ex-fiéis Carlos Brenner
e Martinho Kassel, que acabam se tornando vítimas da fúria dos seguidores de
Jacobina; os militares Genuíno Sampaio e San Tiago Dantas, os líderes da investida
final contra os mucker – o primeiro, com um caráter mais violento e duvidoso, o
segundo mais ponderado; e o padre Mathias Münsch, católico, cujas convicções e
fé são abalados no decorrer da história, até ser vitimado pelas circunstâncias.
Há,
no livro, dois capítulos que se passam no Rio de Janeiro, na corte imperial,
quando uma comissão de mucker vai pedir proteção junto ao Imperador contra os
abusos das autoridades policiais.
Enquanto
correm essas histórias paralelas, correm linearmente os acontecimentos
referentes aos mucker, conforme relatado anteriormente, então, nem é preciso
nos darmos ao trabalho de recontar a história. Claro que o leitor lê VIDEIRAS
DE CRISTAL já sabendo como a história termina, mas o que sustenta a narrativa é
o estilo vigoroso de Assis Brasil, com as histórias em paralelo, as descrições
ricas em detalhes, inclusive nas cenas de extrema violência, uma linguagem que
evita ao máximo a extrema erudição que pode afastar leitores de obras desse
feitio, e a capacidade de sensibilizar o leitor – está claro que, se os mucker
se tornaram violentos, foi uma resposta à violência e à intolerância que eles
próprios sofreram. E como não se sensibilizar com, por exemplo, o drama de
Elizabeth Carolina, e com o triste fim do Padre Münsch, depois de acolher um
deficiente mental que começa a carregar de um lado para outro após a morte dos
familiares deste?
Estudiosos
apontam, entretanto, que Assis Brasil assumiu o ponto de vista dos “vencedores”
em sua narrativa, ou melhor, dos autores que retrataram, em seus estudos, os
mucker como fanáticos e violentos, chefiados por um médico charlatão e por uma
mulher louca e analfabeta, sem o elemento de denúncia social. Um dos primeiros
autores a tratar do movimento mucker foi a padre Ambrósio Schupp, em livro
redigido em alemão de cerca de 1900 – que serviu de base tanto para Assis
Brasil como para Fidélis Barbosa. Atualmente, a visão de Schupp é contestada
pelos historiadores, sobretudo os marxistas.
De
todo modo, VIDEIRAS DE CRISTAL firma Luiz Antônio de Assis Brasil como um dos
maiores escritores gaúchos, um mestre em retratar o passado gaúcho com ficção. VIDEIRAS
DE CRISTAL mostra um autor em plena maturidade artística. Tudo bem que o
romance tem mais de 500 páginas, mas garante horas de entretenimento ao leitor
que desejar um pouco mais de cultura em sua cabeça. Ah: a edição da Mercado
Aberto inclui ainda ilustrações – gravuras do século XIX mostrando os cenários
da história, e um mapa da região conflagrada.
Em
breve, falamos de seu produto derivado, o filme A Paixão de Jacobina.
Esta
postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente
no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Este
livro, assim como outros de Luiz Antônio de Assis Brasil, se encontra
disponível no acervo da Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges. Em caso de
dúvida, pergunte a uma das bibliotecárias, elas podem auxiliar.
Em
breve, nova resenha de livros aos leitores, tanto de Vacaria quanto de outras
localidades alcançadas pela internet.
Até
mais!
sexta-feira, 25 de novembro de 2016
Seção Resenha de Livros: CÃES DA PROVÍNCIA
Olá.
Aqui
é o Rafael de novo, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Por
esses dias, bateu um súbito e louco interesse por um assunto histórico um tanto
mórbido. Até o presente momento, já resenhei dois livros a respeito dos crimes
da Rua do Arvoredo, ou caso da Linguiça Humana, ocorrida em Porto Alegre, entre
1863 e 1864.
Pues,
hoje, vou resenhar mais um livro ligado à temática. Desta vez, é um romance. De
um dos maiores escritores do Rio Grande do Sul do século XX – ou pelo menos,
onde sua reputação ficou.
Hoje,
então, falarei de CÃES DA PROVÍNCIA, de Luiz Antonio Assis Brasil.
O REDATOR
Antes
de falar do livro, propriamente dito, é justo, como sempre faço, que antes eu
fale do autor – no caso, Luiz Antonio de Assis Brasil, às vezes grafado sem o
“de”.
A
capa acima é da edição de 1997 – a sétima – de CÃES DA PROVÍNCIA, sua principal
obra, publicada pela editora Mercado Aberto. É dessa edição que extraio a
síntese biobibliográfica inicial a respeito do autor, com algumas inserções de
informações extraídas da internet:
“Gaúcho de Porto Alegre,
1945. Embora de família fortemente ligada à formação do Estado, passou a
infância e a adolescência em Estrela, zona de colonização germânica. De volta a
Porto Alegre, estudou com os padres jesuítas e seguiu Direito [na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
PUCRS], formando-se em 1970. Durante os
estudos e mesmo depois, atuou na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre [OSPA] como violoncelista. A música, entretanto,
foi substituída pela literatura, e a prática da advocacia pelo magistério
superior. Doutor em Letras, (...) professor adjunto na PUC do Rio Grande do Sul
onde, no Curso de Pós-graduação em Letras, coordena uma oficina de criação
literária que já publicou várias antologias de contos [e revelou diversos
escritores que ficariam célebres, como Letícia Wierzchowski, Cíntia Moscovich,
Daniel Pellizzari, Monique Revillion e Daniel Galera].
Atuou na administração
cultural, exercendo sucessivamente os cargos de diretor do Centro Municipal de
Cultura de Porto Alegre e diretor do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande
do Sul – em sua gestão deu início à publicação da série Autores Gaúchos, de
repercussão nacional –, e foi, por último, subsecretário de Cultura de seu
Estado. No inverno 84/85 foi bolsista do Goethe-Institut na República Federal
da Alemanha. Por solicitação do Ministro Furtado fez parte, com Affonso Romano
de Sant’Anna, da comissão especial que ofereceu sugestões para uma política
federal do livro. Em 89/90 foi Catedrático Convidado de Literatura Brasileira
na Universidade dos Açores, Portugal. Presidente da Associação gaúcha de
Escritores no Biênio 88/90. Membro dos Conselhos Editoriais das editoras da
PUC/RS e da Universidade de Caxias do Sul, bem como do Conselho Estadual de
Cultura.
Obras publicadas: Um quarto de légua em quadro (1976)
[...]; A prole do corvo (1978) [...];
Bacia das Almas (1981) [...]; Manhã
transfigurada (1982) [...]; As
virtudes da casa (1985) [...]; O
homem amoroso (1986); Cães da Província
(1987) [...]; Videiras de cristal (1990) [...]; [A trilogia Um Castelo no Pampa, composta por:]
Perversas Famílias (1992) [...]; Pedra
da Memória (1993) [...]; [e] Os
senhores do século (1994) [...]; Anais
da Província-Boi (1997); Concerto
Campestre (1997). Em 1988 publica no
jornal Diário do Sul o folhetim Breviário
das Terras do Brasil [compilado em livro em 1997, que também foi o ano em que
Luiz Antonio de Assis Brasil foi escolhido patrono da 43ª Feira do Livro de
Porto Alegre].
Elogiado por A. Bosi, em
sua História Concisa da literatura brasileira, foi incluído pelo brasilianista Malcolm Silverman na obra A Moderna
sátira brasileira. Faz parte do livro A
posse da terra, de Cremilda Medina (Ed.
Casa da Moeda, Portugal), e é objeto de estudos e citações em obras de Antonio
Hohfeldt, Regina Zilbermann, Flávio Loureiro Chaves, Volnyr Santos e outros.
[...]
Prêmios recebidos, sem
inscrição prévia: prêmio Ilha de Laytano (1977) por Um Quarto de Légua em Quadro; Prêmio Érico Veríssimo (1987), concedido pela Câmara de Vereadores de
Porto Alegre pelo conjunto de sua obra, e o Prêmio Literário Nacional, do
Instituto Nacional do Livro (1988), por Cães da Província.” (in: Cães da Província, 7ª edição. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1997,
p. 3-4. As inserções entre colchetes saíram do verbete sobre o autor na
Wikipedia).
Para
completar as informações a respeito de Luiz Antonio de Assis Brasil, depois de
1997: em 1998, ele é palestrante convidado na Brown University, em Providence,
EUA; em 2000, ele participa do programa Distinguished Brazilian Writer in
Residence, na Berkeley University, Califórnia, EUA. E, entre 2011 e 2014, atuou
como Secretário da Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, durante a gestão do
governador Tarso Genro. Ele continua atuando como professor e, periodicamente,
escreve para jornais, como Zero Hora.
Obras
publicadas nos anos 2000: O Pintor de
Retratos (2001); A margem imóvel do
rio (2003); Música perdida (2006);
Ensaios íntimos e imperfeitos (2008);
e Figura na Sombra (2012). Seu livro
mais recente é O Inverno e Depois, lançado
em setembro de 2016, pela L&PM.
Prêmios
recebidos nos anos 2000: prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional
(2001), por O Pintor de retratos; menção
honrosa do Prêmio Jabuti (2003) e prêmio Portugal Telecom de Literatura
Brasileira (2004), por A margem imóvel do
rio.
A
obra do autor, atualmente, está sendo editada pela editora L&PM, nas
versões normal e pocket (mais adiante, veja a capa da edição de CÃES DA
PROVÍNCIA pela L&PM). E também ganhou edições no exterior, na Europa e
América Latina. E sua obra também é constantemente analisada em teses
acadêmicas – já saíram até livros de análise de livros específicos do autor.
Ah:
a obra de Luiz Antonio de Assis Brasil também já ganhou adaptação para o
cinema! Foram quatro filmes até o momento em que escrevo, adaptando livros do
autor: o primeiro foi Videiras de
cristal, adaptado em 2002, pelo diretor Fábio Barreto, sob o nome A Paixão de Jacobina; em 2004, Concerto Campestre foi adaptado para um
filme homônimo, por Henrique de Freitas Lima; em 2005, Um quarto de légua em quadro é adaptado pelo diretor Paulo
Nascimento, sob o nome Diário de um Novo
Mundo; em 2008, Manhã Transfigurada ganha
um filme homônimo, dirigido por Sérgio de Assis Brasil; e Ensaios Íntimos e Imperfeitos é adaptado para uma série de
mini-documentários, com direção de Douglas Machado, em 2016 – todos com atuação
do próprio Assis Brasil. Há notícias de que O
Pintor de Retratos também está prestes a ser adaptado para o cinema.
Luiz
Antonio de Assis Brasil é tido como um importante escritor gaúcho, e, como tal,
seus livros são mais “cabeça”, como todo bom literato gaúcho, ou, pelo menos,
levando em conta as atuais tendências da literatura comercial, cujos maiores
sucessos são, basicamente, livros de ficção fantástica. Por isso, tanto a
linguagem como os temas abordados são mais voltados a leitores mais
“instruídos”, e seus livros atraem mais quem já ouvira falar de sua obra
anteriormente. E o tema mais recorrente da obra do autor é o passado do Rio
Grande do Sul, principalmente o século XIX. Um
Quarto de Légua em Quadro, por exemplo, se passa na época da colonização
açoriana do Rio Grande do Sul, no século XVIII; A Prole do Corvo recupera episódios da Guerra dos Farrapos (1835 –
1845); As Virtudes da Casa, segundo o
estudioso Valdocir Esquinsani, que até mesmo publicou em livro a sua tese (As Metamorfoses de um Mito, Passo Fundo,
Editora Universitária, 2000), recria,
no Rio Grande do Sul do século XIX, o mito grego do herói trágico Agamenon,
imortalizado em peça teatral de Ésquilo; Videiras
de Cristal recupera o episódio da Revolta dos Muckers, uma seita religiosa
formada por colonos alemães na região de São Leopoldo, RS; Concerto Campestre se passa no contexto da atividade agropecuária do
século XIX (e, assim como O Homem
Amoroso, carrega um acento autobiográfico, tendo como tema condutor a
música); e CÃES DA PROVÍNCIA trata de acontecimentos da cidade de Porto Alegre
no século XIX.
O HOMENAGEADO
Bão.
CÃES DA PROVÍNCIA lança mão de dois episódios principais ocorridos na década de
1860: os crimes da Rua do Arvoredo, quando o ex-policial e açougueiro José
Ramos se torna suspeito de fabricar linguiças com carne humana; e o julgamento
do pedido de interdição dos bens do escritor José Joaquim de Campos Leão,
também conhecido como Qorpo-Santo. Ambos personagens reais.
Antes
de prosseguir, devo falar um pouco a respeito de Qorpo-Santo, o objeto do
romance citado. Escritor de peças de teatro, e considerado por vários críticos
teatrais o precursor do teatro do absurdo no Brasil – e, possivelmente, no
mundo – José Joaquim de Campos Leão nasceu em Triunfo, RS, em 1829, e faleceu
em Porto Alegre, em 1883, vitimado por uma tuberculose. Ele não foi reconhecido
em vida – suas ousadas peças teatrais só foram redescobertas e montadas nos
anos 1960.
Na
juventude, teve o pai assassinado durante a Guerra dos Farrapos, em 1839;
mudou-se para Porto Alegre para estudar gramática. Inicialmente, trabalha no
comércio, e, a partir de 1850, habilita-se para o Magistério Público, fazendo
carreira também como professor. Qorpo-Santo funda um grupo dramático em 1851,
escreve para jornais da Província do Rio Grande do Sul a partir de 1852, e, em
1855, deixa o magistério e leciona em vários colégios. Em vida, Qorpo-Santo
teve várias profissões, tanto em Porto Alegre como em Alegrete, para onde
muda-se em 1857 com a família (no ano anterior, ele casou-se com Inácia de
Campos Leão). Em Alegrete, Qorpo-Santo atua como delegado de polícia e
vereador.
Em
1861, a família volta para Porto Alegre. No ano seguinte, Qorpo-Santo, já
adotando o pseudônimo célebre (a grafia deve-se a uma proposta pessoal de
reforma ortográfica – muitos leem “Corpo-Santo”, mas eu, pessoalmente, imagino
que se leia, aproveitando o fonema da letra Q, “Kuorpo-Santo”), começa a
escrever suas peças teatrais. Em 1862, ainda, se faz notar sinais dos
transtornos mentais que levam Dona Inácia a pedir a interdição dos bens do
marido. Qorpo-Santo é diagnosticado com monomania, com “superexcitação da atividade
cerebral”, por sua compulsão de “tudo escrever” – apenas em maio de 1866, ele
escrevera oito peças teatrais, das dezessete que escreveu ao todo! Porém, os
psiquiatras da Porto Alegre daquele tempo não chegam a um acordo sobre o estado
mental do paciente, que alterna momentos de lucidez com alucinações. Ainda
assim, é decidida pela interdição dos bens. E Qorpo-Santo é enviado para novos
exames psiquiátricos no Rio de Janeiro, que atestam que ele goza de boa saúde
mental.
Mesmo
assim, em 1868, sob novo julgamento, a interdição é mantida, e seus bens são
administrados por terceiros – Dona Inácia também é impedida de administrar
esses bens. Mesmo com o parecer favorável, o estigma está criado, e Qorpo-Santo
se vê cada vez mais isolado, sendo obrigado a deixar a atividade jornalística.
Ainda assim, em 1877, Qorpo-Santo monta uma gráfica, e por conta própria edita
sua obra, reunida nos nove volumes da coletânea conhecida como Ensiqlopedia, ou seis mezes de huma
enfermidade. É na Ensiqlopedia que,
além de crônicas, poemas, confissões, receitas culinárias e outros textos,
Qorpo-Santo edita suas ousadas peças teatrais. A partir dos anos 1960,
inicia-se o resgate das obras de Qorpo-Santo – até hoje, só foram encontrados
seis dos nove volumes da Ensiqlopedia.
De vez em quando, é possível encontrar compilações de suas peças teatrais nas
livrarias e bibliotecas.
Qorpo-Santo
é tido como precursor do teatro do absurdo, com temas que iam contra as
tendências do teatro da época, guiado pelos ideais do Romantismo. Dentre as dezessete
peças até hoje identificadas de Qorpo-Santo, incluem-se: As Relações Naturais; Matheus e Matheusa; Hoje sou Um, Amanhã Sou
Outro; Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte; Lanterna de Fogo; A Separação dos Dois
Esposos. Nessas peças, Qorpo-Santo lança mão de ousadias para sua época,
como colocar prostitutas como personagens; tratar do homossexualismo de forma
natural; se incluir como personagem; e até mesmo indicar ousadias cênicas
difíceis de reproduzir com as limitações cênicas do século XIX, como
personagens que simulam perder partes do corpo, os atores contracenarem com
animais vivos no palco ou o fim da peça com jorros e explosões de luz. Mas, o
mais importante é que os personagens de Qorpo-Santo são projeções dele mesmo,
principalmente em seu inconformismo com as regras sociais de seu tempo –
inconformismo que se tornou mais forte depois que foi submetido aos exames,
internações e à interjeição de seus bens. Há de lembrar que os tratamentos
psiquiátricos do século XIX, pelos padrões de hoje, lançavam mão de técnicas
cruéis e questionáveis, como isolamento em hospícios, aprisionamento com
correntes e camisas-de-força, tratamentos com choques elétricos e até
lobotomia.
(Fonte:
sites Wikipedia e Enciclopédia Itaú Cultural
[enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8151/qorpo-santo])
QORPO-SANTO NO ROMANCE
É
como um sujeito inconformado com as regras sociais que Qorpo-Santo é retratado
em CÃES DA PROVÍNCIA. No livro, lançado em 1987 e vencedor do Prêmio Literário
Nacional do INL em 1988, Luiz Antonio de Assis Brasil reconstitui os aspectos
da cidade de Porto Alegre no século XIX, tanto na parte física – a descrição da
cidade – como social. A sociedade porto-alegrense do século XIX se encontrava
muito presa às convenções sociais, às regras de conduta impostas pela Igreja,
pela Política e pelos costumes, tanto as classes ricas como as pobres. Se
portam como cães fiéis e obedientes a essas convenções (daí o nome do romance).
Por seu provincianismo, qualquer fato que acabe saindo do comum agita e revolta
a população da Capital da Província, mobiliza as autoridades, provoca
interdições e depredações.
Por
isso, as notícias da prisão de José Ramos, o linguiceiro, e da interdição dos
bens de Qorpo-Santo agitam a população da capital. Além de não conseguirem
aceitar o fato de terem, involuntariamente, consumido carne humana, não
conseguem suportar o fato de um louco dizer o que pensa de todos esses
acontecimentos, e expor a sociedade de uma forma que não consegue suportar. Ou,
pelo menos, de alguém que acreditam ser louco: Qorpo-Santo é retratado como um
homem de superioridade intelectual, o mais inteligente daquela cidade, mas que,
como a grande maioria dos gênios, não foi reconhecido por seus contemporâneos.
Loucos seriam, na verdade, os que queriam interditar o pobre gênio. Mas, mais
que isso, tais processos acabam escancarando histórias de crimes, adultérios,
incestos e outras crueldades, às quais Qorpo-Santo denuncia, a plenos pulmões a
quem assiste seu julgamento, ou através de suas peças, que ele começa a
escrever.
Para
escrever CÃES DA PROVÍNCIA, Luiz Antonio de Assis Brasil também contou com a
consultoria do historiador Décio Freitas, que conseguira o material referente
ao processo contra José Ramos e a mulher, Catarina Palse. Foi só em 1996 que
Freitas publicaria seu livro O Maior
Crime da Terra – e só em 2004 que o escritor David Coimbra consultaria
Freitas para escrever Canibais. Então,
Assis Brasil chegou antes.
Bão.
O romance conta, de forma não-linear, e intercalando personagens e situações,
os acontecimentos ocorridos na Porto Alegre da década de 1860. Quanto à parte
de Qorpo-Santo, os acontecimentos concentram-se desde o início do processo de
interdição até a sua partida para o Rio de Janeiro.
Pelo
menos um personagem ficcional tem grande importância na narrativa: o comerciante
Eusébio Cavalcante, amigo de Qorpo-Santo, de início muito preocupado com as
convenções sociais e seus negócios, até receber a notícia de que sua esposa, a
geniosa Lucrécia, fugira com o amante. A ausência da esposa causa uma grande
angústia a Eusébio – angústia que só aumenta quando, instado por Qorpo-Santo e
levado a um necrotério, ele acaba reconhecendo um corpo esquartejado de mulher
como sendo o de Lucrécia. Corpo esse que fora encontrado entre os restos das
vítimas de José Ramos, na casa da Rua do Arvoredo. Nos dias que seguem, Eusébio
se entrega ao luto, que até dá uma melhorada depois que faz uma viagem e se
envolve com uma alemã, um caso rápido e fugaz; mas tem cada vez mais certeza de
que Lucrécia está viva, vivendo com o amante, e reconhecera o corpo, e lhe dera
enterro em nome da mulher, como uma forma de desviar a atenção da população.
Até
que Lucrécia, de repente, volta para casa, arrependida do adultério, infeliz
com a vida que levava com a família do amante... porém, não pode se mostrar ao
público, e, trancada em casa, sucumbe aos poucos ante à loucura de Eusébio, e
sua própria. O retorno da esposa só deixa o comerciante mais angustiado, e a
libertação só se dá depois que consegue, afinal, se livrar da esposa,
dando-lhes uma morte piedosa.
Não
sei dizer se os personagens do Dr. Joaquim Pedro e do Dr. Landell são baseados
em figuras reais. Esses são os médicos encarregados de discutir o caso do
paciente Qorpo-Santo, para depois oferecerem o parecer ao juiz, determinando se
ele deve ter os bens interditados ou não; e aproveitam qualquer ocasião para
discutir o caso, desde uma caçada nos campos até uma aula de anatomia na Santa
Casa de Porto Alegre – o principal hospital daquele tempo. Enquanto o Dr.
Landell é favorável ao diagnóstico de que Qorpo-Santo é louco, o Dr. Joaquim
Pedro é favorável ao diagnóstico de que Qorpo-Santo é são – e se convence disso
depois de ler as peças escritas pelo paciente (há, inclusive, pequenas e breves
descrições das peças de Qorpo-Santo ao longo do livro).
O
delegado de polícia Dario Calado, sim, é real. Acompanhamos alguns de seus
pensamentos diante dos casos que se apresentam diante de si. E também de seus
interesses amorosos: ele chega a desejar a criminosa Catarina Palse – que tem
uma participação muito breve no romance, assim como a de José Ramos – e,
depois, deseja até mesmo Inácia, a esposa de Qorpo-Santo. Por pouco, em um
segundo encontro, Calado não consuma seu desejo pela mulher do louco.
Inácia
de Campos Leão vive, ao longo do romance, um sentimento conflitante em relação
ao marido. Ambos se amam, mas Inácia não consegue suportar o fato de
Qorpo-Santo estar entregue à sua atividade insana de escrever, e deixar a
família de lado, vivendo na rua da amargura. Por isso, opta pela interdição dos
bens, com a certeza de que poderá administrá-los. Como prova de sentimentos
conflitantes, ela chega até a dormir com o marido, e, pouco depois, brigar com
ele, que foge, nu, pelas ruas, e depois é preso.
Apesar
da lucidez de Qorpo-Santo em denunciar as mazelas da sociedade em que vive, o
personagem também alterna momentos de pura alucinação e ações ilógicas: cria um
sagui em seu quarto, muda o nome de seu criado e confidente, Juvêncio, para
Inesperto, tranca a porta da frente de seu sobrado com tábuas – o acesso para
sua casa, agora, se dá através de uma escada portátil, pela janela de seu
quarto – e recebe “visitas” do imperador francês Napoleão III (sobrinho de
Napoleão Bonaparte), que exige que Qorpo-Santo reescreva seu destino, para que
não termine como o tio. Em alguns momentos, Qorpo-Santo chega a apresentar o
Imperador, que só ele vê, a pessoas em seu redor. Nos diálogos com o Imperador
imaginário, Qorpo-Santo (ou melhor, Assis Brasil) aproveita para discutir
reformas sociais lúcidas, e válidas para qualquer tempo. De vez em quando, a
imaginação de Qorpo-Santo confunde Porto Alegre com Paris. Aí, se pode
questionar: sim, Qorpo-Santo está louco. Essas não são atitudes de gente que
denuncia mazelas de forma tão lúcida. Ou seriam uma forma racional de protesto?
Os leitores podem decidir.
Inesperto
também se mostra um personagem importante no livro, o ponto de equilíbrio de
Qorpo-Santo entre a lucidez e suas alucinações, apesar de também agir como um
“cão da província” – apenas cumpre ordens, sem maiores questionamentos, por
mais insanas que sejam, e não tem, exatamente, uma opinião formada a respeito
do que presencia. Inesperto é o contato entre seu patrão e a realidade, uma
espécie de Sancho Pança para um Dom Quixote porto-alegrense.
Enfim.
CÃES DA PROVÍNCIA pode ser encontrado nas livrarias e bibliotecas. É um romance
“cabeça”, que pode exigir um pouco do leitor, mas livros, em tese, servem
justamente para isso: colocar cultura na cabeça dos leitores. Acrescentar
palavras novas ao vocabulário, acrescentar experiências novas à vida. E
procurar entender não apenas por que Luiz Antonio de Assis Brasil é um de
nossos escritores mais importantes; e porque CÃES DA PROVÍNCIA é um livro
premiado.
Quem
sabe, também, não se colocar no lugar do atormentado Qorpo-Santo.
Esta
resenha é uma versão revisada e com alterações do texto publicado no blog
Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Este
título, como tantos outros, está disponível na Biblioteca Pública Municipal
Theobaldo Paim Borges. Procurem e surpreendam-se.
Em
breve, nova resenha de livro.
Até
mais!
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