segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Seção Resenha de Livros: PRISIONEIROS DO ABISMO

Olá.
Hoje, em mais uma colaboração para o blog da Biblioteca Municipal, trago mais um livro de Fidélis Dalcin Barbosa, para rememorar o escritor, ex-padre e pesquisador gaúcho. E vale a pena rememorar antes que ele acabe esquecido por completo.
Fidélis Dalcin Barbosa tem, entre seus mais de 60 livros, cinco com o título “Prisioneiros”. Já falei de dois desses livros: Prisioneiros dos Bugres e O Prisioneiro da Montanha. Hoje, falo de mais um com o título: PRISIONEIROS DO ABISMO. Um livro infanto-juvenil mais “moderno”, ao menos para sua época.
PRISIONEIROS DO ABISMO foi publicado pela primeira vez em 1962, pela editora EST (Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes), de Porto Alegre, RS. Segundo informações da internet, a segunda edição do livro foi lançada pela editora Paulinas, de São Paulo. A capa acima, do exemplar disponível na Biblioteca, é da terceira edição do romance, lançada em 1995 pela EST.
PRISIONEIROS DO ABISMO é um romance bastante rápido – 30 breves capítulos distribuídos em 87 páginas – e que alia tudo o que o escritor mais utilizava em sua obra: didatismo, com informações geográficas, históricas e folclóricas a rodo ao longo do texto; desejo de divulgar aos leitores os atrativos do Rio Grande do Sul, bem como suas belezas naturais; e um pouco de religião e de moralismo. Mas com uma pequena dose de controvérsia – o que poderia ser uma boa ideia em 1962 pode não ser nos dias de hoje, com tantos movimentos pela conservação ambiental.
Bem. Através da saga ficcional de dois amigos, Fidélis Barbosa se propõe a apresentar aos leitores os atrativos turísticos da serra gaúcha, com maior destaque para o Taimbezinho, o maior conjunto de cânions (paredões de pedra) da América Latina.
O Taimbezinho se localiza no município de Cambará do Sul, RS, no Parque Nacional dos Aparados – cenário de outro romance de Fidélis Barbosa já resenhado aqui, O Prisioneiro da Montanha. É possível comparar o conjunto do Taimbezinho ao Grand Canyon, do estado do Arizona, nos Estados Unidos, mas com mais diferenças: enquanto o Grand Canyon foi formado pela ação erosiva das águas do Rio Colorado e se localiza em uma região seca e árida, o Taimbezinho foi formado praticamente de uma vez só, em uma “gargalhada telúrica”, localiza-se em uma região de umidade mais constante – graças à sua localização mais próxima ao mar – e contém uma ampla vegetação. Hoje, é um ponto turístico requisitado na região da Serra Gaúcha, fronteira com Santa Catarina.
Na época da publicação do romance, o Taimbezinho não era tão visitado, nem contava com uma infraestrutura que possibilitasse o turismo. Hoje, temos estradas de acesso – não faz muito tempo, por exemplo, que foi concluída a construção da rodovia de ligação entre Bom Jesus, RS, e Araranguá, SC – e infraestrutura. Essa questão, da infraestrutura turística, é um dos pontos controversos do romance: Fidélis Barbosa defendia a montagem de mais hotéis e restaurantes na região para uma maior visitação de turistas, que nem pernoitar podiam, visitavam o local à tarde e iam embora logo depois, e corriam o risco de perder o espetáculo da natureza nos melhores horários da manhã. Hoje, para uma melhor conservação do meio-ambiente, e por consequência do local referido, uma estrutura turística como a descrita por Barbosa soa como predatismo, ainda mais com o péssimo hábito de muitos turistas de deixar lixo nos locais de visitação.
De todo modo, o Taimbezinho também atrai aventureiros e esportistas, que se arriscam para descer os cânions e apreciar as belezas naturais. E não foram poucos os acidentes ocorridos na região, casos de gente que acabou se perdendo e/ou morrendo na região (o texto de orelha da presente edição do livro narra alguns desses casos). Certos atrativos valem mais a pena por não serem isentos de riscos e possibilidades de aventuras.
Bão. Os personagens do romance são os amigos Danilo Vedana e Mário Lacerda, ambos quase adultos e estudantes de um colégio de Porto Alegre, no ano de 1961. Mário é moço da cidade, que passa as férias no litoral; e Danilo, filho do dono de uma serraria de Bom Jesus, costuma passar as férias na Serra Gaúcha, ajudando o pai e se dedicando à caça. Um dia, Danilo, ao contar para Mário a respeito de suas últimas férias, acende em Mário o desejo de conhecer o Taimbezinho. Ambos concordam em visitar a região na semana antes do início das aulas – e, na ocasião, estava se realizando mais uma Festa da Uva, de Caxias do Sul. Ambos, em um sábado, de carona com o pai de Danilo, dão uma passada em Caxias do Sul, mas não dá para ver muita coisa da Festa da Uva por conta da chuva. Na segunda-feira, percorrendo a BR-2 – hoje BR-116 – e passado por São Marcos, Vacaria e Capão do Tigre, chegam a Bom Jesus, e, depois, os dois rapazes partem para explorar a região serrana, sozinhos, no jipe. Danilo, moço de sítio, experimentado em explorações, amante do saber e fortemente religioso, como bom descendente de italianos, sempre dando informações ao deslumbrado Mário, sempre embasbacado com a paisagem. Mas a viagem esconde ainda outro objetivo de Danilo: que Mário se retrate da vidinha desregrada que ele sabe que leva por conta de más companhias.
A primeira metade do livro é praticamente um guia turístico escrito (pena que não tenha ilustrações para apoiar o leitor desavisado) e dialogado sobre a Serra Gaúcha, a Região dos Aparados e o Taimbezinho. Só na segunda metade, ali pelo capítulo 19, que ocorre o clímax da história, e o título acaba se justificando. A situação vivida por Mário e Danilo em PRISIONEIROS DO ABISMO acaba, em certo momento, replicando a vivida pelo personagem Pedro Uliana em O Prisioneiro da Montanha.
De volta ao enredo. Danilo e Mário percorrem a fronteira do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Visitam uma serraria e presenciam uma derrubada de pinheiros; visitam uma gruta com ossadas de índios; passam pelo litoral, entre Araranguá, na Zona Carbonífera de Santa Catarina, e Torres, no RS – e aproveitando o ensejo para visitar as Furnas do Sombrio, em Sombrio, SC; e, depois, percorrem a Serra do Pinto em direção a Cambará do Sul e ao Taimbezinho. Um dos episódios pitorescos da viagem ocorre quando o jipe fica com defeito e para na estrada, sendo socorrido por um caminhoneiro; bastou Danilo fazer uma oração para que o jipe voltasse a funcionar, e se evitasse que ele fosse para a oficina! A fé e o otimismo de Danilo serão os grandes sustentáculos, para o episódio que virá a seguir.
Chegando no Taimbezinho, os dois amigos resolvem explorar o local, e descem pelo abismo. No entanto, ocorre um imprevisto: uma forte chuva provoca uma forte enxurrada no meio do caminho percorrido pelos rapazes, mas, felizmente, ambos conseguem abrigo entre as pedras. No entanto, o alívio logo se transforma em pesadelo – ao menos para Mário. A água demora a baixar, impossibilitando a saída do local. Resta a ambos, até ficar tudo favorável para a saída do vale, esperar. Entretanto, leva cerca de cinco dias até que possam tentar sair do vale. Enquanto isso, precisam inicialmente se arranjar no abrigo improvisado. Depois de acabarem com as provisões de seu farnel, Danilo aproveita a calma das águas de um poço para pescar, com bons resultados. Mais tarde, um boi acaba caindo no precipício, bem no local onde os rapazes estão. Felizmente, sua carne e couro ficaram aproveitáveis apesar da queda nas pedras que praticamente o fez em pedaços.
Enquanto isso, Mário e Danilo conversam, discutem, brigam até. Mas Danilo, que em momento algum perdeu a fé nem o otimismo, consegue o que queria: que Mário aproveitasse a situação semi-kafkiana para fazer um exame de consciência sobre sua vida até ali – e tomasse a resolução de mudar seu modo de viver para uma vida mais regrada e santificada. Tudo depois de constatar que a fé de Danilo estava praticamente operando milagres naquele local. Nem mesmo a queda do boi no local deixa dúvidas. E, quando tudo parece favorável, é o momento para subir e sair dali...
E, antes do retorno para Porto Alegre, a viagem ainda prossegue por Canela e Gramado, cidades da Serra Gaúcha.
Bem. O livro cumpre o papel proposto por Fidélis Barbosa: é um guia turístico. Descreve em minúcias os atrativos da Serra Gaúcha e de Santa Catarina, com informações sobre a fauna, a flora, a geologia, a história... e alguns causos humorísticos dispersos na narrativa. O conhecimento de Fidélis Barbosa de sua região é um ponto forte, preocupando-se tanto com o público leitor do Rio Grande do Sul como o de outras regiões do Brasil.
O problema reside, mesmo, nos diálogos entre os personagens, que acabam soando artificiais. Embora a personalidade e as motivações dos personagens sejam construídos através de suas ações na narrativa, Danilo e Mário não são exatamente tipos cativantes, daqueles que a gente considera a ponto de parecerem reais. O argumento e a construção da história cumprem meramente o papel de apresentar o cenário. A narrativa corre preguiçosamente, sem muita pressa de chegar logo à parte emocionante, em um tom de texto escolar. A história só começa a ficar mais interessante por volta do capítulo 19, com a descida dos personagens no Taimbezinho. Até mesmo algumas informações sobre técnicas de como sobreviver no mato, já utilizadas no já citado Prisioneiro da Montanha estão presentes. A diferença fica mesmo no deslocamento temporal – enquanto PRISIONEIROS DO ABISMO se passa em 1961, Prisioneiro da Montanha se passa no período entre 1902 e 1919.
Mesmo o argumento moralizante proposto por Barbosa não é muito convincente. Mas é preciso compreender, ele foi padre – e, na época em que o romance foi escrito, o conceito de moralidade era diferente do de hoje. Era mais fácil pregar aos jovens sentimentos de religiosidade, de ética e de respeito à autoridade. O sentimento de conservação ambiental também era outro – Fidélis Barbosa chega, em certo ponto, a propor, indiretamente, a comercialização da lama medicinal presente nas Furnas do Sombrio! Questionável, não?
Além do mais, o romance está praticamente datado. Ao menos, sua leitura descreve sua época, quando as estradas de acesso aos locais descritos ainda era de pedra, e o sentimento de conservação ambiental não era tão forte – assim como o progresso. As coisas mudaram muito desde 1962. Mas o Taimbezinho ainda pode ser visitado. Só tomem cuidado com os paredões de pedra!
O livro tem prefácio de Mário Gardelin. E talvez merecesse, segundo as palavras do escritor Mansueto Bernardi (contemporâneo de Fidélis Barbosa), uma adaptação para o cinema, ou para a TV. Já faz uma boa propaganda da Serra Gaúcha. Se deu certo com a minissérie A Casa das Sete Mulheres, por que não com PRISIONEIROS DO ABISMO?

Este texto é uma versão revista, e com leves alterações, da resenha publicada anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem o ensejo e visitem.
E visitem também a Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges. Todos os títulos que aparecem neste blog estão disponíveis em seu acervo.
Em breve, mais um livro de Fidélis Barbosa para vocês.

Até mais!

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