Olá.
Aqui
é o Rafael Grasel novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca
Pública.
Hoje,
vamos outra vez, em texto corrido, falar de livro. Vamos outra vez falar de
Fidélis Dalcin Barbosa. Vamos resgatar outra obra do escritor, professor e
ex-padre gaúcho. E, ao mesmo tempo, vamos falar de um episódio polêmico e
controverso da história do Rio Grande do Sul. Tão polêmico que poucos se dão ao
trabalho de lembrar – apesar de seus fatos já terem sido duas vezes adaptados para
o cinema.
Well.
Hoje então vamos falar de OS FANÁTICOS DE JACOBINA (OS MUCKERS), possivelmente
o livro mais curto de Frei Fidélis.
HISTÓRIA EM VERSÃO ECONÔMICA
OS
FANÁTICOS DE JACOBINA (OS MUCKERS) teve um caminho diferenciado antes de ser
lançado em livro. Começou como uma série em folhetim do jornal Correio Riograndense, de Caxias do Sul,
RS, em 1970. Nesse ano, Fidélis Barbosa havia visitado o município de Sapiranga,
RS, para escrever uma reportagem sobre o município fundado por imigrantes
alemães e conhecido como “Capital das Rosas”, e teve contato com a história da
Revolta dos Muckers (1868 – 1874), conflito provocado entre um movimento
messiânico de imigrantes alemães e o exército brasileiro. Fidélis Barbosa teve
oportunidade, inclusive, de conversar com descendentes de integrantes da seita
dos Muckers.
Empolgado,
Fidélis Barbosa começou a escrever sobre a Revolta dos Muckers em forma de
folhetim para o citado Correio
Riograndense. O trabalho contou, como fontes, com trabalhos dos
historiadores Ambrósio Schupp, Leopoldo Petry e Klaus Becker (em breve,
falaremos do trabalho destes com mais detalhes). E, em 1976, os textos foram
compilados em livro, pela editora EST (Escola Superior de Teologia São Lourenço
de Brindes), de Porto Alegre, RS, então dirigida pelo Frei Rovílio Costa. Mais
adiante, na postagem, a capa de edição posterior da mesma obra.
O
livro é possivelmente o mais curto, e o de leitura mais rápida do escritor:
seus 43 capítulos são breves, e o livro todo tem 56 páginas, sem contar capa. É
um “curso dinâmico” sobre o fato histórico em questão.
WILLKOMMEN AUF DEM HÜGEL FERRABRAZ (BEM-VINDOS
AO MORRO DO FERRABRAZ)
Bem.
A Revolta dos Muckers é o nome dado por convenção a uma série de revoltas
ocorridas no Morro do Ferrabraz, em Sapiranga, na época distrito de São
Leopoldo, e integrante da zona de imigração alemã do Vale dos Sinos. Ali,
reunia-se a seita formada por Jacobina Maurer e seu marido João Jorge Maurer.
Jacobina
Mentz, seu nome de solteira, era descendente de um colono alemão chegado ao
Brasil em 1824, fundador da primeira capela evangélica da região de Novo
Hamburgo. Desde a juventude, a moça, com suspeitas de portar algum problema mental,
sofria de desmaios e sono letárgico que chegavam a durar 12 horas. Apesar
disso, trabalhava nas lides domésticas e do campo.
Seu
marido João Maurer era natural de São Sebastião do Caí. Inicialmente marceneiro
e agricultor, quando precisou se mudar para o morro do Ferrabraz, João Maurer
começou a trabalhar como curandeiro, tendo o auxílio da esposa. Como naquele
tempo o local não dispunha de médicos, foi fácil para João Maurer fazer fama na
região.
Como
muitos dos colonos alemães da época eram analfabetos, saudosos da terra natal,
não dispunham sequer de um padre para ministrar missas e se sentiam abandonados
pelo governo brasileiro, dependendo apenas dos frutos de árduo trabalho para
sobreviver – some-se a isso, ainda, a situação pela qual o Brasil passava
durante a Guerra do Paraguai – foi ainda mais fácil para Jacobina convencê-los
de que era uma reencarnação de Jesus Cristo e de sua fama de profetiza, e,
assim, montar uma seita messiânica, que prometia uma “nova era” aos seguidores.
Jacobina ainda era semialfabetizada e interpretava a Bíblia a seu modo, mas
conseguiu convencer muitos colonos a se juntarem à seita – foi fundamental para
isso a ajuda do marido João Maurer e de João Jorge Klein, cunhado de Jacobina,
que difundiram a nova doutrina. Os seguidores de Jacobina ficaram conhecidos
como muckers, que, em alemão, significa fanático, falso santo. Todos eram de
origem alemã, entre colonos recém-chegados e descendentes de alemães nascidos
no Brasil, e era em alemão que os muckers celebravam seus cultos.
O
fato determinante para o prestígio da nova seita foi um “milagre” ocorrido em
19 de maio de 1872, dia de Pentecostes, quando Jacobina, deitada em sua cama,
aparentemente desapareceu, deixando apenas as roupas, e tornou a reaparecer,
vestida de branco. Os presentes tomaram o suposto fato como milagre, e passaram
a seguir Jacobina fervorosamente, apesar de esta passar a ditar leis estranhas
aos fieis, como determinar que os membros da seita tirassem os filhos das
escolas, parassem de frequentar as igrejas católicas e que os maridos ou
esposas muckers se divorciem dos cônjuges que se recusassem a seguir a nova
religião. Além disso, ela formou um grupo de doze apóstolos, entre conhecidos e
familiares – que muitos dizem que eram, na verdade, seus amantes.
Como
muitos seguidores de Jacobina já começaram a se retirar da seita ao se sentirem
enganados, a profetiza, sob orientação de seus seguidores, passou a ordenar a
perseguição aos “ímpios”, visando batalhas sangrentas.
A
primeira tentativa de coibir a seita dos muckers foi um abaixo-assinado
entregue ao delegado de polícia de São Leopoldo. Ela foi elaborada por Filipe
Sehn, cujo objetivo é tentar tirar o irmão, João Sehn, da seita, e pelo
professor Weiss. Pouco depois é que foram enviados homens para o morro do
Ferrabraz; inicialmente, prendem João Maurer, que foi levado para Porto Alegre;
Jacobina conseguiu ficar no Ferrabraz, sob proteção dos fiéis. Dias depois é
que Jacobina é presa, mas precisam levar a mulher, que se encontrava em um de
seus acessos de sono letárgico, com colchão e tudo – ela acorda na delegacia de
São Leopoldo. Ela também acaba conduzida para Porto Alegre. Enquanto isso, os
muckers tentam celebrar a festa de Pentecostes, mas são dispersados por policiais.
Os muckers, de muitas maneiras, criam problemas para os policiais.
Pouco
depois, o casal Maurer retorna ao Ferrabraz – eles acabam soltos por falta de
provas – e são recebidos festivamente pelos membros da seita. Sob orientação de
Jacobina, os muckers, sabedores que a polícia continuava de olho na seita,
constroem uma “fortaleza” anexa à casa dos Maurer, e adquirem muitas armas para
defesa. A polícia faz mais algumas “visitas” ao morro do Ferrabraz, e prendem
membros da seita – entre os presos, João Maurer acaba levado novamente,
enquanto Jacobina fica solta. Pouco depois, aproveitando a ausência do marido, Jacobina
se separa de João Maurer, e se “casa” com João Klein, seguindo sua própria
“lei”.
E é
nesse ponto que os muckers começam a atacar autoridades e colonos que não
abraçaram a seita. O auge da loucura foi quando os muckers começaram a
incendiar casas e a matar familiares de opositores – não escaparam nem mulheres
e nem crianças, sequer parentes. Entre as vítimas dos muckers, estavam as
famílias do ex-seguidor Martinho Kassel, primo de Cristiano Kassel, um dos
“doze apóstolos”; a família de Carlos Brenner, cujos filhos são cruelmente
assassinados antes da casa ser incendiada; nem mesmo parentes de Jacobina
ficaram ilesos. A sanha assassina dos muckers estendeu-se até a picada de Dois
Irmãos, hoje cidade.
Em
princípio, o Governo Federal não fez nada para coibir a seita, limitando-se
apenas a substituir o chefe da Polícia de São Leopoldo – apesar de os colonos
terem encaminhado ao Presidente da Província uma petição com mais de duas mil
assinaturas pedindo a expulsão dos muckers da região. Os próprios muckers
também encaminharam uma embaixada ao Imperador Pedro II pedindo proteção contra
a ação da polícia. Nenhuma das partes queixosas foi beneficiada pelas
autoridades. Só quando as coisas começaram a sair do controle é que foi
organizado um exército para conter o conflito no Ferrabraz.
Foram
necessárias três expedições militares, vindas de Porto Alegre, para dar cabo da
seita de Jacobina. A primeira, realizada entre 28 de junho e 18 de julho de
1874, resultou na destruição da fortaleza dos muckers e na morte de alguns
seguidores, mas sem conseguir prender seus líderes, que refugiaram-se em
cabanas perto de uma fonte de água. Essa primeira expedição foi chefiada pelo
coronel Genuíno Olímpio Sampaio, nordestino veterano de outras revoltas
militares, comandando, entre seus homens, diversos veteranos da Guerra do
Paraguai. Mas, em 20 de julho, o coronel Sampaio, que já estava declarando
vitória, acaba recebendo um tiro acidental de um de seus soldados, vindo a
falecer por falta de tratamento médico. E a expedição do dia seguinte,
comandada pelo coronel Augusto César da Silva, acaba malograda pelos muckers.
As sucessivas derrotas já estavam mexendo com os ânimos dos militares.
A
terceira expedição, comandada pelo capitão Francisco Clementino Santiago Dantas,
que substituiu Augusto César, tem melhor resultado: atacam o esconderijo de
Jacobina no dia 2 de agosto e conseguem dar cabo de vários líderes da seita –
entre estes, Jacobina Maurer. Tal expedição foi possível por conta da traição
do mucker Carlos Luppa, que deserta da seita e passa a auxiliar a polícia. Vários
muckers sobreviventes são presos, mas, depois, liberados, e se dispersam para
outras localidades, como Linha Pirajá, perto de Nova Petrópolis, e Terra dos
Bastos, próximo a Lajeado. Os remanescentes da seita são perseguidos nos anos
seguintes. João Maurer foi encontrado morto enforcado. E os últimos muckers
perecem em 1903.
Esses
episódios de violência e messianismo foram determinantes para que, até hoje, a
Revolta dos Muckers se tornasse um tabu entre os descendentes dos personagens
dessa história. Mas a saga de Jacobina Maurer contribuiu para atrair turistas e
historiadores para Sapiranga – até hoje, são locais de visitação: o monumento
ao Coronel Sampaio e a cruz que marca o local onde Jacobina pereceu,
integrantes do roteiro conhecido como Caminhos de Jacobina – e rendeu filmes e
romances.
A
primeira obra artística sobre o tema foi o filme Os Muckers (1978), produção teuto-brasileira dirigida pelo
brasileiro Jorge Bodanzky e pelo alemão Wolf Gauer, que contava, em seu elenco,
com vários descendentes de muckers, e com a atriz Marlize Saueressig como
Jacobina. Esse filme ganhou o troféu Kikito de Melhor Atriz do Festival de
Cinema de Gramado, RS.
Em
1990, o escritor gaúcho Luís Antônio de Assis Brasil retrata o episódio em seu
romance Videiras de Cristal; e, em
2002, o diretor brasileiro Fábio Barreto adapta o romance de Assis Brasil sob o
título A Paixão de Jacobina, com a
atriz Letícia Spiller interpretando Jacobina Maurer. Os locais que serviram de
locação para o filme também integram os Caminhos de Jacobina.
CONTROVÉRSIAS
Alguns
historiadores defendem um lado “social” do episódio do Ferrabraz. Tal como foi
com a Guerra de Canudos na Bahia, ou com a Guerra do Contestado, em Santa
Catarina e Paraná (apesar de esses eventos serem muito posteriores ao fato em
questão) a Revolta dos Muckers, na interpretação de historiadores marxistas,
teria sido uma resposta dos colonos ao descaso do governo e ao autoritarismo
das forças policiais, levando-os a se juntar em torno de líderes messiânicos,
como foi, logo, com Jacobina Maurer.
Como
bom católico, e portando se opondo a maneiras “alternativas” de louvar a Deus
que não as religiões oficiais, Fidélis Barbosa, em OS FANÁTICOS DE JACOBINA,
retrata os muckers, e principalmente Jacobina, como vilões, fanáticos e
perversos. Como não se sensibilizar, por exemplo, com as cenas dos ataques dos
muckers às casas de opositores, matando seus familiares a tiros, coronhadas ou
carbonizando as vítimas junto com as casas?
Narrando
a história em um estilo compreensível ao leitor em geral, de forma linear,
Fidélis Barbosa, conduz a história com inserções de diálogos e didatismo, sem o
uso de análise psicológica dos personagens – ou melhor, narrando a história
diretamente, sem perder muito tempo com explicações. Por isso o romance é bem
curto, e praticamente é um “curso” sobre a Revolta dos Muckers. Fidélis Barbosa
escreveu como um professor, citando à larga nomes dos envolvidos, datas e
ações. É possível, graças à diagramação do livro, praticamente saber onde
começam e terminam os capítulos publicados no Correio Vacariense, apesar de tais capítulos terem sido divididos
em subtítulos, resultando em 43 capítulos.
Mas
dá a entender que a Revolta dos Muckers foi fruto dos delírios messiânicos de
uma mulher doente. Talvez seja. Mas, como historiador que sou, pretendo, em
breve, trazer aos leitores alguns livros mais com a “segunda versão” dos fatos.
Aguardem.
Facilmente
encontrável em bibliotecas, OS FANÁTICOS DE JACOBINA reafirma o lado
historiador de Fidélis Barbosa. Não tão extenso como seus livros posteriores
onde conta histórias de cidades, mas vale uma olhada.
Esta
postagem é uma versão revista e ampliada do texto publicado anteriormente no
blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Caso
haja alguma dificuldade para encontrar algum dos livros resenhados aqui no blog,
peça orientação às bibliotecárias da Biblioteca Pública Municipal Theobaldo
Paim Borges. Mas não deixem de visitar e prestigiar o local.
Em
breve, uma nova resenha de livros aos leitores.
Até
mais!
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