Olá.
Aqui
é o Rafael Grasel novamente, em mais uma colaboração para o blog da Biblioteca
Pública.
Hoje,
o blog trará uma novidade: vamos falar de filmes. De vez em quando, iremos
trazer resenhas de filmes que tenham relação com a literatura, sejam adaptações
de obras literárias ou que tenham apenas alguma relação com temas anteriormente
tratados.
O
filme escolhido de hoje tem apenas relação com um livro anteriormente resenhado
– é um filme de fundo histórico.
Na
última postagem, resenhei um livro de Fidélis Dalcin Barbosa, Os Fanáticos de Jacobina, que tratava a
respeito da Revolta dos Muckers de Sapiranga, RS (1868 – 1874). Quando falei
desse livro, citei que haviam sido produzidos dois filmes sobre esse episódio
histórico, que por muito tempo havia sido um tabu da história do Rio Grande do
Sul.
Sim,
hoje vou falar de um desses filmes. Começo logo pelo primeiro, OS MUCKER, de
1978.
O FILME EM SI
Well.
OS MUCKER – O MASSACRE DA SEITA DO FERRABRAZ (Jakobine, na versão internacional) foi a primeira produção
cinematográfica a respeito da Revolta dos Muckers. Produção conjunta entre
Brasil e Alemanha Ocidental (lembrem-se: nos anos 1970, a Alemanha era dividida
em duas, por conta da Guerra Fria entre EUA e URSS). Com produção do Estúdio
Stopfilm, distribuição da Embrafilme. Dirigida pelo brasileiro Jorge Bodanzky e
pelo alemão Wolf Gauer (este último é o autor, também, do roteiro, enquanto
Bodanzky cuidou também da câmera).
O filme
é ambientado no Brasil, e foi gravado no estado de São Paulo (pelo que descobri
em pesquisas) em paisagens que procuram imitar as do Rio Grande do Sul, mas boa
parte dos diálogos é em hunsrückisch, um dialeto germânico comum entre os
descendentes de alemães. Há trechos de diálogos em português, mas é o alemão, o
tal hunsrückisch, que domina boa parte do filme (com legendas, claro).
Algo
que contribui substancialmente para a veracidade do drama de 105 minutos é o
fato de boa parte de seus elenco ser de descendentes de muckers, que não eram
atores profissionais. O filme foi bastante premiado em sua época: recebeu os
troféus Kikito de Melhor Atriz (para a atriz principal, Marlise Saueressig),
Melhor Direção e Melhor Cenografia (para Dorlai Schumacher) do Festival de
Cinema de Gramado, RS, em 1979, e os prêmios de Melhor Filme e Melhor Direção
do Prêmio Air France, RJ, no mesmo ano.
Para
melhor tratar a respeito do filme e de opiniões a respeito, faço uso das
palavras da jornalista Gabriela Soutello, de um artigo publicado na época em
que o diretor Wolf Gauer veio ao Brasil, em agosto de 2015. A matéria foi
extraída do site Uol Notícias – link: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2015/08/19/para-diretor-tematica-religiosa-do-filme-os-mucker-segue-atual.htm
Para diretor, temática
religiosa do filme "Os Mucker" segue atual
Gabriela Soutello
19/08/2015 – 14h45
Fundamentalismo
religioso continua presente na sociedade brasileira, afirma cineasta alemão
Wolf Gauer, que participou em São Paulo de um debate sobre o seu filme que
narra a história da seita religiosa gaúcha.
Por
volta de 1824 chegavam ao sul do Brasil os primeiros imigrantes da Alemanha, em
fuga principalmente da pobreza e movidos pela esperança de uma vida melhor.
Cinquenta anos depois, um novo grupo de alemães desembarcava na mesma região,
mas com maior dificuldade para se estabelecer: as melhores terras do Vale do
Rio do Sinos, no interior do Rio Grande do Sul, já estavam ocupadas.
O
filme Os Mucker, co-produção de 1978
do diretor alemão Wolf Gauer com o brasileiro Jorge Bodanzky, foi exibido (...)
na Cia Paidéia de Teatro, em Santo Amaro, zona sul de São Paulo. A exibição foi
seguida de um debate entre o público e Gauer.
A
obra narra a trajetória de um grupo socialmente isolado, que não usava dinheiro
em suas trocas comerciais e cujos membros não bebiam nem fumavam. No sectarismo
e no fundamentalismo religioso, eles encontraram uma resposta à necessidade de
sobreviver em condições miseráveis.
O
grupo é liderado por Jacobina Mentz, considerada pelos seguidores como uma nova
Jesus Cristo, e seu marido, João Jorge Maurer, curandeiro. Jacobina, além de um
gênio forte, tinha epilepsia, "desde os tempos antigos vista como
predestinação divina", como afirma Gauer, e não demorou a se tornar
"porta-voz e líder dos menos afortunados".
Temática
contemporânea
Acusados
de feitiçaria e rechaçados pela comunidade da região, os seguidores de Jacobina
foram exterminados pelo poder estatal. "Quem era diferente logo era
considerado bruxo, feiticeiro ou criminoso, principalmente pelas igrejas
tradicionais", comenta Gauer. "O filme tenta explicar a origem da
violência entre grupos sociais, mesmo sendo esses grupos quase homogêneos e de
caráter religioso."
Ainda
que Os Mucker se passe no século 18,
alguns aspectos abordados no filme permanecem atuais. "Jacobina recorreu ao
pensamento religioso porque não tinha outro modelo de pensar", afirma
Gauer. "Existem processos parecidos na atualidade brasileira, como o
afluxo de pessoas pobres a seitas religiosas e a autodenominadas 'igrejas', que
prometem resolver com 'milagres' os problemas dos que aderem. Há um
fundamentalismo generalizado", diz.
O
diretor explica que o filme tem falas em alemão e em português, de acordo com a
língua nativa dos que participaram da produção. "Muitos descendentes dos
Mucker, e que não eram atores profissionais, trabalharam no filme", diz
Gauer.
"Até
o surgimento do filme, a história dos Mucker era vista como uma 'mancha negra'
do Rio Grande do Sul. Depois dele, alguns atores declararam se sentir
'absolvidos' do trauma de serem descendentes de supostos criminosos",
afirma.
Sobre
a coprodução de filmes com Bodanzky - Gauer no roteiro e o brasileiro na câmera
-, que começou com filmes educativos na Alemanha, o diretor alemão afirma que
foi o interesse social que inspirou os trabalhos. "Trata-se da abordagem
de processos e conflitos dentro da sociedade que não são explicados pela mídia.
E com a prerrogativa de sempre trazer a participação da população envolvida com
a história de cada filme."
(...)
VOLTANDO ÀS MINHAS PRÓPRIAS PALAVRAS
Bueno. A matéria transcrita já disse
várias coisas a respeito de OS MUCKER: sinopse, direção, algumas curiosidades
dos bastidores, as opiniões de Wolf Gauer comparando a época atual e a da
produção do filme. Acho que nem vou me dar ao trabalho de rememorar o que foi a
Revolta dos Muckers, quem foi Jacobina Maurer, os resultados. Comparando com o
citado livro de Fidélis Barbosa, publicado alguns anos antes do filme (em forma
de folhetim para o jornal Correio
Riograndense, de Caxias do Sul, em 1970, em livro em 1976), podemos em
princípio dizer que OS MUCKER é fiel aos fatos históricos. O filme busca deixar
claro que o messianismo em torno da figura de Jacobina Maurer é uma resposta ao
abandono por parte do Poder Público da época, mas sem deixar claro quem eram os
“mocinhos” e quem eram os “vilões” da história.
Jacobina Maurer é interpretada pela
atriz Marlise Saueressig. No elenco, ainda constam os nomes dos brasileiros
Paulo César Pereio, como o Capitão da Polícia, e José Lewgoy, como o Juiz
Abílio – ambos envolvidos no conflito do lado oposto aos muckers.
Bem. Para começar, a cenografia capta
bem a paisagem do local das filmagens, passando ao espectador a ideia do
isolamento aos quais os colonos alemães se encontravam, em seu trabalho na
terra, no Morro do Ferrabraz, o matagal cercando as casas, boa parte com as
tábuas lascadas, algumas construções de alvenaria. Esse isolamento é reforçado
pelo fato de o filme não ter trilha sonora de fundo. Algumas músicas são
tocadas e/ou entoadas pelos atores, mas o filme é praticamente silencioso:
apenas os diálogos e os sons do ambiente em redor – cantos de pássaros e de
grilos. Mas algumas cópias possuem problemas na parte do som, que não está
sincronizado às falas dos atores, e mesmo os efeitos sonoros tem problemas: dá
para notar que os sons dos disparos das armas são falsos. A ideia é recriar,
sim, o ambiente do século XIX dos pontos isolados do Rio Grande do Sul. Claro
que no estado de São Paulo...
O enredo do filme se desenrola
lentamente, sem muita pressa. O recorte de tempo escolhido foi o ano final da
Revolta, 1874. Somos apresentados ao contexto da época, etc.
Quase tudo o que diz respeito aos
muckers é tratado no filme: as reuniões conduzidas por Jacobina Maurer – e
alguns de seus fiéis a tratando como encarnação de Jesus Cristo; o caráter
ambíguo da personagem – incitando o desrespeito às autoridades da época e a
perseguição aos opositores da seita, e até “deitando-se” com fiéis no campo –
bem como as opiniões ambíguas a respeito dela, gente que crê na suposta santa,
e gente que vê nela uma embusteira, sendo algumas oposições ocorrendo dentro de
famílias; as primeiras perseguições policiais aos muckers, incluindo a vez em
que Jacobina acaba conduzida de carroça para São Leopoldo, em uma de suas
crises de sono letárgico, com colchão e tudo – quando ela acorda, em frente à
Prefeitura, sob a cantoria do séquito que a acompanha, ela faz um discurso
contra as autoridades, diante do prefeito de São Leopoldo (Tito Lívio) e do
Juiz Abílio, antes de deitar de novo; a preparação, pelos muckers, de um
memorial para o Imperador do Brasil pedindo proteção à seita; o armamento dos
muckers por recomendação de Jacobina, os conflitos com a polícia, e os
consequentes ataques dos muckers às famílias de colonos opositores, pondo fogo
em residências e matando as famílias a tiros e coronhadas; o refúgio dos
muckers em um matagal; e o conflito final no morro entre os muckers e o
exército, onde Jacobina e vários seguidores acabam perecendo. Já a atuação de
João Maurer, marido de Jacobina, no início da formação da seita, é mais citado
por alto do que mostrado – o foco do filme acaba sendo Jacobina.
Em paralelo à história de Jacobina,
são contadas outras histórias. Uma delas é a do velho Pedro Hauber (Abdon
Schnorr), que, no início do filme, acaba tendo os bens apreendidos por
determinação judicial, incluindo o filho Georg (Romeu Schutz). Membro da seita
mucker, Hauber, mais tarde, é encontrado enforcado no mato – as pessoas que
encontram seu corpo creem que ele fora vítima de feitiçaria por parte de
Jacobina, que seu suicídio foi induzido.
Outra história que corre em paralelo
é a do jovem Wilhelm Golzer (Marcus Schimidt), filho do deputado Golzer (Fritz
Hill). Ele é instado pelo pai para viajar para a Alemanha fazer compras para a
colônia. Wilhelm tem uma relação amorosa com uma colona, Maria Sehn (Carla
Saueressig) – e ambos tem seus diálogos em português. Em um primeiro encontro,
quando a jovem está lavando uma galinha no rio, Maria chega a pedir que Wilhelm
a leve junto para a Alemanha. Ao longo do filme, ambos vão desenvolvendo o
relacionamento, que acaba de modo trágico. Wilhelm acaba se juntando aos
muckers, e seu casamento com Maria é celebrado por Jacobina; ambos, no entanto,
acabam perecendo durante um ataque, não se sabe se de muckers ou de opositores
dos muckers.
Vários outros personagens são
creditados na história, mas não é fácil identifica-los, pois muitas vezes seus
nomes nem são ditos ao longo do filme.
Bem. OS MUCKER não é um filme fácil
de assistir – tem pretensões filosóficas demais, e por isso não consegue
atingir o grande público. É um filme brasileiro “de arte”, daqueles que nem os
brasileiros natos tem paciência para assistir – e que precisa ser assistido
mais de uma vez para ser integralmente compreendido. Por isso não é fácil nem
para eu fazer esta resenha. Talvez sejamos nós, espectadores, que nos
acostumamos mal ao que o cinema contemporâneo nos trouxe. Não tenho notícias se
o filme está disponível em DVD, mas, até o momento em que escrevo, ele está
disponível, na íntegra, no YouTube (link: https://www.youtube.com/watch?v=W54QRKsnJN8). A quem quiser se
arriscar, fica a recomendação.
Para breve, hei de trazer a vocês,
continuando a falar a respeito da Revolta dos Muckers, resenhas do livro Videiras de Cristal, de Luís Antônio de
Assis Brasil, e de seu produto derivado, o filme A Paixão de Jacobina. A Revolta dos Muckers, por si mesma, não é um
tema histórico fácil. O que seria realmente: um mero conflito conduzido por um
bando de fanáticos, ou um movimento messiânico surgido como resposta ao descaso
das autoridades? Decidam vocês.
Esta postagem é uma versão revista e
alterada do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br). Aproveitem e
conheçam.
E não se esqueçam de ler livros de
vez em quando: os livros ainda são a melhor fonte histórica disponível, já que
o cinema não é 100% comprometido com a realidade.
Até mais!
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