segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Texto: O NEGRINHO DO PASTOREIO

Olá.
Aqui é o Rafael novamente.
No dia 31 de outubro, alguns setores da cultura brasileira comemoram o Dia do Saci, como uma forma de promoção da cultura e do folclore nacionais e como forma de resistência à importação do Halloween norte-americano, altamente promovido pela mídia.
Como contribuição para o Dia do Saci, trago hoje um texto: a versão de um escritor gaúcho para uma das mais tradicionais histórias folclóricas do Rio Grande do Sul. Acompanha vocabulário e duas ilustrações feitas por mim. Também pode ser utilizado por professores para as aulas de português e leitura.

O NEGRINHO DO PASTOREIO

Versão: Fidélis Dalcin Barbosa
Baseada na versão original de Simões Lopes Neto

            O minuano – vento gelado que sopra dos Andes – varria inclemente os pampas sem fim do Rio Grande do Sul. Medonho, aquele inverno! Feias chuvaradas encharcando os campos. Nevadas e geadas cobrindo as coxilhas de branco qual imenso lençol...
            Domingo de sol. Domingo bonito mas frio demais para uma carreira. Um estancieiro, muito rico e muito mau, ia correr com um vizinho. O cavalo baio do primeiro tinha fama tanto como o cavalo mouro do adversário.
            A parada era de mil onças de ouro. Deveriam ser distribuídas entre os pobres. Mas o estancieiro mau não concordou. Se ele ganhasse, o dinheiro seria todo dele, somente dele. Nunca ninguém viu um fazendeiro tão pão-duro como aquele.
            Por causa de sua maldade e da sua avareza, ninguém gostava dele. Vivia quase sozinho, o miserável. Na sua casa, moravam com ele apenas um filho, impertinente como o pai, e um negrinho. Um negrinho muito bom, bonito lustroso. Não tinha nome, não tinha pai, não tinha mãe e nem padrinho, o coitado. Por isso, Nossa senhora era a sua madrinha.
            O Negrinho cuidava dos cavalos do estancieiro cauíla e era ele que faria de jóquei da carreira. Se porventura o baio perdesse, ninguém pode imaginar o que o malvado do estancieiro faria daquele pobre escravo. E não é que o estancieiro mau perdeu mesmo?
            - Valha-me a Virgem madrinha Nossa Senhora! – gemeu o Negrinho.
            É verdade, os pobres se alegraram porque o ganhador distribuiu logo todo o valor das mil onças. Mas o Negrinho, nem queiram saber.
            O estancieiro voltou para casa com a alma em pedaços. Apeou do cavalo. Mandou amarrar o Negrinho a um palanque e deu-lhe uma tremenda surra de relho.
            De madrugada saiu com o Negrinho pelo campo. Parou no alto de uma coxilha e falou:
            - Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste. Trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos... O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
            Chorando, lá ficou o coitadinho dia e noite, passando fome, passando frio. Enfim, enfraquecido e cansado, caiu com a soga do baio enleada no pulso. Deitou-se encostando a cabeça a um cupim.
            De noite, vieram as corujas. Voaram em roda, paradas no ar, sem mover as asas, os olhos reluzentes, amarelos, olhando para o Negrinho.
            Ele teve medo. Rezou à sua madrinha, Nossa Senhora, e adormeceu.
            Ia alta a noite, quando chegou o guaraxaim. Farejou o Negrinho. Depois roeu a guasca da soga, soltando o baio, que fugiu a galope, e toda a tropilha com ele, escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas canhadas.
            Com o tropel, o negrinho acordou. O guaraxaim fugiu, esganiçando. Os galos cantavam, longe.
            De manhã, a cerração encobria os campos e o Negrinho não enxergava o pastoreio. Chorou, pensando no castigo que iria levar.
            O filho do estancieiro, aquele menino mau, foi lá e voltou logo a contar ao pai que os cavalos não estavam...
            Então, o Negrinho foi outra vez amarrado pelos pulsos ao palanque, tomando tremenda surra de relho.
            Quando anoiteceu, o estancieiro ordenou que o Negrinho fosse campear a tropilha.
            Rengueando e gemendo, o Negrinho saiu. Rezou à sua madrinha, Nossa Senhora. Foi ao oratório da casa. Tomou o toco de vela aceso em frente da imagem e andou pelo campo.
            Foi andando, andando, pelas coxilhas e canhadas, pela beira dos lagões, paradeiros e restingas. E em toda a parte a vela ia pingando cera no chão. E de cada pingo nascia uma luz. Nasceu tanta luz, tanta luz, que clareava tudo.
            O gado ficou deitado. Os touros não escarvaram e as manadas xucras não dispararam. E os cavalos, vendo o Negrinho, relincharam todos juntos, contentes.
            O Negrinho montou no baio e tocou a tropilha por diante, até o alto da coxilha. Deitou-se e no mesmo instante se apagaram todas as luzes. Dormiu, sonhando com a Virgem, sua madrinha.
            E não apareceram as corujas, nem o guaraxaim. De manhã, o menino mau, o filho do estancieiro, foi e enxotou os cavalos, que dispararam campo afora, desguaritando-se nas canhadas.
            O tropel acordou o Negrinho. E o menino mau foi dizer ao pai que os cavalos não estavam lá...

* * *

            Aí o estancieiro mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos ao palanque e deu-lhe tremenda surra de relho. Deu-lhe tanto, recortando as carnes, o sangue vivo escorrendo do corpo...
            O Negrinho invocou sua madrinha, Nossa Senhora. Soltou um suspiro fundo e triste, parecendo morrer...
            O estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho numa panela de formigueiro. Depois assanhou bem as formigas.
            Quando as formigas principiaram a trincar-lhe o corpo, o estancieiro foi embora sem olhar para trás.
            Naquela noite, o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo mil vezes, que tinha mil filhos, mil negrinhos, mil cavalos baios e mil onças de ouro... e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno...
            Depois houve três dias de cerração forte, e três noites o estancieiro teve o mesmo sonho.

* * *

            A peonada correu o campo todo, mas ninguém viu a tropilha e nem o rastro.
            O estancieiro foi ao formigueiro. Viu lá o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, são e salvo, a sacudir as formigas do corpo. Ao lado, o cavalo baio e junto a tropilha dos trinta tordilhos, e, em frente, fazendo guarda ao pobrezinho, viu a Virgem Nossa Senhora, sua madrinha. Quando viu aquilo, o senhor caiu de joelhos diante do escravo.
            E o Negrinho, sarado e risonho, montou o baio em pelo e sem rédeas, chupou o beio e tocou a tropilha a galope...
            Na mesma noite, os posteiros e andantes, que dormiam em ranchos e camas de macega, ao relento, os tropeiros e carreteiros, viram, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocados pelo Negrinho, gineteando em pelo, em um cavalo baio...
            Hoje, nos campos do Rio Grande do Sul, quem perder uma coisa, o que for, acende uma vela à madrinha do Negrinho, Nossa Senhora, e então o Negrinho do Pastoreio campeia e acha...

(Extraído de: BARBOSA, Fidélis Dalcin. O Filho do Baby Doll. Canoas: Tipografia e Editora La Salle, 1992. P. 60 – 63)

VOCABULÁRIO:
Inclemente: severo, rigoroso;
Coxilhas: morros dos pampas gaúchos, sem vegetação arbórea constante, onde prevalece a rama, o capim, a vegetação rasteira;
Carreira: pequena corrida de cavalos;
Baio: cavalo de pelo castanho-amarelado;
Mouro: cavalo preto salpicado de branco;
Onças: antiga moeda de ouro circulante no Rio Grande do Sul do século XIX;
Impertinente: Rabugento, importuno;
Cauíla: avarento;
Apeou: desmontou do cavalo;
Relho: chicote de couro cru;
Quadra: área de cerca de 132 m2;
Cancha: raia, pista de corrida;
Tordilho: cavalo de pelo negro com grandes manchas brancas;
Piquete: guarda, vigia;
Soga: corda que prende os animais a um poste;
Enleada: enrolada;
Cupim: pedaço de couro (provavelmente, retirado da corcova do boi zebu, cuja carne recebe o mesmo nome);
Guaraxaim: animal mamífero e carnívoro da família dos canídeos;
Guasca: tira de couro;
Escaramuçando: rodopiando;
Desguaritando-se: extraviando-se;
Canhadas: vales entre colinas e coxilhas;
Esganiçando: gritar com voz aguda, semelhante à de um cão;
Cerração: nevoeiro;
Campear: procurar pelos campos;
Rengueando: arrastando as pernas;
Paradeiro: local em que se para;
Restinga: monte de areia ou pedras perto de locais com água;
Escarvar: cavar o solo superficialmente, com a pata;
Xucras: que não foram domadas;
Enxotou: espantou;
Panela de formigueiro: buraco de formigueiro construído no chão;
Trincar: morder, cortar a mordidas;
Peonada: grupo de peões de estância;
Posteiro: empregado rural responsável pela vigia junto à cerca da fazenda;
Macega: capim seco; tipo de erva daninha;

Relento: ao ar livre, sem proteção.

Em breve, nova contribuição para o blog da Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges.
O livro de onde o texto foi extraído se encontra no acervo da Biblioteca. Um motivo para vocês visitarem.
Aproveitem e conheçam o blog Estúdio Rafelipe: https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/.
Até mais!

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