quinta-feira, 16 de março de 2017

Seção Resenha de Cinema: CONCERTO CAMPESTRE

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em mais uma colaboração seguida para o blog da Biblioteca Pública. E hoje, com a Seção Resenha de Cinema – filmes baseados em livros.
Na última postagem, tratei do belíssimo romance Concerto Campestre, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Um libreto de ópera sul-riograndense, de leitura rápida e proveitosa.
Pois hoje, vou tratar de seu produto derivado: CONCERTO CAMPESTRE – o filme. Tão belo quanto o livro – até certo ponto.

ASPECTOS TÉCNICOS
Bem. CONCERTO CAMPESTRE, o livro, foi publicado em 1997; no ano seguinte, o cineasta Henrique de Freitas Lima, percebendo o potencial do romance para uma adaptação cinematográfica, inicia o projeto para a dita adaptação. O projeto correu de 1998 a 2003, e CONCERTO CAMPESTRE, o filme, chega aos cinemas em 2005. Duração de 100 minutos. Com direção de Henrique de Freitas Lima, com assistência de Nestor Monastério. O roteiro da adaptação é de José Mandel Fernandez, Pedro Zimmermann e Tabajara Ruas, com produção da Empresa Cinematográfica Pampeana.
CONCERTO CAMPESTRE é a segunda adaptação de um romance de Luiz Antonio de Assis Brasil para o cinema – a primeira foi A Paixão de Jacobina, de 2002, criticada adaptação de Fábio Barreto do romance Videiras de Cristal (1990). Vamos lembrar que Assis Brasil já foi vertido cinco vezes para o cinema: além de Videiras de Cristal e Concerto Campestre, tivemos as adaptações de Um Quarto de Légua em Quadro (1976), sob o nome Diário de Um Novo Mundo (direção de Paulo Nascimento, 2005); Manhã Transfigurada (1982) rendeu um filme homônimo (dirigido por Sérgio de Assis Brasil, 2008); e Ensaios Íntimos e Imperfeitos (2008) é adaptado para uma série de mini documentários dirigidos por Douglas Machado, em 2016, com atuação do próprio Assis Brasil. Esses documentários podem ser assistidos no website do autor.

VOLTANDO AO FILME...
CONCERTO CAMPESTRE tem, a seu favor: a boa reconstituição histórica (o filme se passa no ano de 1860, no contexto da era das charqueadas no Rio Grande do Sul), a estonteante cenografia e a enorme fidelidade ao romance. Freitas Lima e seus cúmplices tomaram apenas algumas liberdades e fizeram algumas mudanças em detalhes do enredo, mas a história do livro, em si, não apresenta grandes mudanças – os fatos principais da história, do começo ao fim, foram mantidos. Alguns acréscimos, de fatos e personagens novos, enriquecem o enredo.
Uma das preocupações de Freitas Lima e equipe foi manter o principal motor da trama, a música. As músicas de fundo se compõem de peças conhecidas e/ou pouco conhecidas de música clássica, interpretadas pela orquestra regida por Jean Potiguara; e, assim, o filme transmite bem a proposta de retratar a época em que se passa. Outra preocupação da equipe do filme foi expressar em imagens o tom bucólico do romance, passado quase todo em uma fazenda do interior do Rio Grande do Sul (então chamado Província de São Pedro). Isso fica explícito logo na cena de abertura, com a sequência mostrando o trabalho numa charqueada – vaqueiros manejando o gado nos campos e nos cercados, carneando bois, e escravos (na época, 1860, ainda imperava a escravidão nas atividades produtivas brasileiras) tratando a carne, colocando-a para secar ao sol, livrando-se dos restos dos bois, e o sangue das reses correndo através de canaletas até um poço próximo.
A charqueada pertence ao rude Major Eleutério de Fontes (Antonio Abujamra). Um dia, ele escuta, durante um passeio pela propriedade, dois índios missioneiros e nômades tocando música sob uma árvore; o Major gosta do que ouve, e contrata os índios para sua fazenda, para tocar para ele. O Major reside com sua família na fazenda charqueadora: entre os membros, a severa esposa, Dona Brígida (Araci Esteves, que, entre outros trabalhos, participou de outros dois filmes ambientados no Rio Grande do Sul, Anahy de las Misiones [direção de Sérgio Silva, 1997] e Netto Perde Sua Alma [direção de Tabajara Ruas e Beto Souza, 2001]), que acha o gosto do Major pela música uma perda de tempo, e a filha, Clara Victoria (Samara Felippo), petulante e com arroubos de rebeldia.
A notícia se espalha, e logo outros músicos chegam para trabalhar na estância, em boa parte vagabundos sem ter para onde ir. O Major confidencia com o Vigário da Vila de São Vicente (Miguel Ramos) a possibilidade de montar uma orquestra; e o Vigário recomenda o aventureiro Miguel, vulgo Maestro (Leonardo Vieira) para organizar os músicos em uma orquestra decente.
O sedutor Maestro aceita a incumbência da organização da orquestra, mas logo vê que as coisas não são tão simples como a princípio imaginava. O Major recomenda ao Maestro “severidade e virtude”, traduzidos como “trabalho e disciplina”. O estancieiro manda buscar, inclusive, instrumentos para a organização da orquestra, batizada de Orquestra Santa Cecília, por sugestão do Vigário.
O Maestro trabalha com afinco e alguma severidade para organizar o grupo de músicos de talento mediano (entre os músicos está o ator e violinista Hique Gomes, do espetáculo humorístico Tangos e Tragédias, inclusive protagonizando uma cena cômica!). Enquanto isso, seus passos são observados tanto pelo Major quanto pela mocinha Clara Victoria, que se interessa pela figura do mulato. Mas, este, a princípio, vive às turras com a moça – em uma cena, implica com Clara Victoria quando ela resolve arear panelas, junto com as criadas, perto do galpão onde os músicos ensaiam.
O Maestro, enquanto escreve pautas e dedilha seu bandolim nas horas de folga, e enquanto ensaia com a orquestra durante horas, observa o dia-a-dia da charqueada. Vê que, apesar de demonstrar um pendor para a modernidade com a sua orquestra, o Major mantém códigos morais conservadores para com as pessoas que o cercam: é severo com os escravos e familiares. Em uma cena, o Maestro usa como exemplo de castigo por indisciplina, aos músicos, um escravo que foi morto por empregados da fazenda durante uma tentativa de fuga do cativeiro. Em outra, o Major pune, amarrando ao tronco e dando-lhes chibatadas, um escravo rebelde, João Congo (Sirmar Antunes). Dona Brígida, por sua vez, vê na orquestra um sinal de loucura do marido, enquanto se preocupa com um bom casamento para Clara Victoria – tenta empurrar a filha para se casar com Silvestre Pimentel (Alexandre Paternost, que esteve no elenco de A Paixão de Jacobina como João Maurer, o marido da protagonista), o herdeiro de uma estância vizinha. Entretanto, a moça, embora obedeça a mãe, demonstra sinais de rebeldia, com suas respostas petulantes e não correspondendo à afeição do bonito, porém tedioso, Silvestre. Fica evidente, inclusive, que o Major e Dona Brígida não se dão bem um com o outro – eles partilham apenas dos códigos morais conservadores e algo tacanhos. Dona Brígida acaba ganhando ares de vilania.
A orquestra, já ensaiando na capela da fazenda, só começa a ir para a frente com a entrada do erudito Antônio de Lima, o Rossini (Roberto Birindelli), que se torna grande amigo e confidente do Maestro.
Mas não sem algum conflito: o Maestro tem um desentendimento com o Major porque resolve convocar o escravo João Congo para tocar os tambores, depois de presenciá-lo, na senzala, batucando durante o velório ao modo africano do escravo morto. A contragosto, o Major concorda em colocar o rebelde na orquestra. E, dentro de breve, a Orquestra Santa Cecília consegue encontrar a harmonia.
O Major convoca pessoas dos arredores para assistir a primeira apresentação da orquestra, que se torna um sucesso. E, logo, a Orquestra Santa Cecília sai em turnê pela Província. O Major até constrói um palco ao ar livre em um terreno da estância para futuras apresentações da Orquestra anta Cecília.
Enquanto isso, começa a se desenvolver a relação amorosa entre Clara Victoria e o Maestro. Aos poucos, o mulato se apaixona pela mocinha – o Maestro, a pedido da moça, ensina-a a ler e escrever. E daí, desenvolve-se o romance. Clara Victoria engravida do músico, e consegue esconder o fato o quanto pode, enquanto continua obrigada a se encontrar com Silvestre Pimentel, que está, sim, interessado na mocinha. Apenas Rossini, comparando a situação a uma ópera, sabe do romance proibido. Mas, logo, o Vigário acaba descobrindo, mediante confissão da mocinha, e tenta, nesse ínterim, adiantar o casamento entre Clara Victoria e Silvestre Pimentel, o que desperta desconfiança por parte do Major.
Entretanto, logo que os pais descobrem que a filha engravida, tudo se encaminha para a tragédia: Dona Brígida e o Major acreditam que o responsável pela gravidez foi Silvestre Pimentel, e o estancieiro tenta matar o rapaz a tiros, conseguindo apenas, entretanto, aleijá-lo. Clara Victoria acaba expulsa de casa, levada a viver em uma casa abandonada na beira de um arroio, dentro de uma mata, tendo apenas o capataz, Salvador (Pedro Machado) e a criada Sinhá Gonçalves (Naiara Harry) para se preocupar com seu destino. Na casa, Clara Victoria tem sua filha, que é levada para ser amamentada por uma mulher da vila.
O Major, que ainda proíbe que se fale da filha em casa, ainda despede a Orquestra Santa Cecília. O Maestro sofre muito, mesmo consolado por Rossini, e ainda é repreendido pelo Vigário. E o Major, sem sua orquestra, começa a enlouquecer, sempre indo ao palco construído, ouvindo orquestras imaginárias. Dona Brígida também começa a surtar com a loucura que toma conta de seu lar. Aí, a Orquestra Santa Cecília resolve retornar para a estância – a ideia do maestro é confrontar o Major e tentar convencê-lo a reconsiderar o castigo dado a Clara Victoria. Aí, um fato fantástico ocorre para o desfecho da trama, enquanto Guará (Lori Nelson), empregado de Silvestre Pimentel, se encaminha para a estância para vingar o sofrimento do patrão...
Talvez a parte mais fraca de todo o filme seja a sequência final – a cena da tempestade que cai sobre a fazenda, e do pé-de-vento que cai sobre o poço de sangue bovino, fazendo chover sangue sobre as pessoas que estão assistindo a apresentação final da orquestra. A tempestade, produzida de maneira digital, não ficou convincente, apesar dos esforços da equipe de efeitos especiais, coordenada por Paulo Crespo e Hugo Werle.
Mas o restante do filme vale a assistida. Houve esmero na reconstituição histórica. O enredo acabou enriquecido com os detalhes acrescentados em relação ao livro – por exemplo: o Maestro, no livro, não tem seu nome verdadeiro revelado: é só no filme que ele se chama Miguel. E o personagem João Congo não existe no livro – sua inclusão no roteiro foi uma boa aquisição, aliás, no livro, Assis Brasil não inclui escravos entre os personagens centrais. O contexto pelo qual o Maestro e Rossini se conhecem também é diferente entre o livro e o filme – o Maestro encontra Rossini durante uma viagem para Porto Alegre, no livro, enquanto que, no filme, Rossini se apresenta na estância, e aparece durante o primeiro ensaio da orquestra na capela. Do personagem Vigário, foi retirada dele sua característica de consultar constantemente o termômetro, mantendo seu caráter conservador. E nem Guará existe no livro – ele, no filme, dá um fim diferente do constante no livro a Silvestre Pimentel e ao Major... Oh: a tapera do boqueirão, para onde Clara Victoria é levada, é apresentada no início do livro como um local mal-assombrado, de onde escravos do Major vão colher uvas muito apreciadas; tal característica, a das “uvas do fantasma”, é retirada do roteiro do filme, e a tapera é apresentada bem depois. Ah: a turnê da Orquestra Santa Cecília pela província, se bem me lembro, também não consta no livro.
Mas, no mais, o filme é bem fiel ao livro. Mantém toda a estrutura de sua história, sem tirar demais, sem acrescentar demais. E as interpretações dos personagens são excelentes. O resultado ficou bem melhor que A Paixão de Jacobina, que pouco trouxe do romance original. Ressalta bem o bucolismo proposto do Assis Brasil, e é excelente para exibição em escolas, como retrato de uma época – seus 100 minutos passam voando. Algumas peças de música clássica que fazem parte da trilha sonora são reconhecíveis, principalmente para quem cresceu apreciando esse tipo de música através dos desenhos animados.
Ainda que o cinema nacional seja algo para se ver com reservas, CONCERTO CAMPESTRE vale uma sessão. Com os típicos elementos de uma novela. E já que temos atores globais no elenco, isso fica evidente.
Ah: o filme completo já pode ser encontrado no YouTube, até o momento em que escrevo (assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=X-dUBEMCS9k), embora seja fácil acha-lo em DVD nas locadoras. Não duvido que também já esteja disponível nos sites de streaming na internet.

Este texto é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Assistam ao filme, mas também não deixem de ler o livro! Este também está disponível na Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges!
Em breve, nova resenha. Tanto de livro como de filme.

Até mais!

quarta-feira, 15 de março de 2017

Seção Resenha de Livros: CONCERTO CAMPESTRE

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública. Faz tempo que não passo aos leitores outra resenha de livros, então, vamos dar uma movimentada neste blog.
Vamos falar, hoje, de livro. De romance. De romance de fundo histórico ambientado no Rio Grande do Sul. Vamos trazer de novo aos holofotes o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, um especialista no gênero.
Vamos hoje falar de CONCERTO CAMPESTRE.

O LIVRO
CONCERTO CAMPESTRE, hoje o livro mais lembrado de Assis Brasil – muito por conta da adaptação do mesmo para cinema – foi publicado pela primeira vez em 1997, pela editora L&PM, atual editora das obras do escritor. A capa acima é da primeira edição, com ilustração do cartunista Caulos – e com essa ilustração permanece nas edições posteriores.
O romance, ao contrário dos dois outros que resenhei aqui no blog – Cães da Província e Videiras de Cristal – não se serve de fatos reais para a construção ficcional, ou melhor, só um pouco. CONCERTO CAMPESTRE se utiliza de um contexto histórico conhecido pela historiografia e de uma história lendária para a condução do enredo, além de carregar um pouco da experiência de vida do autor – o motor do enredo é a música clássica, e Luiz Antonio de Assis Brasil já havia sido músico, tendo tocado na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) como violoncelista, nos anos 1970, antes de abraçar a literatura.
Outro motor do enredo ele relata em uma nota no posfácio da obra:
“A história da moça abandonada no boqueirão me foi contada por uma amiga, a escritora Hilda Simões Lopes, e aconteceu no século passado [século XIX], nos campos de sua família. É, portanto, uma ‘história real’, o que lhe dá certa nota picante; mas aqui, como em todas as realidades, a fantasia ocupa o lugar do trivial e do desconhecido – e isso é apenas uma homenagem à Literatura. (L.A. de A.B.)” (in: Concerto Campestre – L&PM, 1997, p. 175).
CONCERTO CAMPESTRE ganhou ainda mais notoriedade após a adaptação para cinema, dirigida por Henrique de Freitas Lima em 2004. Deste falamos depois.
A narrativa de CONCERTO CAMPESTRE é conduzida fazendo uso do insólito, do inesperado, do suspense e do bucolismo (forma de poesia que valoriza a vida pastoril), conduzido suavemente como uma valsa ecoando na solidão do pampa, num enredo que envolve preconceitos, paixões, violência e termina num final surpreendente. Além disso, é um livro que se lê em uma só sentada: a primeira edição tem 176 páginas, sem contar capa, e só sete capítulos. Só o que pode assustar o leitor são os parágrafos contínuos, intermináveis, e quase sem travessões para indicar os diálogos. Fora isso, o livro de narrativa não-linear, com idas e vindas constantes de um ponto do tempo a outro, ritmo de uma ópera e revelações surpreendentes ao fim de cada capítulo, é agradável.

O ENREDO DA ÓPERA
A história de CONCERTO CAMPESTRE se passa na segunda metade do século XIX, no interior do Rio Grande do Sul, na vila de São Vicente, à beira do Rio Santa Maria. Ali, está a estância charqueadora (fazenda de criação de gado e produção de carne-seca para comércio) pertencente ao conservador e autoritário Major Antônio Eleutério Fontes, homem de passado rude que atuara na Guerra dos Farrapos. Ali, ele vive com a família, composta pela esposa, a ainda mais conservadora D. Brígida, três filhos homens, dois netos e uma filha temporã, Clara Vitória.
Apesar do conservadorismo e dos códigos morais hoje tacanhos, que ele procura preservar a todo custo, o Major Eleutério cultiva uma excentricidade, que podemos tomar como um sinal de modernidade, naquele local ermo e praticamente longe de outros sinais de civilização: uma orquestra particular, a Lira Santa Cecília.
Começou quando o Major encontrou dois índios missioneiros e andarilhos tocando seus instrumentos, e, após uma desconfiança inicial, praticamente gostou do que viu e ouviu, contratando os dois índios para trabalhar na estância, e, claro, tocar de vez em quando para ele. Naquela época, música, de acordo com a moral dos estancieiros, era coisa malvista, coisa de gente de má vida – bêbados e prostitutas – e aceitável apenas dentro das igrejas, por isso D. Brígida, principalmente, símbolo da mentalidade arcaica que se contrapõe ao sinal de modernidade do Major, desaprova a atitude inicial do marido, e o que vem depois...
A notícia de que o Major estava admitindo músicos em sua estância se espalha, e logo outros músicos procuram trabalho na estância. A coisa, no entanto, foge um pouco do controle, pois a maioria desses músicos era de andarilhos e vagabundos – e os índios foram embora, ou pela natureza nômade ou por causa do preconceito dos outros músicos – e então, por sugestão do Vigário da Paróquia de São Vicente – um padre dividido entre o conservadorismo e a modernidade, já que, apesar de se opor às relações amorosas “modernas”, costuma consultar um termômetro para avaliar o tempo – o Major resolve organizar os músicos em uma orquestra.
Para colocar ordem nos músicos da fazenda, o Vigário recomenda ao Major o musico conhecido apenas como Maestro. O mulato, nascido em Minas Gerais, teve uma vida de verdadeiras aventuras, entre empregos como músico em igrejas e no exército, e convivendo com gente “de má fama”, sempre acompanhado de seu bandolim, que ele dedilha nas horas de folga. O Maestro, pago para se dedicar exclusivamente à orquestra, e que ganhou inclusive seu próprio quarto, coloca ordem na casa: organiza os músicos em uma orquestra respeitável, com instrumentos de cordas e metais (que o próprio Major importa), inclusive trazendo músicos de Porto Alegre. Entre eles, o rabequista veterano conhecido como Rossini, por conta de seu gosto por ópera, talentoso e erudito, e que se torna o grande amigo e confidente do Maestro.
Mas o Maestro não é necessariamente um modelo de bom comportamento: apesar das recomendações do vigário e do Major, em uma noite, o mulato seduz uma cozinheira da estância. O Maestro, após ser denunciado, leva uma reprimenda do Major, que, por via das dúvidas, despede a cozinheira.
A Lira Santa Cecília logo se organiza, tocando melodias suaves e agradáveis em festas, velórios ou apenas para o deleite do Major, chamando a atenção inclusive dos amigos dele. Um deles faz questão que a Lira toque em seu velório, como um último desejo. Entre um ensaio e outro, o Maestro acaba chamando a atenção da adolescente Clara Vitória, então na flor da virgindade e da pureza, e em idade de casar – tanto que, por imposição da mãe, passa boa parte do tempo confeccionando seu enxoval, embora seu real desejo seja o de aprender a ler e escrever.
A moça se apaixona pelo Maestro, mas inicialmente o músico a rechaça; mas, pouco a pouco, o Maestro começa a corresponder à afeição da garota. E ambos começam a viver uma relação amorosa proibida e secreta. O Maestro chega a dedicar a Clara Vitória uma composição. E a garota, entre um encontro furtivo e outro no quarto do Maestro, acaba engravidando do mulato.
A gravidez ficou escondida o quanto foi possível. Enquanto isso, D. Brígida, que acha a organização da orquestra uma perda de tempo e preocupada com a posição social da família, tenta arranjar o casamento de Clara Vitória com Silvestre Pimentel, sobrinho e herdeiro do Barão de Três Rios, dono de uma estância vizinha. Vive arranjando encontros entre os dois, sem desconfiar que a filha ama outro, claro. Enquanto isso, Silvestre Pimentel vai adiando a data do casamento – nesse meio tempo, seu tio falece.
Mas não demora para que D. Brígida descubra a gravidez da filha. O primeiro a saber do assunto, mediante confissão, foi o Vigário. Felizmente, quando a gravidez de Clara Vitória vem à tona, a família imagina que o responsável foi Silvestre Pimentel, já que, em uma ocasião, os dois haviam saído sozinhos ao pomar, mas sob os olhares de uma criada. Mas, infelizmente, os inocentes acabam pagando o pato: o Major tenta matar Silvestre Pimentel, mas fracassa. Já quanto a Clara Vitória, leva bofetadas da mãe e o pai acaba a renegando, condenando-a a viver em uma casa abandonada dentro do mato. Essa casa era tida como mal-assombrada, e no local então só entravam alguns escravos para colher cachos de uvas de uma parreira próxima. O acesso à floresta é cortado e vigiado. Em outro acesso de loucura, o Major despede a Lira Santa Cecília, e o Maestro, Rossini e os outros músicos vão para Porto Alegre.
Com o passar do tempo, todos passam por uma degradação moral. O Major vai perdendo a razão, e sua estância, agora administrada pelos filhos mais velhos, passa a ser evitada por todos, inclusive pelo Vigário, depois do que o Major fez a Clara Vitória; a filha, por sua vez, começa a se acostumar com a solidão do lugar ermo, cujo contato com o mundo passa a ser através do capataz da fazenda, que lhe traz comida dia sim dia não, e da parteira – Clara Vitória tem sua filha ali na tapera, e a menina é levada para ser amamentada por uma ama da estância; e o Maestro, por sua vez, vai padecendo de saudades de sua amada, e leva uma vida indisciplinada em seu novo emprego. Está decidido a voltar para a estância e resgatar Clara Vitória.
Afinal, depois de algum tempo, ele consegue realizar seu intento: levando a Lira Santa Cecília, o Maestro retorna, e é recebido com alegria pelo Major, que solicita uma apresentação. Porém, como nenhum dos amigos do Major quer comparecer ao concerto, o homem obriga a criadagem a assistir a apresentação. E os acontecimentos que se seguem são os mais insólitos, envolvendo uma morte e uma inesperada chuva de sangue, conduzindo ao final de uma ópera... com final trágico porém allegro.
Luiz Antonio de Assis Brasil conduz uma ópera sul-riograndense, com influência das poesias bucólicas do poeta romano Virgílio e traduzindo em palavras os sentimentos de quem está preso ao campo em todos os sentidos: desde o espaço geográfico até as convicções morais. Conflito entre modernidade e conservadorismo, até mesmo na forma de amar. A narrativa, apesar da linguagem erudita, prende o leitor até o fim, depois que ele se acostuma com a forma do texto.
CONCERTO CAMPESTRE pode ser encontrado com facilidade nas bibliotecas e em algumas livrarias. Disponível também nos formatos pocket e e-book.

Esta postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Não deixem de visitar a Biblioteca Municipal Theobaldo Paim Borges! Leiam o livro, e depois assistam ao filme!
Falando nisso, na próxima postagem: CONCERTO CAMPESTRE, o filme.

Até mais!

quarta-feira, 8 de março de 2017

Três ilustrações para o Dia da Mulher

Olá.
Aqui é o Rafael novamente.
Enquanto escrevo, ainda é o Dia Internacional da Mulher - e, como forma de homenagem, só tenho para deixar, aqui, três ilustrações antigas e alusivas à data. Para serem usadas como cartão de felicitações.
Quem acessar o blog Estúdio Rafelipe hoje (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/) terá uma surpresa especial... Confiram!
Até mais!

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Seção Resenha de Livros: O FILHO DO BABY DOLL

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública!
Hoje, volto a falar da obra de Fidélis Dalcin Barbosa, escritor e ex-padre. Hoje volto ao resgate de sua obra. Hoje, volto a falar de mais um de seus livros de contos, de pequenas histórias que evocam um passado bucólico e mais acolhedor do Rio Grande do Sul.
Hoje, vou falar de O FILHO DO BABY DOLL.
O FILHO DO BABY DOLL foi publicado pela primeira vez em 1992, pela Tipografia e Editora La Salle, de Canoas, RS – as indicações da editora constam na última página; pela falta de ficha catalográfica nas páginas iniciais da obra, é possível crer que o livro foi lançado de forma independente, à custa do próprio autor. A ilustração de capa é de Elita Facchini.
O livro reúne 20 contos do autor, sendo alguns já publicados anteriormente, em outros livros. Desse conjunto, 10 contos seriam republicados na nova edição de O Primeiro Beijo, lançada no ano seguinte – se eles, claro, não haviam aparecido na edição de 1961. Aliás, na orelha do livro, consta a informação: dos 20 contos, uns são inéditos, outros reproduzidos de livros esgotados – mas sem passar por atualização ou revisão.
Bem. Quando resenhei O Primeiro Beijo, falei desses 10 primeiros contos: O Filho do Baby Doll, Respeito, O Pequeno Marginal, A Normalista, O Pinheiro, Tesouro Escondido no Campo, O Nhandu, O Negrinho do Pastoreio, O Ébrio e Arlete. A estes, no presente livro, se juntam os contos Perseguido de Mulheres, O Hoteleiro, Pescador de Coruja, Pescaria a Dinamite, Lagoa Vermelha – 110 Anos, Quinzote, Os Guadagnin, O Combate da Encruzilhada, Granjeiro Modelo e Granja Três Pinheiros.
O FILHO DO BABY DOLL, embora não deixe de lado o moralismo e a religiosidade comuns à obra do autor, desta vez investe mais em resgatar histórias mais cotidianas, de conhecidos seus ou de gente que fez a diferença em suas regiões. Várias das histórias tem caráter humorístico e evocativo do passado do interior do Rio Grande do Sul – prevalece, nesta obra, o Frei Fidélis contador de causos. Boa parte das histórias se passa na cidade de Lagoa Vermelha, RS, e região – cidade onde Frei Fidélis fixou residência na maior parte de sua carreira.
Bem. Vamos ver – e rever – os contos que compõem esse livro.
Abrindo com O Filho do Baby Doll, que dá título ao livro. O conto procura ser um tratado sobre o relacionamento ideal entre marido e esposa, através da história de uma mulher, esposa de um prefeito que, a conselho de um psicólogo, reencontra o entendimento com o marido reinvestindo no cuidado com a aparência pessoal.
Respeito foi extraído do folclore paranaense. A história de um cachorro “de unha perdida” que, em vida, operava incríveis façanhas junto a sua família; e, depois de ter um fim trágico, começou a operar milagres, como um santo. Como? Leiam para saber!
O Pequeno Marginal conta, em primeira pessoa, a história do filho de uma prostituta, nascido em Lagoa Vermelha, que vive uma vida marginal, vivenciando até sentimentos de vingança – ele tenta, várias vezes, matar um homem que lhe fizera mal – até ser recolhido à Casa do Menor Abandonado daquela cidade e, sob os cuidados do professor Idílio Biavatti (ex-aluno de Fidélis Barbosa), acaba descobrindo o caminho da redenção, do perdão, da vida honrada e do futuro melhor.
A Normalista é outra história com a presença e intervenção do Prof. Biavatti. É narrada a história de como o professor conseguiu salvar uma aluna do Colégio Rainha da Paz, de Lagoa Vermelha, que havia sido desgraçada por um rapaz, da prostituição, e ainda conseguiu reconciliá-la com o tal rapaz, formando uma família e garantindo a ela um futuro honrado.
O Pinheiro conta a história de uma enorme araucária que enfeitava a beira da BR-285, em Lagoa Vermelha, atraindo a admiração dos passantes – incluindo o autor – até ser criminosamente derrubado. Mas a finalidade da derrubada, que no fim foi útil, impede que o narrador da história reclame com o culpado.
Tesouro Escondido no Campo narra a história de um jovem pobre, empregado de uma serraria do município de Barracão, RS, que, guiado por sonhos, decide comprar um lote de terra, buscando encontrar nele um tesouro escondido; mas acaba encontrando mais do que a princípio esperava – e ao custo de um trabalho árduo e honesto.
O Nhandu é uma história humorística. O garoto Valentim – Valentim Rodegheri, o conhecido Frei Brás de Lagoa Vermelha – vivencia uma cômica experiência durante uma caçada pelos campos, decidido a pegar uma ema, a avestruz latino-americana. Porém, sem resultados positivos... Ao mesmo tempo, o leitor, além de se divertir com essa caçada, também aprende a respeito da ema.
O Negrinho do Pastoreio é a recriação de Fidélis Barbosa de uma das lendas tradicionais do Rio Grande do Sul. Porém, há uma terrível constatação: o conto, na verdade, é uma versão resumida e até copiada de conto do pelotense Simões Lopes Neto! Comparem o conto deste livro com a versão da história presente no livro Lendas do Sul...
O Ébrio trata dos males causados pelo alcoolismo. Um homem acaba levando a família à desgraça por conta do vício nas bebidas alcoólicas, até que, em um último ato desesperado, a esposa o recomenda para trabalhar em um colégio de freiras. Mas até ali, ele acaba driblando a abstinência, até que um milagre o faz, afinal, se curar.
Perseguido de Mulheres trata de um episódio da vida de um amigo de Fidélis Barbosa, Bélio Fiori, de Vila Flores, RS, quando este foi a Urucânia, MG, pedir a bênção a um padre – e, ali, é seguido quase que obsessivamente por uma moça local.
O Hoteleiro é um resumo da história de Daniel Bertelli, que foi tema de um livro anterior de Frei Fidélis (Daniel Bertelli, Hoteleiro, Porto Alegre: EST, 1987). O católico e fervoroso Bertelli iniciou suas atividades de hoteleiro em Lagoa Vermelha, mudando-se posteriormente para o Paraná; lá, na cidade onde se instalou, o hoteleiro move mundos e fundos para construir uma igreja, e para conseguir um pároco para a mesma – até que consegue convencer um ex-padre a voltar ao sacerdócio.
Arlete conta um episódio da vida do Padre Paulo – alter-ego de Fidélis Barbosa – que estrelara uma série de contos em O Primeiro Beijo. A caminho de Portugal, onde ficaria alguns anos, o Padre passa uns dias no Rio de Janeiro, e a empregada de uma livraria acaba se apaixonando por ele. Apesar de esse amor não poder ser levado adiante, a moça e o padre continuam a se corresponder à distância, até que, um dia, subitamente, Arlete não dá mais notícias. O que acontecera?
Pescador de Coruja trata das façanhas de Daniel Barreto, também de Lagoa Vermelha, exímio atirador e que conseguira, inclusive, pescar uma coruja! Causo de pescaria? Frei Fidélis garante que é verdade...
Por falar em pescaria, o conto seguinte, Pescaria a Dinamite, também trata de uma aventura de pesca inacreditável, também vivenciada por conhecidos de Frei Fidélis. Tal aventura se dá por conta de uma controversa técnica de pesca praticada por um dos personagens – mas que, no fim, o faz perder o cachorro.
Lagoa Vermelha – 110 Anos é a reprodução de um discurso do vereador José Antônio de Andrade, ex-aluno de Frei Fidélis, proferido na ocasião do aniversário de 110 anos do município, comemorados em 1991 – se não estou enganado.
Falando em Lagoa Vermelha, Quinzote resgata a história de valentia e tragédia de um dos fundadores do município, Joaquim Antônio Fernandes.
Os Guadagnin também evoca o município de Lagoa Vermelha, que já foi – e continua sendo – um importante polo de fabricantes de móveis. Que o diga a família Guadagnin, fundadora da Móveis Rodial, ainda em funcionamento. A crônica se concentra, principalmente, na história de um dos membros da família, Antônio, e de como ele conseguiu driblar uma morte trágica, na primeira metade do século XX.
O Combate da Encruzilhada também se passa na região de Lagoa Vermelha. É a tentativa de resgatar um episódio sangrento da Revolução de 1923, conflito ocasionado por conta da tentativa do governador Borges de Medeiros em se perpetuar no poder.
Granjeiro Modelo foi publicada originalmente no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, em 1964 (isso está informado no fim da crônica), e resgata tanto a história como um depoimento do empreendedor Raul Feijó, e seu modelo de gerenciamento dos empregados de sua granja. Lembra o romance Prisioneiros do Campo.
E, por fim, Granja Três Pinheiros resgata a história da empresa que já foi a maior produtora e comercializadora de cereais da região de Lagoa Vermelha – bem como a de seus proprietários, o português Adriano Botelho Machado e sua esposa, Alzira Bonotto. O conto resgata a história do esforçado Adriano, que enxerga valor no aproveitamento total dos pinheiros – incluindo suas partes “inúteis” – e como ele conheceu a esposa. Inclui uma foto – a única ilustração do miolo do livro.
Só quem conhece Lagoa Vermelha notará algo familiar nas crônicas de O FILHO DO BABY DOLL. Os outros encontrarão nas páginas deste livro o resgate de uma época que já foi, mais ensolarada, e infelizmente, superada – ficaram os sentimentos negativos. Seria o símbolo de um lado “positivo” da época do Regime Militar? Que fique claro que, ao contrário do que propagam por aí, o período 1964 – 1985 não foi homogêneo: houve gente que conseguiu viver de forma diferente do “modelo econômico”, das guerras entre “direita” e “esquerda” e da censura. A prova disso é que estamos aqui, descendentes de quem viveu naquela época.
De todo modo, fica a recomendação: O FILHO DO BABY DOLL, para quem quer tentar conhecer como se vivia no século XX.

Esta resenha é uma versão revisada e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Visitem a Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges, e conheçam o que temos disponível da obra de Fidélis Dalcin Barbosa!

Até a próxima resenha!