Sugestão de leitura que pode ser encontrada na Biblioteca Pública Municipal de Vacaria:
Todas as manhãs Rachel pega o trem das 8h04 de
Ashbury para Londres. O arrastar trepidante pelos trilhos faz parte de
sua rotina. O percurso, que ela conhece de cor, é um hipnotizante
passeio de galpões, caixas d’água, pontes e aconchegantes casas. Em
determinado trecho, o trem para no sinal vermelho. E é de lá que Rachel
observa diariamente a casa de número 15. Obcecada com seus belos
habitantes – a quem chama de Jess e Jason –, Rachel é capaz de descrever
o que imagina ser a vida perfeita do jovem casal. Até testemunhar uma
cena chocante, segundos antes de o trem dar um solavanco e seguir
viagem. Poucos dias depois, ela descobre que Jess – na verdade Megan –
está desaparecida.
Sem conseguir se manter alheia à situação, ela vai
à polícia e conta o que viu. E acaba não só participando diretamente do
desenrolar dos acontecimentos, mas também da vida de todos os
envolvidos.
Uma narrativa extremamente inteligente e repleta de
reviravoltas, A garota no trem é um thriller digno de Hitchcock a ser
compulsivamente devorado.
sábado, 10 de dezembro de 2016
terça-feira, 29 de novembro de 2016
Seção Resenha de Livros: OS HOMENS PRECÁRIOS
Olá.
Aqui
é o Rafael Grasel novamente, com mais uma colaboração para o blog da Biblioteca
Pública. Mais uma Seção Resenha de Livros.
Na
última postagem, eu falei mais detalhadamente a respeito do dramaturgo gaúcho
José Joaquim de Campos Leão – ou melhor, Jozé Joaqim de Qampos Leão Qorpo-Santo
(1829 – 1883), que só foi reconhecido como dramaturgo, de fato, após sua morte.
Para falar a respeito do criador do Teatro do Absurdo brasileiro, tomei por
base um trabalho de compilação publicado em 1969, feita pelo crítico
Guilhermino César.
Pois,
por acaso, encontrei o segundo grande trabalho de análise da obra de
Qorpo-Santo – publicado ainda no calor da hora, ou melhor, de quando a obra de
Qorpo-Santo foi redescoberta, nos anos 1960 – 1970, encenada pela primeira vez,
amplamente estudada.
Este,
certamente, é o mais completo estudo da obra do “dramaturgo”, “poeta”,
“enciclopedista”. Com vocês, OS HOMENS PRECÁRIOS, de Flávio Aguiar.
PRIMEIROS DADOS TÉCNICOS
OS
HOMENS PRECÁRIOS – INOVAÇÃO E CONVENÇÃO NA DRAMATURGIA DE QORPO-SANTO apareceu,
pela primeira vez, como uma Tese de Mestrado em Teoria Literária, defendida
pelo autor, Flávio Wolf de Aguiar (nascido em Porto Alegre, RS, em 1947), na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(USP), em 1974. No ano seguinte, 1975, o trabalho foi publicado na forma de
livro, pela extinta editora A Nação, de Porto Alegre, em co-edição com o
Instituto Estadual do Livro. Hoje, o livro se encontra esgotado, não tendo
ganhado nova edição por nenhuma outra editora – hoje o livro só pode ser
encontrado em alguma “poeirenta” biblioteca, ou em algum sebo.
O
que é uma pena, porque o livro não é apenas a mais completa dissecção, em sua
época, das peças de Qorpo-Santo; também é um modelo de análise literária –
claro, apesar de sua linguagem técnica, de crítica literária, e de trechos
pouco compreensíveis a quem não possui vivência acadêmica.
SOBRE O AUTOR
Bom:
Flávio Aguiar ainda se encontra em atividade, como professor, jornalista, escritor
e tradutor. Atualmente, mora em Berlim, na Alemanha, onde é correspondente de
publicações brasileiras, impressas ou na internet. O porto-alegrense é graduado
em Letras (1970) pela USP, detendo ainda os títulos de Mestre (1974) e Doutor
(1979) pela mesma faculdade. Sua tese de doutorado, A Comédia Nacional no Teatro de José de Alencar, também foi
publicada em livro, pela editora Ática, em 1984, e por ela ganhou o primeiro
dos quatro prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, que recebeu até hoje.
Em
1982, Aguiar cumpriu programa de Pós-Doutorado na Universidade de Montreal, no
Canadá. Foi professor convidado e conferencista em universidades do Brasil,
Uruguai, Argentina, Canadá, Alemanha, Costa do Marfim e Cuba. Foi professor de
Literatura Brasileira da USP entre 1973 e 2006, tendo orientado mais de
quarenta teses e dissertações de Mestrado e Doutorado – atualmente, é professor
assistente doutor aposentado pela mesma universidade. Foi editor de cultura do
jornal Movimento durante o período do
Regime Militar.
Casou
duas vezes. Do primeiro casamento, com Iole de Freitas Druck, teve três filhas,
duas netas e dois netos. Sua atual cônjuge é a professora Zinka Ziebell, da
Universidade Livre de Berlim.
Flávio
Aguiar tem mais de trinta livros publicados, como autor, co-autor e
organizador, entre livros de crítica literária, ficção e poesia. Também foi
colaborador em diversas antologias de literatura. Um de seus primeiros livros
foi Sol, poemas. Além de OS HOMENS
PRECÁRIOS e de A Comédia Nacional no
Teatro José de Alencar, se destacam, na obra do autor: A Palavra no Purgatório: Literatura e Cultura nos Anos 70 (Boitempo,
1998); Anita (Boitempo, 1999,
romance, vencedor do Prêmio Jabuti em 2000); Antônio Cândido: Pensamento e Militância (Humanitas / Fundação
Perseu Abramo, 1999); Colar de Vidro e
Outros Poemas (Corag / IEL, 2002, finalista do Prêmio Açorianos as
Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre); e A Bíblia Segundo Beliel: Da Criação ao Fim do Mundo – Como Tudo de Fato
Aconteceu e Vai Acontecer (Boitempo, 2012). Como organizador, foi
responsável, entre outros trabalhos, pela compilação das peças de Nelson
Rodrigues para a Editora Nova Fronteira, lançada em 2004.
RETORNO À PORTO ALEGRE SURREALISTA
Well,
voltemos agora a analisar OS HOMENS PRECÁRIOS, que apareceu ainda durante a
onda causada pela redescoberta dos textos de Qorpo-Santo. Na época, eram
conhecidos seis dos (prováveis) nove volumes da principal obra de José Joaquim
de Campos Leão Qorpo-Santo, a Ensiqlopèdia,
ou Seis Mezes de Huma Enfermidade, publicada e editada pelo próprio
Qorpo-Santo em 1877, que compilava todas as outras. Quando Guilhermino César
organizou a primeira compilação das comédias do “maníaco escritor”, em 1969, só
haviam sido localizados três volumes – os fascículos II, IV e VII. Mais ou
menos na década de 1970, foram localizados mais três – os volumes I, VIII e IX
– em poder da família Assis Brasil. Nos dias atuais, os fac-símiles desses seis
volumes se encontram em poder da Biblioteca Central da PUCRS, de Porto Alegre,
que disponibilizou a versão digitalizada desses textos na internet.
A Ensiqlopèdia era uma mistura caótica de
poemas, textos de crítica, artigos do jornal A Justiça (que Qorpo-Santo editou em Porto Alegre e Alegrete entre
1868 e 1871), pensamentos, receitas culinárias... e, claro as comédias. Do
conjunto até hoje resgatado pelo autor, se conhecem 16 comédias completas e uma
incompleta.
Até
a redescoberta das comédias de Qorpo-Santo, e de suas primeiras representações
em 1966 – que foram sucesso de público e crítica (para saber mais, consultem a
postagem anterior) – a obra do “maníaco escritor”, que em vida fora considerado
louco, teve seus bens apreendidos, e diversas pessoas de suas relações (na
visão dele) conspirando contra o então professor, jornalista, comerciante e
escritor nas horas vagas, enfim, sua obra estava em “hibernação”. Qorpo-Santo
era lembrado, até meados de 1950, apenas como uma figura pitoresca de Porto
Alegre (sabiam que, segundo a lenda, Qorpo-Santo teria sido o pioneiro das
fachadas luminosas de Porto Alegre? Ele, quando instalou a sua própria
tipografia, em 1877, teria recortado na madeira de um caixote as palavras
“Tipographia Qorpo-Santo”, instalado o caixote em cima da porta e colocado velas
acesas dentro do mesmo para que a escrita brilhasse no escuro); exemplares da Ensiqlopèdia ficaram guardadas em
coleções de bibliófilos e colecionadores de livros antigos, mais como
curiosidade que necessidade de recuperação histórica; sua obra foi esnobada
pelos membros do Movimento Modernista de 1922 – apesar de estar comprovado que
tanto seus poemas como peças teatrais foram pioneiros em diversos aspectos.
Qorpo-Santo teria, com suas peças repletas de nonsense e histeria, se adiantado
aos europeus Alfred Jarry (autor da peça Ubu-Rei),
Eugène Ionesco (de A Cantora Careca)
e Samuel Beckett (de Esperando Godot),
os “criadores” do Teatro do Absurdo na Europa.
Qorpo-Santo
foi o pioneiro em usar situações burlescas, palavras sem nexo e ações sem
sentido para criticar a sociedade de seu tempo. Motivos, claro, não lhe
faltaram. Só perdeu a primazia para os europeus porque suas peças nunca foram
encenadas em vida. No Brasil do século XIX, ainda imperavam o teatro romântico
e o teatro realista, ambos de intenções moralizantes.
Qorpo-Santo
teve sua maneira pessoal de criticar a burocracia estatal, a ineficiência do
serviço público da época do Império, as relações familiares, os motivos para o
adultério e para procurar prostitutas, as relações entre marido e mulher, a
passagem do tempo... Ainda foi o pioneiro no tratamento da homossexualidade
masculina no teatro brasileiro, ainda que em um breve diálogo e com final
infeliz (na peça A Separação dos Dois
Esposos).
Bueno.
Eis como Flávio Aguiar, na introdução do texto, justifica o título de sua tese:
“Qorpo-Santo e sua obra: sobretudo, pessoa e coisa
enigmáticas, a desvendar segredos solitários.
Fizeram-se, ambos, testemunho extremo da precariedade
congênita em que se cria arte (cultura) numa sociedade subdesenvolvida,
entregue ao disfarçado desespero da própria pobreza e à contemplação
alucinatória das ‘maravilhas’ que lhe chegam do ‘Mundo’, seja do Velho, seja do
Novo, que a si mesma ainda vê com distanciado espanto. Pensando, basicamente,
nessa precariedade, foi que chamei este trabalho de ‘Os Homens Precários’. E
tentei mostrar como Qorpo-santo, jogando com as convenções da pobreza e do
maravilhamento, conseguiu transpor para o papel a possibilidade de que se
compreenda, de novos ângulos, a nossa condição de cidadãos do precário
‘terceiro mundo’ cultural (e econômico).” (p. 15 – 16)
Em
sua dissecção das peças e das situações sem nexo que Qorpo-Santo colocou no
papel, Flávio Aguiar consegue encontrar o devido sentido, o devido propósito
das ideias do “maníaco escritor”. É claro, ele contempla quase todas as peças
de Qorpo-Santo – inclusive as que não foram incluídas na antologia de
Guilhermino César. Ah, em tempo: Guilhermino César é responsável pelo prefácio
de OS HOMENS PRECÁRIOS; e Maria Helena Martins, pelo texto de orelha.
Bão:
OS HOMENS PRECÁRIOS se divide em quatro partes, sendo as duas primeiras
divididas em capítulos – e todas abrem com um trecho de um soneto de Heloísa
Jahn, em transcrição crescente (na primeira parte, a primeira estrofe; na
segunda, a primeira e a segunda estrofes; na terceira, as três estrofes; e, no
fim, o poema completo), criando uma expectativa no leitor, que no final se
mostra frustrante – os desavisados pensarão que o poema das epígrafes é de
Qorpo-Santo, não de outro autor.
A
primeira parte, Qorpo-Santo Redevorado,
com seis capítulos, tem por ponto de
partida a redescoberta e as primeiras encenações das peças do “maníaco
escritor”, a partir de 1966. O autor aproveita para fazer as primeiras
considerações a respeito da obra de Qorpo-Santo, dando valiosas informações
adicionais sobre a Ensiqlopèdia (nos
dias de hoje, a internet não tem ajudado tanto quanto gostaríamos...)
Na
segunda parte, Qorpo-Santo e o
Redemoinho, nos dez capítulos, Flávio Aguiar disseca as peças completas de
Qorpo-Santo, buscando o devido significado nas ações dos personagens, nas falas
histéricas, nas críticas embutidas, anteriormente citadas.
Na
terceira parte de capítulo único, Qorpo-Santo
e a Engrenagem, algumas considerações a respeito do teatro da década de
1860 (que não passava por uma boa fase), as críticas a respeito (principalmente
da enxurrada de comédias francesas, de qualidade duvidosa, que ameaçavam
suplantar a produção nacional), e como as comédias de Qorpo-Santo se encaixam
nas características do teatro do século XIX – e como seriam vistas pela crítica
da época, se tivessem ganho montagem.
Na
última parte, Qorpo-Santo, Precursor de Si
Mesmo, as considerações finais, e as provas de que o “maníaco escritor” se
adiantou aos europeus com o Teatro do Absurdo.
O
livro é completo com notas e valiosos anexos: a cronologia da vida de
Qorpo-Santo; uma descrição dos seis fascículos conhecidos da Ensiqlopèdia; as encenações conhecidas
(até 1975) das peças de Qorpo-Santo (sabiam que foi feito, em 1971, um
curta-metragem baseado em uma das comédias do autor – Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte?); e referências sobre a fortuna
crítica (conjunto de estudos sobre a obra) de Qorpo-Santo.
Tudo
bem, OS HOMENS PRECÁRIOS é direcionado mais para quem é da área da literatura
brasileira. Tem trechos excessivamente técnicos, em linguagem acadêmica, e
soporífera ao leitor menos instruído. Mas o público já acostumado encontrará
uma leitura rápida (sério: ela passa voando em certos momentos), apesar das
suas 264 páginas (sem contar capa), e o escritor demonstra preocupação com o
leitor, pensando inclusive em quem não teve contato com as peças de
Qorpo-Santo. É um modelo para trabalhos literários e acadêmicos – penas que,
nos dias de hoje, seja difícil de encontrar. Também pesa o fato que, nas
prateleiras de uma biblioteca, o livro acabe passando despercebido, a menos que
o leitor já tenha encontrado uma referência a ele em outras obras. Contribui
para tanto a capa, com ilustração minimalista e pouco atraente de Cecília
Tavares Teixeira, e sem o subtítulo. Costuma ser assim com os livros de público
específico. Teria OS HOMENS PRECÁRIOS servido como referência para Luiz Antônio
de Assis Brasil escrever seu romance Cães
da Província? Acredito que sim: alguns trechos descritivos de Flávio Aguiar
sobre a vida de Qorpo-santo batem com trechos do romance.
Atualmente,
a obra de Qorpo-Santo não é fácil de encontrar, apesar dos esforços de diversos
literatos em lançar compilações das peças, ou de seus poemas. Ainda não se
encontraram os volumes restantes da Ensiqlopèdia.
Será que ainda existem exemplares intactos dos volumes III, V e VI? O tempo
– e o interesse do público – é que vão dizer. Mas, nos tempos recentes, as
pessoas parecem mais interessadas no absurdo da vida que em teatro do
absurdo... ou quaisquer outras formas de teatro.
Esta
postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente
no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Este
livro, como tantos outros resenhados aqui, se encontra disponível no acervo da
Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges. Procurem e surpreendam-se.
Em
breve, uma nova resenha de livros para os amantes do livro físico.
Até
mais!
domingo, 27 de novembro de 2016
Seção Resenha de Livros: QORPO-SANTO - AS RELAÇÕES NATURAIS E OUTRAS COMÉDIAS
Olá.
Aqui
é o Rafael Grasel mais uma vez, colaborando para o blog da Biblioteca Pública.
Na
última postagem, resenhei o livro Cães da
Província (1987), de Luiz Antônio
de Assis Brasil. O romance relacionava alguns dos acontecimentos que agitaram a
cidade de Porto Alegre, RS, na década de 1860: os crimes da Rua do Arvoredo, ou
o “caso da linguiça humana”, e a vida tormentosa e atormentada do professor, escritor,
teatrólogo e (tido como) maluco José Joaquim de Campos Leão, Qorpo-Santo.
Pois,
hoje, volto a evocar a figura do criador do teatro do absurdo no Brasil, para
vocês saberem mais a respeito dele. Com vocês, Qorpo-Santo.
UM POUCO MAIS DA VIDA DO MALUCO-BELEZA
PORTO-ALEGRENSE...
Vamos
recordar: José Joaquim de Campos Leão nasceu em Triunfo, RS, em 19 de abril de
1829. Em 1839, ele presencia o assassinato do pai, vítima de emboscada, durante
um episódio da Revolução Farroupilha; e, depois, muda-se para Porto Alegre, a
fim de estudar gramática e conseguir emprego. Inicialmente, entre 1842 e 1847, trabalha
no comércio, entre as cidades de Porto Alegre e Cachoeira; em 1848, tem de
deixar Porto Alegre para cuidar da irmã doente; e, a partir de 1850, habilita-se
ao exercício do magistério público. Em 1851, funda um grupo dramático, e, a
partir de 1852, começa a colaborar para jornais da província de São Pedro do
Rio Grande do Sul. Em 1855, deixa o magistério público e passa a lecionar em
vários colégios, a fim de amparar a mãe doente, e se casa com Inácia de Campos
Leão, com quem tem quatro filhos: Idalina Carlota, Lídia Marfisa, Plínia
Manuela e Tales José. Em 1856, depois da epidemia de cólera-morbo que assolou a
Capital da Província, José Joaquim assume a direção do Colégio São João. Em
1857, por conta de problemas de saúde, muda-se com a família para Alegrete, RS,
onde funda um colégio, adquire respeitabilidade como figura pública, escrevendo
para jornais e ocupando cargos públicos, como de delegado de polícia e
vereador.
Em
1861, retorna a Porto Alegre, seguindo carreira como professor. Mais ou menos
nesse ano, começam a se manifestar os sintomas de transtornos psíquicos,
diagnosticados como monomania – a família alegava que o transtorno se devia à
“superexcitação da atividade cerebral” e da sua compulsão de “tudo escrever” (ele
estava, naquela época, tomando notas para suas obras, que reuniam poemas, peças
de teatro, artigos jornalísticos, ditos...) Esse diagnóstico inicial foi
determinante para que ele fosse dispensado do serviço público em 1862, tivesse
seus bens interditados e administrados por um tutor (e não era pouca coisa: seu
testamento relacionava, entre outras coisas, 8 casas em seu nome, valores em
dinheiro e ações que davam 400 mil réis e uma valiosa mobília, mostrando que
Qorpo-Santo era abonado em suas atividades), e passasse por uma bateria de
exames com médicos de Porto Alegre, que divergem sobre o verdadeiro estado de
saúde mental do homem que, mais ou menos nessa época, adotou, junto a seu nome,
a alcunha de Qorpo-Santo (ele próprio explica: “Se a palavra corpo-santo foi-me infiltrada em tempo que vivi
completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma
palavra hei sido compelido para este mundo”).
José
Joaquim não aceita passivamente seus diagnósticos que praticamente o
qualificavam como louco, apesar de ter assumido algumas atitudes excêntricas,
como trancar a porta da frente de seu sobrado e utilizar uma escada para
acessar o andar superior – e dizem que, certa vez, ele havia agredido, com seu
guarda-chuva, uma mulher, em plena rua, que o chamara de louco a plenos
pulmões. José Joaquim recorre, então, ao Rio de Janeiro, internando-se no
Hospício Pedro II e sendo examinado por médicos locais, cujos diagnósticos
divergiram dos especialistas de Porto Alegre, confirmando que Qorpo-Santo
estava em pleno domínio de suas faculdades mentais. Enquanto isso, continuava
escrevendo: só em maio de 1866, Qorpo-Santo compôs 8 peças teatrais –
normalmente, no século XIX inclusive, uma peça teatral, mesmo com apenas um
ato, leva meses para ser composta. O diagnóstico final se deu em 1868 – mas a
confirmação da sanidade de Qorpo-Santo não foi suficiente para dar fim à
interdição judicial de seus bens.
Em
1868, ele fundara, em Porto Alegre, o jornal A Justiça, praticamente todo redigido por ele mesmo. O jornal, com
artigos onde ele discute, ao seu modo, diversos temas – entre eles, uma curiosa
reforma ortográfica – também circulou por Alegrete. Mas ele é obrigado a
abandonar as atividades jornalísticas em 1873, já que, mesmo com a comprovação
de sua sanidade, o estigma junto à preconceituosa sociedade porto-alegrense de
então já estava firmado. Nem colaborar com os jornais maiores de sua época era
possível. Se dizendo perseguido ideologicamente, passando por dificuldades
financeiras devido à interdição de seus bens, tendo de manter a si próprio e a
família na atividade de comerciante.
Em
1877, em Porto Alegre, ele constitui uma gráfica própria, onde viabiliza, à
própria custa, a publicação de sua obra, reunida numa coletânea conhecida como Ensiqlopédia, ou Seis Mezes de Huma
Enfermidade. Estudos apontam que a obra é composta de nove volumes – dos
quais, até hoje, só se localizaram seis.
Qorpo-Santo
morreu em 1º de maio de 1883, em Porto Alegre, vítima de tuberculose.
RECONHECIMENTO TARDIO
A
obra de Qorpo-Santo só começou a ser conhecida na década de 1950, quase 100
anos depois. Diversos fatores estiveram envolvidos, além do estigma que cercou
a figura de José Joaquim de Campos Leão: também o fato de as tiragens reduzidas
da Ensiqlopédia terem sido feitos em
papel de má qualidade contribuíram para tornar a obra extremamente rara. Em
tempos recentes, a Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS) disponibilizou na internet a versão digitalizada dos
volumes do Ensiqlopédia até hoje
localizados: os originais dos volumes 2, 4 e 7 (que passaram por meticulosa
restauração), e fotocópias dos volumes 1, 8 e 9, todos adquiridos do bibliófilo
Júlio Petersen.
O
primeiro a se debruçar sobre a obra de Qorpo-Santo foi o jornalista Aníbal
Damasceno Ferreira, na década de 1950; em parceria com o diretor teatral
Antônio Carlos de Sena, Ferreira começou publicando poemas de Qorpo-Santo no
jornal porto-alegrense O Mocho, em
1955. Após uma tentativa frustrada de encenar as peças de Qorpo-Santo no Curso
de Arte dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAD/UFRGS),
Sena estreia, em 1966, no Clube de Cultura, um espetáculo que reúne três peças
de Qorpo-Santo: As Relações Naturais, Eu
Sou Vida, Eu Não Sou Morte e Mateus e
Mateusa – exatamente cem anos depois que foram escritas. A montagem foi sucesso de público e crítica, e em 1968 viajou
para o Rio de Janeiro, para participar do Festival Nacional de Teatros de
Estudantes. A crítica da época deu a Qorpo-Santo o aval de teatrólogo
revolucionário – o crítico Yan Michalski, por exemplo, escreveu que a
redescoberta do autor “torna praticamente obsoletos todos os livros de história
da dramaturgia brasileira”. A partir daí, a obra de Qorpo-Santo passa a ser
encenada e estudada. O escritor gaúcho foi, inclusive, comparado aos teatrólogos
europeus Alfred Jarry (autor de Ubu-Rei),
Eugène Ionesco (de A Cantora Careca)
e Samuel Beckett (de Esperando Godot),
os maiores nomes do teatro do absurdo. Em verdade, Qorpo-Santo teria antecedido
Jarry, Ionesco e Beckett – acabou perdendo a primazia porque suas peças nunca
foram montadas enquanto estava vivo.
Dois
dos maiores divulgadores da obra de Qorpo-Santo foram: Flávio Aguiar, professor
aposentado de literatura da USP, que publicou, em 1975, o livro Os Homens Precários, resultado de sua
dissertação de mestrado, que analisava a obra de Qorpo-Santo, demonstrando que
ele fora, sim, precursor das vanguardas artísticas do século XX, embora ancorado
na tradição teatral brasileira do século XIX; e, antes dele, e depois de
Antônio Sena, vem o professor de literatura, poeta e pesquisador mineiro Guilhermino
César (1908 – 1993), que começou os estudos e a divulgação da obra de
Qorpo-Santo no final dos anos 1960.
Esta
postagem, aliás, baseia-se no trabalho de Guilhermino César: a base é o livro Qorpo-Santo: as Relações Naturais e Outras
Comédias, com fixação de texto, prefácio e notas do professor de literatura.
As capas de algumas edições do trabalho de César, publicadas numa parceria
entre as editoras Movimento e Co-Edições UFRGS em 1969, e encontráveis com mais
facilidade em bibliotecas, vocês podem ver ao longo desta postagem.
Outra
coisa há de ser dita antes de prosseguirmos: o trabalho da recuperação da obra
de Qorpo-Santo é apenas uma pequena fração da obra de Guilhermino César,
estudioso e poeta nascido em Eugenópolis, Minas Gerais, em 15 de maio de 1908,
e falecido em Porto Alegre em 7 de dezembro de 1993, em prol da literatura
sul-riograndense. A obra de Guilhermino César também compreende livros de
poesias, crônicas e estudos referenciais sobre a literatura do Rio Grande do
Sul. Em outra ocasião, dou mais detalhes sobre a obra de Guilhermino César –
não vamos nos estender além do planejado.
Voltando
a Qorpo-Santo: em 1987, o já citado Luiz Antônio de Assis Brasil faz de
Qorpo-Santo o principal personagem do seu já citado romance Cães da Província. O “teatrólogo” também
dá nome a uma fundação cultural em atividade na cidade de Triunfo, RS (dá para
conhecer as atividades da Fundação Cultural Qorpo-Santo através do blog https://fundacaoculturalqorpo-santo.blogspot.com.br/).
Essa e outras homenagens foram aparecendo ao longo do tempo – e, de vez em
quando, suas peças são montadas por diversos grupos de teatro brasileiros.
Também já não é difícil encontrar edições de suas peças nas livrarias, físicas
e virtuais, impressas ou no formato e-book.
ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA OBRA
Ao
todo, Qorpo-Santo escreveu dezessete peças – algumas chegaram aos nossos dias
incompletas. Todas estão no volume 4 da Ensiqlopédia.
Cada uma tem a data de composição no final do texto. E praticamente todas
foram escritas em 1866, cada uma em questão de horas, escritas com incrível
rapidez. São elas:
- De 31 de janeiro de
1866, O Hóspede Atrevido ou O Brilhante
Escondido;
- Do mês de fevereiro: A
Impossibilidade da Santificação ou A Santificação Transformada (dia 12); O Marinheiro Escritor (dia 16); e Dois Irmãos (dia 24);
- Do mês de maio: Duas Páginas em Branco (dia 5); Mateus e Mateusa (dia 12); As Relações Naturais (dia 14); Hoje Sou Um; e Amanhã Outro (dia 15); Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte (dia 16); A Separação dos Dois Esposos (dia 18); O Marido Estremoso ou O Pai Cuidadoso (dia
24); e Um Credor da Fazenda Nacional (dias
26 e 27);
- Do mês de junho: Um Assovio (dia 6); Certa Entidade em Busca de Outra e Lanterna de Fogo (ambas do dia 10); e Um Parto (dia 16);
- Sem data, e incompleta,
Uma Pitada de Rapé.
- Existe ainda uma
referência não-confirmada a respeito de uma décima-oitava comédia, Elias e Sua Loucura Bíblica, sem data.
As
peças de Qorpo-Santo não são das mais acessíveis para o público comum. Tudo por
conta de uma série de características que podem ser observadas apenas pela
leitura de As Relações Naturais e Outras
Comédias.
Uma
delas, mas que nada tem a ver com as outras, foi o estigma que cercou a obra de
Qorpo-Santo: em sua época, e até tempos recentes, ele era visto pura e
simplesmente como “um alucinado que escrevia”. Comparando com outras peças
teatrais de sua época, como as do teatrólogo Martins Pena, José de Alencar,
Machado de Assis e outros escritores que se arriscaram no teatro, Qorpo-Santo
parece ser mesmo um escritor alucinado. Talvez muitos prefiram chama-lo de “um
homem à frente de seu tempo”... Mas antes, vamos ver as tais características
que tornam suas obras “inacessíveis”.
Para
começar, no original, suas peças foram escritas com uma ortografia própria, que
destoava das regras vigentes de sua época. Em artigo de 23 de outubro de 1868,
em seu jornal A Justiça, Qorpo-Santo
defende uma reforma ortográfica que, embora visando uma simplificação da
ortografia portuguesa de sua época, previa alguns exotismos, como, por exemplo,
a eliminação do H em palavras onde não soa, a supressão das letras Y e W do
alfabeto, a troca do Ç pelo S, a eliminação do U após o G nas palavras com as
sílabas “gue” e “gui” (ex: guerra – gera), bem como a eliminação dos dígrafos
com letras dobradas (RR, SS) e, claro, o uso do Q no lugar do C em algumas
palavras – por isso, apesar do Q, o nome Qorpo-Santo se lê “corpo-santo” – para
mim, no entanto, a leitura poderia ser “kuorpo-santo”. Apenas uns poucos
escritores posteriores a José Joaquim de Campos Leão ousaram adotar uma
ortografia semelhante, cheia de exotismos – mas também não se isentaram de
críticas.
Outra
característica das peças de Qorpo-Santo está na condução das tramas: as peças,
em geral, se compõem de pequenas cenas, com troca constante de personagens e
situações que parecem não ter nada a ver umas com as outras – em várias
oportunidades, os personagens mudam de aparência e até de nome. Qorpo-Santo,
por dedução, fazia uso da escrita automática, escrevendo todas as falas e
indicações dos gestos dos autores em uma única sentada, sem se preocupar em
revisar ou reler o que escreveu, confiante em seu talento. Sua maior preocupação
não é a coerência e a concatenação das situações, de modo a colocar algum
sentido nas tramas, mas sim embutir críticas sociais – à política, às leis, à
religião, ao tratamento com as mulheres, ao comportamento social como um todo –
nas falas dos personagens.
Por
conta dessa característica, lidas assim, “por cima”, as peças de Qorpo-Santo
não possuem coerência, ou, na linguagem popular, “não tem pé nem cabeça”. Ainda
assim, as ações dos personagens, e algumas falas, garantem, quando vistas no
palco, risadas do público. E muitos críticos percebem, nesse nonsense, uma fuga
dos preceitos do teatro romântico e realista, que fazia sucesso na época.
Falando
em personagens, muitas vezes eles condizem com a personalidade de seu autor. A
começar pelos nomes a eles atribuídos: Qorpo-Santo batiza os personagens
masculinos, algumas vezes, com nomes exóticos, como Truquetruque, Inesperto,
Impertinente, Malherbe, Ruibarbo e Guindaste; em outras, utiliza o
“aportuguesamento” de nomes estrangeiros, como Robespier (Robespierre) e
Almeida Garrê (Garrett); as personagens femininas muitas vezes recebem nomes
derivados da “feminização” de nomes masculinos, como Pedra, Silvestra, Mateusa,
Luduvica, Gonçala. E, em algumas ocasiões, os personagens nem nome recebem,
sendo identificados apenas como Lindo, Linda, Menina, Rapaz.
Nem
mesmo Qorpo-Santo perde a oportunidade de se fazer personagem de suas peças! Se
é verdade que o personagem de uma obra carrega um pouco da personalidade de seu
autor, então muitos dos personagens principais de Qorpo-Santo são projeções
inteiras dele mesmo, em palavras e atos. Por exemplo: o personagem
Impertinente, de As Relações Naturais, é
praticamente o alter-ego de Qorpo-Santo; e, em Hoje Sou Um; e Amanhã Outro, ele é descrito por um dos personagens
como uma espécie de sábio com teorias revolucionárias – seu nome, no entanto, é
cifrado. Em Um Credor da Fazenda
Nacional, seu nome também aparece na fala de um personagem. Modéstia não
era a melhor qualidade de Qorpo-Santo: ele praticamente se via com um olho em
uma terra de cegos, só para usar uma expressão mais popular.
Às
vezes, Qorpo-Santo não perde a oportunidade de “puxar a orelha” de alguns conhecidos
seus – alguns personagens remetem, por exemplo, a médicos e magistrados
responsáveis por sua desgraça pessoal.
Qorpo-Santo
também gostava de falas rimadas, meio musicadas, compondo ditados e
trocadilhos. Às vezes, insere versos cantados, porém não se preocupou em tentar
elaborar uma partitura musical para as mesmas.
As
personagens parecem se comportar de forma histérica e se deixando levar por
ações ilógicas. Eles gritam, cantam, e em grande parte do tempo, brigam entre
si, se criticam e criticam as instituições de seu tempo, do governo ao
casamento – apenas em poucos momentos, eles se entendem e demonstram amor
sincero uns pelos outros. Qorpo-Santo também parece não ter pena das mulheres:
elas são as vítimas mais constantes de suas críticas e de sua histeria (seria
reflexo de seu difícil casamento com Dona Inácia, já que foi a pedido dela que
seus bens acabaram interditados – enquanto José Joaquim suspeitava de adultério?).
O
sexo (segundo a reforma ortográfica de Qorpo-Santo, ficaria “seqso”) parece ser
outra obsessão de Qorpo-Santo em suas peças. Nestas são embutidas ideias
“avançadas” sobre as relações entre homens e mulheres de sua época, como, por
exemplo, a presença de prostitutas como personagens, algo incomum para o teatro
do século XIX; ações que hoje soam como abuso sexual, como um personagem
“apalpar os peitos” de sua interlocutora, dentre outros que se bolinam;
constantes discussões sobre adultério (que não raro terminam em crimes
passionais), homens divididos entre duas mulheres, casamento, convivência sobre
o mesmo teto; porém, nada disso parece superar a peça A Separação dos Dois Esposos, onde os personagens Tatu e Tamanduá, dão
a entender, nas falas finais da peça, que são homossexuais – aliás, é o
primeiro registro literário brasileiro do homossexualismo masculino tratado com
naturalidade e sem tabus. O bizarro é que, na vida real, houve indícios que
José Joaquim Leão era um conservador empedernido, bem diferente do anárquico
Qorpo-Santo das peças. É o caso literal do Hoje
Sou Um; e Amanhã Outro...
Além
do mais, as peças de Qorpo-Santo possuem exigências técnicas que não seriam
possíveis com as limitações do teatro do século XIX, como por exemplo,
personagens que simulam perder partes do corpo no palco, personagens
contracenando com animais vivos, tirados de um saco, ou uma peça que termina
com “milhares de luzes que descem e ocupam o espaço do palco”. Os textos das
peças ainda contam com indicações opcionais para o término: ela pode terminar
harmonicamente, com todos cantando, ou em estado de caos e bagunça, a escolha é
dos atores.
O
nonsense presente no teatro de Qorpo-Santo, antes de tudo, é um reflexo do
inconformismo do autor com os costumes de sua época. Principalmente por causa
das muitas interdições e perseguições que sofreu ao longo da vida. Isso está
claro no modo como Luiz Antônio de Assis Brasil retratou o homem em Cães da Província. Teatro do absurdo é
justamente isso: o questionamento da sanidade da sociedade, através de um
incômodo e surreal espelho de sua época. Convenhamos: praticamente, pouca coisa
mudou da época de Qorpo-Santo para cá.
QORPO-SANTO SEGUNDO GUILHERMINO CÉSAR
Bem.
A edição usada como base para a postagem, da edição de As Relações Naturais e Outras Comédias, com organização, estudo
crítico e notas de Guilhermino César, e publicada pelas editoras Movimento e
Co-Edições UFRGS, é a segunda, de 1976. Na época, só haviam sido encontradas
três edições integrais da Ensiqlopédia –
os volumes 2, 4 e 7, em arquivos particulares, como o do professor Dário de
Bittencourt e o do escritor Olyntho Sanmartin.
Guilhermino
César tomou por base para a publicação nove comédias de Qorpo-Santo: As Relações Naturais; Mateus e Mateusa; Hoje
Sou Um, e Amanhã Outro; Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte; Um Credor da Fazenda
Nacional; Um Assovio; Certa Entidade em Busca de Outra; Lanterna de Fogo; e
Um Parto.
Guilhermino
César, na transcrição dos peças, tomou o cuidado de adaptá-las, onde foi
necessário, para a ortografia vigente nos anos 1970. O livro inclui um extenso
estudo crítico introdutório sobre Qorpo-Santo, onde se incluem: trechos de
poemas do homem, onde se nota que eles obedecem uma excêntrica construção
literária, com musicalidade e ritmo; uma autobiografia de Qorpo-Santo, extraída
de um dos volumes da Ensiqlopédia; transcrição
de documentos de sua época, como os autos dos exames psiquiátricos a que foi
submetido, trechos de artigos de Qorpo-Santo para jornais (incluindo o
referente à reforma ortográfica) e o testamento, com a vultosa relação de bens
deixados para a família. Daí, para as peças selecionadas.
Começando
com As Relações Naturais, em quatro
atos, uma coleção de cenas onde Qorpo-Santo discute o relacionamento mais
adequado para o homem e a mulher – as relações ditas “naturais”, segundo o
autor, seriam baseadas unicamente no sexo, sem o envolvimento amoroso. O autor
não estava nem aí para o casamento – nessa peça, aparecem prostitutas como
personagens, e insinuações de incesto.
A
peça seguinte, Mateus e Mateusa, em
um ato e em um alegre tom farsesco, parece ser a peça que mais faz sentido.
Trata do relacionamento cheio de discussões violentas de um casal de velhos,
com a intervenção de suas jovens, carinhosas e algo interesseiras três filhas.
Hoje Sou Um; e Amanhã Outro, em
três atos, se apresenta como um caso de dupla personalidade, mas demanda
atenção na leitura de seu roteiro. A peça se passa em uma corte, onde um rei
precisa lidar com um conflito armado que ameaça seu reino. Nessa peça, em um
momento, o ministro real descreve a vida e o pensamento de um certo sábio
gaúcho – um tal de Qorpo-Santo – autor de uma revolucionária teoria sobre a transmigração
das almas.
Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte, em
dois atos, trata de uma história de amor que termina em tragédia: dois homens,
disputando uma mesma mulher. O grande forte dessa peça é o elemento-surpresa:
um dos homens é o verdadeiro marido da mulher, e o outro a roubou. Com quem ela
deve ficar? Qual dos dois deve pagar por seu “crime” passional?
Um Credor da Fazenda Nacional, em
dois atos, é uma peça mais
burocrática, apesar de rápida – trata de um caso de cobrança. Nela estão
embutidas algumas críticas à situação da política de seu tempo e à burocracia
estatal.
Um Assovio, em
três atos e um quadro, e ambientada em Paris, França, trata da complicada
relação entre um patrão e seu empregado, numa crítica aos janotas, aos rapazes
ricos e ociosos de sua época.
Certa Entidade em Busca de Outra, em
dois atos, trata das maluquices de um velho homem e seu relacionamento com uma
donzela. A peça conta, inclusive, com a “participação especial” de Satanás, mas
que resolve não ficar muito tempo para ver o que acontece. A peça também contém
insinuações de abuso sexual (aos olhos de hoje).
Lanterna de Fogo, em
três atos e dois quadros, é a peça mais longa e elaborada do “teatrólogo”.
Trata da vida, do envelhecimento precoce e da morte de um homem, Robespier,
que, entre relacionamentos difíceis com diversas pessoas, passa sua vida à
procura de uma herança deixada por seu pai.
Por
fim, Um Parto, em três atos, começa
com um monólogo, com uma degustação de comidinhas acompanhada de reflexões
“filosóficas”, e prossegue com quatro estudantes envolvidos com o parto em
questão – de uma cabra.
Por
estas descrições, não tente entender o que “o alucinado que escrevia” queria
dizer: o melhor que você tem a fazer, leitor, é tentar ler a peça completa.
Talvez
tenha sido por causa dos tabus correntes nos anos 1960 que Guilhermino César
não incluiu A Separação dos Dois Esposos na
sua relação de peças selecionadas de Qorpo-Santo. Sabem como é, Regime Militar
e tal. Mas as incluídas no livro não tem nada de subversivas – ao menos, na
primeira olhada – e, até onde sabemos, não sofreram censura por parte dos
“homens da tesoura” dos anos 1970. Censurado, isso sim, foi o grupo de teatro
que encenou as peças em 1969, mas isso é outra história.
Tanta
gente vê esta realidade como absurda. Isso porque ainda não leram a respeito de
Qorpo-Santo... Bem, vocês agora tirem suas conclusões. Terminaremos em harmonia
ou em caos e bagunça?
Referências:
E o
livro referido: LEÃO, Joaquim José de Campos. QORPO-SANTO: As Relações Naturais e Outras Comédias. Fixação do
texto, prefácio e notas por Guilhermino César. Porto Alegre: Movimento;
Co-Edições UFRGS, 1976 (2ª edição).
Esta
postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado originalmente
no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Este
livro, como tantos outros resenhados aqui, está disponível na Biblioteca
Pública Theobaldo Paim Borges, de Vacaria, RS. Procurem e surpreendam-se. Em
caso de dúvidas, pergunte a uma das bibliotecárias, elas podem ajudar.
Em
breve, nova resenha, novo autor para o pessoal conhecer.
Até
mais!
sexta-feira, 25 de novembro de 2016
Seção Resenha de Livros: CÃES DA PROVÍNCIA
Olá.
Aqui
é o Rafael de novo, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Por
esses dias, bateu um súbito e louco interesse por um assunto histórico um tanto
mórbido. Até o presente momento, já resenhei dois livros a respeito dos crimes
da Rua do Arvoredo, ou caso da Linguiça Humana, ocorrida em Porto Alegre, entre
1863 e 1864.
Pues,
hoje, vou resenhar mais um livro ligado à temática. Desta vez, é um romance. De
um dos maiores escritores do Rio Grande do Sul do século XX – ou pelo menos,
onde sua reputação ficou.
Hoje,
então, falarei de CÃES DA PROVÍNCIA, de Luiz Antonio Assis Brasil.
O REDATOR
Antes
de falar do livro, propriamente dito, é justo, como sempre faço, que antes eu
fale do autor – no caso, Luiz Antonio de Assis Brasil, às vezes grafado sem o
“de”.
A
capa acima é da edição de 1997 – a sétima – de CÃES DA PROVÍNCIA, sua principal
obra, publicada pela editora Mercado Aberto. É dessa edição que extraio a
síntese biobibliográfica inicial a respeito do autor, com algumas inserções de
informações extraídas da internet:
“Gaúcho de Porto Alegre,
1945. Embora de família fortemente ligada à formação do Estado, passou a
infância e a adolescência em Estrela, zona de colonização germânica. De volta a
Porto Alegre, estudou com os padres jesuítas e seguiu Direito [na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
PUCRS], formando-se em 1970. Durante os
estudos e mesmo depois, atuou na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre [OSPA] como violoncelista. A música, entretanto,
foi substituída pela literatura, e a prática da advocacia pelo magistério
superior. Doutor em Letras, (...) professor adjunto na PUC do Rio Grande do Sul
onde, no Curso de Pós-graduação em Letras, coordena uma oficina de criação
literária que já publicou várias antologias de contos [e revelou diversos
escritores que ficariam célebres, como Letícia Wierzchowski, Cíntia Moscovich,
Daniel Pellizzari, Monique Revillion e Daniel Galera].
Atuou na administração
cultural, exercendo sucessivamente os cargos de diretor do Centro Municipal de
Cultura de Porto Alegre e diretor do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande
do Sul – em sua gestão deu início à publicação da série Autores Gaúchos, de
repercussão nacional –, e foi, por último, subsecretário de Cultura de seu
Estado. No inverno 84/85 foi bolsista do Goethe-Institut na República Federal
da Alemanha. Por solicitação do Ministro Furtado fez parte, com Affonso Romano
de Sant’Anna, da comissão especial que ofereceu sugestões para uma política
federal do livro. Em 89/90 foi Catedrático Convidado de Literatura Brasileira
na Universidade dos Açores, Portugal. Presidente da Associação gaúcha de
Escritores no Biênio 88/90. Membro dos Conselhos Editoriais das editoras da
PUC/RS e da Universidade de Caxias do Sul, bem como do Conselho Estadual de
Cultura.
Obras publicadas: Um quarto de légua em quadro (1976)
[...]; A prole do corvo (1978) [...];
Bacia das Almas (1981) [...]; Manhã
transfigurada (1982) [...]; As
virtudes da casa (1985) [...]; O
homem amoroso (1986); Cães da Província
(1987) [...]; Videiras de cristal (1990) [...]; [A trilogia Um Castelo no Pampa, composta por:]
Perversas Famílias (1992) [...]; Pedra
da Memória (1993) [...]; [e] Os
senhores do século (1994) [...]; Anais
da Província-Boi (1997); Concerto
Campestre (1997). Em 1988 publica no
jornal Diário do Sul o folhetim Breviário
das Terras do Brasil [compilado em livro em 1997, que também foi o ano em que
Luiz Antonio de Assis Brasil foi escolhido patrono da 43ª Feira do Livro de
Porto Alegre].
Elogiado por A. Bosi, em
sua História Concisa da literatura brasileira, foi incluído pelo brasilianista Malcolm Silverman na obra A Moderna
sátira brasileira. Faz parte do livro A
posse da terra, de Cremilda Medina (Ed.
Casa da Moeda, Portugal), e é objeto de estudos e citações em obras de Antonio
Hohfeldt, Regina Zilbermann, Flávio Loureiro Chaves, Volnyr Santos e outros.
[...]
Prêmios recebidos, sem
inscrição prévia: prêmio Ilha de Laytano (1977) por Um Quarto de Légua em Quadro; Prêmio Érico Veríssimo (1987), concedido pela Câmara de Vereadores de
Porto Alegre pelo conjunto de sua obra, e o Prêmio Literário Nacional, do
Instituto Nacional do Livro (1988), por Cães da Província.” (in: Cães da Província, 7ª edição. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1997,
p. 3-4. As inserções entre colchetes saíram do verbete sobre o autor na
Wikipedia).
Para
completar as informações a respeito de Luiz Antonio de Assis Brasil, depois de
1997: em 1998, ele é palestrante convidado na Brown University, em Providence,
EUA; em 2000, ele participa do programa Distinguished Brazilian Writer in
Residence, na Berkeley University, Califórnia, EUA. E, entre 2011 e 2014, atuou
como Secretário da Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, durante a gestão do
governador Tarso Genro. Ele continua atuando como professor e, periodicamente,
escreve para jornais, como Zero Hora.
Obras
publicadas nos anos 2000: O Pintor de
Retratos (2001); A margem imóvel do
rio (2003); Música perdida (2006);
Ensaios íntimos e imperfeitos (2008);
e Figura na Sombra (2012). Seu livro
mais recente é O Inverno e Depois, lançado
em setembro de 2016, pela L&PM.
Prêmios
recebidos nos anos 2000: prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional
(2001), por O Pintor de retratos; menção
honrosa do Prêmio Jabuti (2003) e prêmio Portugal Telecom de Literatura
Brasileira (2004), por A margem imóvel do
rio.
A
obra do autor, atualmente, está sendo editada pela editora L&PM, nas
versões normal e pocket (mais adiante, veja a capa da edição de CÃES DA
PROVÍNCIA pela L&PM). E também ganhou edições no exterior, na Europa e
América Latina. E sua obra também é constantemente analisada em teses
acadêmicas – já saíram até livros de análise de livros específicos do autor.
Ah:
a obra de Luiz Antonio de Assis Brasil também já ganhou adaptação para o
cinema! Foram quatro filmes até o momento em que escrevo, adaptando livros do
autor: o primeiro foi Videiras de
cristal, adaptado em 2002, pelo diretor Fábio Barreto, sob o nome A Paixão de Jacobina; em 2004, Concerto Campestre foi adaptado para um
filme homônimo, por Henrique de Freitas Lima; em 2005, Um quarto de légua em quadro é adaptado pelo diretor Paulo
Nascimento, sob o nome Diário de um Novo
Mundo; em 2008, Manhã Transfigurada ganha
um filme homônimo, dirigido por Sérgio de Assis Brasil; e Ensaios Íntimos e Imperfeitos é adaptado para uma série de
mini-documentários, com direção de Douglas Machado, em 2016 – todos com atuação
do próprio Assis Brasil. Há notícias de que O
Pintor de Retratos também está prestes a ser adaptado para o cinema.
Luiz
Antonio de Assis Brasil é tido como um importante escritor gaúcho, e, como tal,
seus livros são mais “cabeça”, como todo bom literato gaúcho, ou, pelo menos,
levando em conta as atuais tendências da literatura comercial, cujos maiores
sucessos são, basicamente, livros de ficção fantástica. Por isso, tanto a
linguagem como os temas abordados são mais voltados a leitores mais
“instruídos”, e seus livros atraem mais quem já ouvira falar de sua obra
anteriormente. E o tema mais recorrente da obra do autor é o passado do Rio
Grande do Sul, principalmente o século XIX. Um
Quarto de Légua em Quadro, por exemplo, se passa na época da colonização
açoriana do Rio Grande do Sul, no século XVIII; A Prole do Corvo recupera episódios da Guerra dos Farrapos (1835 –
1845); As Virtudes da Casa, segundo o
estudioso Valdocir Esquinsani, que até mesmo publicou em livro a sua tese (As Metamorfoses de um Mito, Passo Fundo,
Editora Universitária, 2000), recria,
no Rio Grande do Sul do século XIX, o mito grego do herói trágico Agamenon,
imortalizado em peça teatral de Ésquilo; Videiras
de Cristal recupera o episódio da Revolta dos Muckers, uma seita religiosa
formada por colonos alemães na região de São Leopoldo, RS; Concerto Campestre se passa no contexto da atividade agropecuária do
século XIX (e, assim como O Homem
Amoroso, carrega um acento autobiográfico, tendo como tema condutor a
música); e CÃES DA PROVÍNCIA trata de acontecimentos da cidade de Porto Alegre
no século XIX.
O HOMENAGEADO
Bão.
CÃES DA PROVÍNCIA lança mão de dois episódios principais ocorridos na década de
1860: os crimes da Rua do Arvoredo, quando o ex-policial e açougueiro José
Ramos se torna suspeito de fabricar linguiças com carne humana; e o julgamento
do pedido de interdição dos bens do escritor José Joaquim de Campos Leão,
também conhecido como Qorpo-Santo. Ambos personagens reais.
Antes
de prosseguir, devo falar um pouco a respeito de Qorpo-Santo, o objeto do
romance citado. Escritor de peças de teatro, e considerado por vários críticos
teatrais o precursor do teatro do absurdo no Brasil – e, possivelmente, no
mundo – José Joaquim de Campos Leão nasceu em Triunfo, RS, em 1829, e faleceu
em Porto Alegre, em 1883, vitimado por uma tuberculose. Ele não foi reconhecido
em vida – suas ousadas peças teatrais só foram redescobertas e montadas nos
anos 1960.
Na
juventude, teve o pai assassinado durante a Guerra dos Farrapos, em 1839;
mudou-se para Porto Alegre para estudar gramática. Inicialmente, trabalha no
comércio, e, a partir de 1850, habilita-se para o Magistério Público, fazendo
carreira também como professor. Qorpo-Santo funda um grupo dramático em 1851,
escreve para jornais da Província do Rio Grande do Sul a partir de 1852, e, em
1855, deixa o magistério e leciona em vários colégios. Em vida, Qorpo-Santo
teve várias profissões, tanto em Porto Alegre como em Alegrete, para onde
muda-se em 1857 com a família (no ano anterior, ele casou-se com Inácia de
Campos Leão). Em Alegrete, Qorpo-Santo atua como delegado de polícia e
vereador.
Em
1861, a família volta para Porto Alegre. No ano seguinte, Qorpo-Santo, já
adotando o pseudônimo célebre (a grafia deve-se a uma proposta pessoal de
reforma ortográfica – muitos leem “Corpo-Santo”, mas eu, pessoalmente, imagino
que se leia, aproveitando o fonema da letra Q, “Kuorpo-Santo”), começa a
escrever suas peças teatrais. Em 1862, ainda, se faz notar sinais dos
transtornos mentais que levam Dona Inácia a pedir a interdição dos bens do
marido. Qorpo-Santo é diagnosticado com monomania, com “superexcitação da atividade
cerebral”, por sua compulsão de “tudo escrever” – apenas em maio de 1866, ele
escrevera oito peças teatrais, das dezessete que escreveu ao todo! Porém, os
psiquiatras da Porto Alegre daquele tempo não chegam a um acordo sobre o estado
mental do paciente, que alterna momentos de lucidez com alucinações. Ainda
assim, é decidida pela interdição dos bens. E Qorpo-Santo é enviado para novos
exames psiquiátricos no Rio de Janeiro, que atestam que ele goza de boa saúde
mental.
Mesmo
assim, em 1868, sob novo julgamento, a interdição é mantida, e seus bens são
administrados por terceiros – Dona Inácia também é impedida de administrar
esses bens. Mesmo com o parecer favorável, o estigma está criado, e Qorpo-Santo
se vê cada vez mais isolado, sendo obrigado a deixar a atividade jornalística.
Ainda assim, em 1877, Qorpo-Santo monta uma gráfica, e por conta própria edita
sua obra, reunida nos nove volumes da coletânea conhecida como Ensiqlopedia, ou seis mezes de huma
enfermidade. É na Ensiqlopedia que,
além de crônicas, poemas, confissões, receitas culinárias e outros textos,
Qorpo-Santo edita suas ousadas peças teatrais. A partir dos anos 1960,
inicia-se o resgate das obras de Qorpo-Santo – até hoje, só foram encontrados
seis dos nove volumes da Ensiqlopedia.
De vez em quando, é possível encontrar compilações de suas peças teatrais nas
livrarias e bibliotecas.
Qorpo-Santo
é tido como precursor do teatro do absurdo, com temas que iam contra as
tendências do teatro da época, guiado pelos ideais do Romantismo. Dentre as dezessete
peças até hoje identificadas de Qorpo-Santo, incluem-se: As Relações Naturais; Matheus e Matheusa; Hoje sou Um, Amanhã Sou
Outro; Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte; Lanterna de Fogo; A Separação dos Dois
Esposos. Nessas peças, Qorpo-Santo lança mão de ousadias para sua época,
como colocar prostitutas como personagens; tratar do homossexualismo de forma
natural; se incluir como personagem; e até mesmo indicar ousadias cênicas
difíceis de reproduzir com as limitações cênicas do século XIX, como
personagens que simulam perder partes do corpo, os atores contracenarem com
animais vivos no palco ou o fim da peça com jorros e explosões de luz. Mas, o
mais importante é que os personagens de Qorpo-Santo são projeções dele mesmo,
principalmente em seu inconformismo com as regras sociais de seu tempo –
inconformismo que se tornou mais forte depois que foi submetido aos exames,
internações e à interjeição de seus bens. Há de lembrar que os tratamentos
psiquiátricos do século XIX, pelos padrões de hoje, lançavam mão de técnicas
cruéis e questionáveis, como isolamento em hospícios, aprisionamento com
correntes e camisas-de-força, tratamentos com choques elétricos e até
lobotomia.
(Fonte:
sites Wikipedia e Enciclopédia Itaú Cultural
[enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8151/qorpo-santo])
QORPO-SANTO NO ROMANCE
É
como um sujeito inconformado com as regras sociais que Qorpo-Santo é retratado
em CÃES DA PROVÍNCIA. No livro, lançado em 1987 e vencedor do Prêmio Literário
Nacional do INL em 1988, Luiz Antonio de Assis Brasil reconstitui os aspectos
da cidade de Porto Alegre no século XIX, tanto na parte física – a descrição da
cidade – como social. A sociedade porto-alegrense do século XIX se encontrava
muito presa às convenções sociais, às regras de conduta impostas pela Igreja,
pela Política e pelos costumes, tanto as classes ricas como as pobres. Se
portam como cães fiéis e obedientes a essas convenções (daí o nome do romance).
Por seu provincianismo, qualquer fato que acabe saindo do comum agita e revolta
a população da Capital da Província, mobiliza as autoridades, provoca
interdições e depredações.
Por
isso, as notícias da prisão de José Ramos, o linguiceiro, e da interdição dos
bens de Qorpo-Santo agitam a população da capital. Além de não conseguirem
aceitar o fato de terem, involuntariamente, consumido carne humana, não
conseguem suportar o fato de um louco dizer o que pensa de todos esses
acontecimentos, e expor a sociedade de uma forma que não consegue suportar. Ou,
pelo menos, de alguém que acreditam ser louco: Qorpo-Santo é retratado como um
homem de superioridade intelectual, o mais inteligente daquela cidade, mas que,
como a grande maioria dos gênios, não foi reconhecido por seus contemporâneos.
Loucos seriam, na verdade, os que queriam interditar o pobre gênio. Mas, mais
que isso, tais processos acabam escancarando histórias de crimes, adultérios,
incestos e outras crueldades, às quais Qorpo-Santo denuncia, a plenos pulmões a
quem assiste seu julgamento, ou através de suas peças, que ele começa a
escrever.
Para
escrever CÃES DA PROVÍNCIA, Luiz Antonio de Assis Brasil também contou com a
consultoria do historiador Décio Freitas, que conseguira o material referente
ao processo contra José Ramos e a mulher, Catarina Palse. Foi só em 1996 que
Freitas publicaria seu livro O Maior
Crime da Terra – e só em 2004 que o escritor David Coimbra consultaria
Freitas para escrever Canibais. Então,
Assis Brasil chegou antes.
Bão.
O romance conta, de forma não-linear, e intercalando personagens e situações,
os acontecimentos ocorridos na Porto Alegre da década de 1860. Quanto à parte
de Qorpo-Santo, os acontecimentos concentram-se desde o início do processo de
interdição até a sua partida para o Rio de Janeiro.
Pelo
menos um personagem ficcional tem grande importância na narrativa: o comerciante
Eusébio Cavalcante, amigo de Qorpo-Santo, de início muito preocupado com as
convenções sociais e seus negócios, até receber a notícia de que sua esposa, a
geniosa Lucrécia, fugira com o amante. A ausência da esposa causa uma grande
angústia a Eusébio – angústia que só aumenta quando, instado por Qorpo-Santo e
levado a um necrotério, ele acaba reconhecendo um corpo esquartejado de mulher
como sendo o de Lucrécia. Corpo esse que fora encontrado entre os restos das
vítimas de José Ramos, na casa da Rua do Arvoredo. Nos dias que seguem, Eusébio
se entrega ao luto, que até dá uma melhorada depois que faz uma viagem e se
envolve com uma alemã, um caso rápido e fugaz; mas tem cada vez mais certeza de
que Lucrécia está viva, vivendo com o amante, e reconhecera o corpo, e lhe dera
enterro em nome da mulher, como uma forma de desviar a atenção da população.
Até
que Lucrécia, de repente, volta para casa, arrependida do adultério, infeliz
com a vida que levava com a família do amante... porém, não pode se mostrar ao
público, e, trancada em casa, sucumbe aos poucos ante à loucura de Eusébio, e
sua própria. O retorno da esposa só deixa o comerciante mais angustiado, e a
libertação só se dá depois que consegue, afinal, se livrar da esposa,
dando-lhes uma morte piedosa.
Não
sei dizer se os personagens do Dr. Joaquim Pedro e do Dr. Landell são baseados
em figuras reais. Esses são os médicos encarregados de discutir o caso do
paciente Qorpo-Santo, para depois oferecerem o parecer ao juiz, determinando se
ele deve ter os bens interditados ou não; e aproveitam qualquer ocasião para
discutir o caso, desde uma caçada nos campos até uma aula de anatomia na Santa
Casa de Porto Alegre – o principal hospital daquele tempo. Enquanto o Dr.
Landell é favorável ao diagnóstico de que Qorpo-Santo é louco, o Dr. Joaquim
Pedro é favorável ao diagnóstico de que Qorpo-Santo é são – e se convence disso
depois de ler as peças escritas pelo paciente (há, inclusive, pequenas e breves
descrições das peças de Qorpo-Santo ao longo do livro).
O
delegado de polícia Dario Calado, sim, é real. Acompanhamos alguns de seus
pensamentos diante dos casos que se apresentam diante de si. E também de seus
interesses amorosos: ele chega a desejar a criminosa Catarina Palse – que tem
uma participação muito breve no romance, assim como a de José Ramos – e,
depois, deseja até mesmo Inácia, a esposa de Qorpo-Santo. Por pouco, em um
segundo encontro, Calado não consuma seu desejo pela mulher do louco.
Inácia
de Campos Leão vive, ao longo do romance, um sentimento conflitante em relação
ao marido. Ambos se amam, mas Inácia não consegue suportar o fato de
Qorpo-Santo estar entregue à sua atividade insana de escrever, e deixar a
família de lado, vivendo na rua da amargura. Por isso, opta pela interdição dos
bens, com a certeza de que poderá administrá-los. Como prova de sentimentos
conflitantes, ela chega até a dormir com o marido, e, pouco depois, brigar com
ele, que foge, nu, pelas ruas, e depois é preso.
Apesar
da lucidez de Qorpo-Santo em denunciar as mazelas da sociedade em que vive, o
personagem também alterna momentos de pura alucinação e ações ilógicas: cria um
sagui em seu quarto, muda o nome de seu criado e confidente, Juvêncio, para
Inesperto, tranca a porta da frente de seu sobrado com tábuas – o acesso para
sua casa, agora, se dá através de uma escada portátil, pela janela de seu
quarto – e recebe “visitas” do imperador francês Napoleão III (sobrinho de
Napoleão Bonaparte), que exige que Qorpo-Santo reescreva seu destino, para que
não termine como o tio. Em alguns momentos, Qorpo-Santo chega a apresentar o
Imperador, que só ele vê, a pessoas em seu redor. Nos diálogos com o Imperador
imaginário, Qorpo-Santo (ou melhor, Assis Brasil) aproveita para discutir
reformas sociais lúcidas, e válidas para qualquer tempo. De vez em quando, a
imaginação de Qorpo-Santo confunde Porto Alegre com Paris. Aí, se pode
questionar: sim, Qorpo-Santo está louco. Essas não são atitudes de gente que
denuncia mazelas de forma tão lúcida. Ou seriam uma forma racional de protesto?
Os leitores podem decidir.
Inesperto
também se mostra um personagem importante no livro, o ponto de equilíbrio de
Qorpo-Santo entre a lucidez e suas alucinações, apesar de também agir como um
“cão da província” – apenas cumpre ordens, sem maiores questionamentos, por
mais insanas que sejam, e não tem, exatamente, uma opinião formada a respeito
do que presencia. Inesperto é o contato entre seu patrão e a realidade, uma
espécie de Sancho Pança para um Dom Quixote porto-alegrense.
Enfim.
CÃES DA PROVÍNCIA pode ser encontrado nas livrarias e bibliotecas. É um romance
“cabeça”, que pode exigir um pouco do leitor, mas livros, em tese, servem
justamente para isso: colocar cultura na cabeça dos leitores. Acrescentar
palavras novas ao vocabulário, acrescentar experiências novas à vida. E
procurar entender não apenas por que Luiz Antonio de Assis Brasil é um de
nossos escritores mais importantes; e porque CÃES DA PROVÍNCIA é um livro
premiado.
Quem
sabe, também, não se colocar no lugar do atormentado Qorpo-Santo.
Esta
resenha é uma versão revisada e com alterações do texto publicado no blog
Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Este
título, como tantos outros, está disponível na Biblioteca Pública Municipal
Theobaldo Paim Borges. Procurem e surpreendam-se.
Em
breve, nova resenha de livro.
Até
mais!
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