domingo, 27 de novembro de 2016

Seção Resenha de Livros: QORPO-SANTO - AS RELAÇÕES NATURAIS E OUTRAS COMÉDIAS

Olá.
Aqui é o Rafael Grasel mais uma vez, colaborando para o blog da Biblioteca Pública.
Na última postagem, resenhei o livro Cães da Província (1987), de Luiz Antônio de Assis Brasil. O romance relacionava alguns dos acontecimentos que agitaram a cidade de Porto Alegre, RS, na década de 1860: os crimes da Rua do Arvoredo, ou o “caso da linguiça humana”, e a vida tormentosa e atormentada do professor, escritor, teatrólogo e (tido como) maluco José Joaquim de Campos Leão, Qorpo-Santo.
Pois, hoje, volto a evocar a figura do criador do teatro do absurdo no Brasil, para vocês saberem mais a respeito dele. Com vocês, Qorpo-Santo.

UM POUCO MAIS DA VIDA DO MALUCO-BELEZA PORTO-ALEGRENSE...
Vamos recordar: José Joaquim de Campos Leão nasceu em Triunfo, RS, em 19 de abril de 1829. Em 1839, ele presencia o assassinato do pai, vítima de emboscada, durante um episódio da Revolução Farroupilha; e, depois, muda-se para Porto Alegre, a fim de estudar gramática e conseguir emprego. Inicialmente, entre 1842 e 1847, trabalha no comércio, entre as cidades de Porto Alegre e Cachoeira; em 1848, tem de deixar Porto Alegre para cuidar da irmã doente; e, a partir de 1850, habilita-se ao exercício do magistério público. Em 1851, funda um grupo dramático, e, a partir de 1852, começa a colaborar para jornais da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Em 1855, deixa o magistério público e passa a lecionar em vários colégios, a fim de amparar a mãe doente, e se casa com Inácia de Campos Leão, com quem tem quatro filhos: Idalina Carlota, Lídia Marfisa, Plínia Manuela e Tales José. Em 1856, depois da epidemia de cólera-morbo que assolou a Capital da Província, José Joaquim assume a direção do Colégio São João. Em 1857, por conta de problemas de saúde, muda-se com a família para Alegrete, RS, onde funda um colégio, adquire respeitabilidade como figura pública, escrevendo para jornais e ocupando cargos públicos, como de delegado de polícia e vereador.
Em 1861, retorna a Porto Alegre, seguindo carreira como professor. Mais ou menos nesse ano, começam a se manifestar os sintomas de transtornos psíquicos, diagnosticados como monomania – a família alegava que o transtorno se devia à “superexcitação da atividade cerebral” e da sua compulsão de “tudo escrever” (ele estava, naquela época, tomando notas para suas obras, que reuniam poemas, peças de teatro, artigos jornalísticos, ditos...) Esse diagnóstico inicial foi determinante para que ele fosse dispensado do serviço público em 1862, tivesse seus bens interditados e administrados por um tutor (e não era pouca coisa: seu testamento relacionava, entre outras coisas, 8 casas em seu nome, valores em dinheiro e ações que davam 400 mil réis e uma valiosa mobília, mostrando que Qorpo-Santo era abonado em suas atividades), e passasse por uma bateria de exames com médicos de Porto Alegre, que divergem sobre o verdadeiro estado de saúde mental do homem que, mais ou menos nessa época, adotou, junto a seu nome, a alcunha de Qorpo-Santo (ele próprio explica: “Se a palavra corpo-santo foi-me infiltrada em tempo que vivi completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma palavra hei sido compelido para este mundo”).
José Joaquim não aceita passivamente seus diagnósticos que praticamente o qualificavam como louco, apesar de ter assumido algumas atitudes excêntricas, como trancar a porta da frente de seu sobrado e utilizar uma escada para acessar o andar superior – e dizem que, certa vez, ele havia agredido, com seu guarda-chuva, uma mulher, em plena rua, que o chamara de louco a plenos pulmões. José Joaquim recorre, então, ao Rio de Janeiro, internando-se no Hospício Pedro II e sendo examinado por médicos locais, cujos diagnósticos divergiram dos especialistas de Porto Alegre, confirmando que Qorpo-Santo estava em pleno domínio de suas faculdades mentais. Enquanto isso, continuava escrevendo: só em maio de 1866, Qorpo-Santo compôs 8 peças teatrais – normalmente, no século XIX inclusive, uma peça teatral, mesmo com apenas um ato, leva meses para ser composta. O diagnóstico final se deu em 1868 – mas a confirmação da sanidade de Qorpo-Santo não foi suficiente para dar fim à interdição judicial de seus bens.
Em 1868, ele fundara, em Porto Alegre, o jornal A Justiça, praticamente todo redigido por ele mesmo. O jornal, com artigos onde ele discute, ao seu modo, diversos temas – entre eles, uma curiosa reforma ortográfica – também circulou por Alegrete. Mas ele é obrigado a abandonar as atividades jornalísticas em 1873, já que, mesmo com a comprovação de sua sanidade, o estigma junto à preconceituosa sociedade porto-alegrense de então já estava firmado. Nem colaborar com os jornais maiores de sua época era possível. Se dizendo perseguido ideologicamente, passando por dificuldades financeiras devido à interdição de seus bens, tendo de manter a si próprio e a família na atividade de comerciante.
Em 1877, em Porto Alegre, ele constitui uma gráfica própria, onde viabiliza, à própria custa, a publicação de sua obra, reunida numa coletânea conhecida como Ensiqlopédia, ou Seis Mezes de Huma Enfermidade. Estudos apontam que a obra é composta de nove volumes – dos quais, até hoje, só se localizaram seis.
Qorpo-Santo morreu em 1º de maio de 1883, em Porto Alegre, vítima de tuberculose.

RECONHECIMENTO TARDIO
A obra de Qorpo-Santo só começou a ser conhecida na década de 1950, quase 100 anos depois. Diversos fatores estiveram envolvidos, além do estigma que cercou a figura de José Joaquim de Campos Leão: também o fato de as tiragens reduzidas da Ensiqlopédia terem sido feitos em papel de má qualidade contribuíram para tornar a obra extremamente rara. Em tempos recentes, a Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) disponibilizou na internet a versão digitalizada dos volumes do Ensiqlopédia até hoje localizados: os originais dos volumes 2, 4 e 7 (que passaram por meticulosa restauração), e fotocópias dos volumes 1, 8 e 9, todos adquiridos do bibliófilo Júlio Petersen.
O primeiro a se debruçar sobre a obra de Qorpo-Santo foi o jornalista Aníbal Damasceno Ferreira, na década de 1950; em parceria com o diretor teatral Antônio Carlos de Sena, Ferreira começou publicando poemas de Qorpo-Santo no jornal porto-alegrense O Mocho, em 1955. Após uma tentativa frustrada de encenar as peças de Qorpo-Santo no Curso de Arte dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAD/UFRGS), Sena estreia, em 1966, no Clube de Cultura, um espetáculo que reúne três peças de Qorpo-Santo: As Relações Naturais, Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte e Mateus e Mateusa – exatamente cem anos depois que foram escritas. A montagem foi sucesso de público e crítica, e em 1968 viajou para o Rio de Janeiro, para participar do Festival Nacional de Teatros de Estudantes. A crítica da época deu a Qorpo-Santo o aval de teatrólogo revolucionário – o crítico Yan Michalski, por exemplo, escreveu que a redescoberta do autor “torna praticamente obsoletos todos os livros de história da dramaturgia brasileira”. A partir daí, a obra de Qorpo-Santo passa a ser encenada e estudada. O escritor gaúcho foi, inclusive, comparado aos teatrólogos europeus Alfred Jarry (autor de Ubu-Rei), Eugène Ionesco (de A Cantora Careca) e Samuel Beckett (de Esperando Godot), os maiores nomes do teatro do absurdo. Em verdade, Qorpo-Santo teria antecedido Jarry, Ionesco e Beckett – acabou perdendo a primazia porque suas peças nunca foram montadas enquanto estava vivo.
Dois dos maiores divulgadores da obra de Qorpo-Santo foram: Flávio Aguiar, professor aposentado de literatura da USP, que publicou, em 1975, o livro Os Homens Precários, resultado de sua dissertação de mestrado, que analisava a obra de Qorpo-Santo, demonstrando que ele fora, sim, precursor das vanguardas artísticas do século XX, embora ancorado na tradição teatral brasileira do século XIX; e, antes dele, e depois de Antônio Sena, vem o professor de literatura, poeta e pesquisador mineiro Guilhermino César (1908 – 1993), que começou os estudos e a divulgação da obra de Qorpo-Santo no final dos anos 1960.
Esta postagem, aliás, baseia-se no trabalho de Guilhermino César: a base é o livro Qorpo-Santo: as Relações Naturais e Outras Comédias, com fixação de texto, prefácio e notas do professor de literatura. As capas de algumas edições do trabalho de César, publicadas numa parceria entre as editoras Movimento e Co-Edições UFRGS em 1969, e encontráveis com mais facilidade em bibliotecas, vocês podem ver ao longo desta postagem.
Outra coisa há de ser dita antes de prosseguirmos: o trabalho da recuperação da obra de Qorpo-Santo é apenas uma pequena fração da obra de Guilhermino César, estudioso e poeta nascido em Eugenópolis, Minas Gerais, em 15 de maio de 1908, e falecido em Porto Alegre em 7 de dezembro de 1993, em prol da literatura sul-riograndense. A obra de Guilhermino César também compreende livros de poesias, crônicas e estudos referenciais sobre a literatura do Rio Grande do Sul. Em outra ocasião, dou mais detalhes sobre a obra de Guilhermino César – não vamos nos estender além do planejado.
Voltando a Qorpo-Santo: em 1987, o já citado Luiz Antônio de Assis Brasil faz de Qorpo-Santo o principal personagem do seu já citado romance Cães da Província. O “teatrólogo” também dá nome a uma fundação cultural em atividade na cidade de Triunfo, RS (dá para conhecer as atividades da Fundação Cultural Qorpo-Santo através do blog https://fundacaoculturalqorpo-santo.blogspot.com.br/). Essa e outras homenagens foram aparecendo ao longo do tempo – e, de vez em quando, suas peças são montadas por diversos grupos de teatro brasileiros. Também já não é difícil encontrar edições de suas peças nas livrarias, físicas e virtuais, impressas ou no formato e-book.

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA OBRA
Ao todo, Qorpo-Santo escreveu dezessete peças – algumas chegaram aos nossos dias incompletas. Todas estão no volume 4 da Ensiqlopédia. Cada uma tem a data de composição no final do texto. E praticamente todas foram escritas em 1866, cada uma em questão de horas, escritas com incrível rapidez. São elas:
- De 31 de janeiro de 1866, O Hóspede Atrevido ou O Brilhante Escondido;
- Do mês de fevereiro: A Impossibilidade da Santificação ou A Santificação Transformada (dia 12); O Marinheiro Escritor (dia 16); e Dois Irmãos (dia 24);
- Do mês de maio: Duas Páginas em Branco (dia 5); Mateus e Mateusa (dia 12); As Relações Naturais (dia 14); Hoje Sou Um; e Amanhã Outro (dia 15); Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte (dia 16); A Separação dos Dois Esposos (dia 18); O Marido Estremoso ou O Pai Cuidadoso (dia 24); e Um Credor da Fazenda Nacional (dias 26 e 27);
- Do mês de junho: Um Assovio (dia 6); Certa Entidade em Busca de Outra e Lanterna de Fogo (ambas do dia 10); e Um Parto (dia 16);
- Sem data, e incompleta, Uma Pitada de Rapé.
- Existe ainda uma referência não-confirmada a respeito de uma décima-oitava comédia, Elias e Sua Loucura Bíblica, sem data.
As peças de Qorpo-Santo não são das mais acessíveis para o público comum. Tudo por conta de uma série de características que podem ser observadas apenas pela leitura de As Relações Naturais e Outras Comédias.
Uma delas, mas que nada tem a ver com as outras, foi o estigma que cercou a obra de Qorpo-Santo: em sua época, e até tempos recentes, ele era visto pura e simplesmente como “um alucinado que escrevia”. Comparando com outras peças teatrais de sua época, como as do teatrólogo Martins Pena, José de Alencar, Machado de Assis e outros escritores que se arriscaram no teatro, Qorpo-Santo parece ser mesmo um escritor alucinado. Talvez muitos prefiram chama-lo de “um homem à frente de seu tempo”... Mas antes, vamos ver as tais características que tornam suas obras “inacessíveis”.
Para começar, no original, suas peças foram escritas com uma ortografia própria, que destoava das regras vigentes de sua época. Em artigo de 23 de outubro de 1868, em seu jornal A Justiça, Qorpo-Santo defende uma reforma ortográfica que, embora visando uma simplificação da ortografia portuguesa de sua época, previa alguns exotismos, como, por exemplo, a eliminação do H em palavras onde não soa, a supressão das letras Y e W do alfabeto, a troca do Ç pelo S, a eliminação do U após o G nas palavras com as sílabas “gue” e “gui” (ex: guerra – gera), bem como a eliminação dos dígrafos com letras dobradas (RR, SS) e, claro, o uso do Q no lugar do C em algumas palavras – por isso, apesar do Q, o nome Qorpo-Santo se lê “corpo-santo” – para mim, no entanto, a leitura poderia ser “kuorpo-santo”. Apenas uns poucos escritores posteriores a José Joaquim de Campos Leão ousaram adotar uma ortografia semelhante, cheia de exotismos – mas também não se isentaram de críticas.
Outra característica das peças de Qorpo-Santo está na condução das tramas: as peças, em geral, se compõem de pequenas cenas, com troca constante de personagens e situações que parecem não ter nada a ver umas com as outras – em várias oportunidades, os personagens mudam de aparência e até de nome. Qorpo-Santo, por dedução, fazia uso da escrita automática, escrevendo todas as falas e indicações dos gestos dos autores em uma única sentada, sem se preocupar em revisar ou reler o que escreveu, confiante em seu talento. Sua maior preocupação não é a coerência e a concatenação das situações, de modo a colocar algum sentido nas tramas, mas sim embutir críticas sociais – à política, às leis, à religião, ao tratamento com as mulheres, ao comportamento social como um todo – nas falas dos personagens.
Por conta dessa característica, lidas assim, “por cima”, as peças de Qorpo-Santo não possuem coerência, ou, na linguagem popular, “não tem pé nem cabeça”. Ainda assim, as ações dos personagens, e algumas falas, garantem, quando vistas no palco, risadas do público. E muitos críticos percebem, nesse nonsense, uma fuga dos preceitos do teatro romântico e realista, que fazia sucesso na época.
Falando em personagens, muitas vezes eles condizem com a personalidade de seu autor. A começar pelos nomes a eles atribuídos: Qorpo-Santo batiza os personagens masculinos, algumas vezes, com nomes exóticos, como Truquetruque, Inesperto, Impertinente, Malherbe, Ruibarbo e Guindaste; em outras, utiliza o “aportuguesamento” de nomes estrangeiros, como Robespier (Robespierre) e Almeida Garrê (Garrett); as personagens femininas muitas vezes recebem nomes derivados da “feminização” de nomes masculinos, como Pedra, Silvestra, Mateusa, Luduvica, Gonçala. E, em algumas ocasiões, os personagens nem nome recebem, sendo identificados apenas como Lindo, Linda, Menina, Rapaz.
Nem mesmo Qorpo-Santo perde a oportunidade de se fazer personagem de suas peças! Se é verdade que o personagem de uma obra carrega um pouco da personalidade de seu autor, então muitos dos personagens principais de Qorpo-Santo são projeções inteiras dele mesmo, em palavras e atos. Por exemplo: o personagem Impertinente, de As Relações Naturais, é praticamente o alter-ego de Qorpo-Santo; e, em Hoje Sou Um; e Amanhã Outro, ele é descrito por um dos personagens como uma espécie de sábio com teorias revolucionárias – seu nome, no entanto, é cifrado. Em Um Credor da Fazenda Nacional, seu nome também aparece na fala de um personagem. Modéstia não era a melhor qualidade de Qorpo-Santo: ele praticamente se via com um olho em uma terra de cegos, só para usar uma expressão mais popular.
Às vezes, Qorpo-Santo não perde a oportunidade de “puxar a orelha” de alguns conhecidos seus – alguns personagens remetem, por exemplo, a médicos e magistrados responsáveis por sua desgraça pessoal.
Qorpo-Santo também gostava de falas rimadas, meio musicadas, compondo ditados e trocadilhos. Às vezes, insere versos cantados, porém não se preocupou em tentar elaborar uma partitura musical para as mesmas.
As personagens parecem se comportar de forma histérica e se deixando levar por ações ilógicas. Eles gritam, cantam, e em grande parte do tempo, brigam entre si, se criticam e criticam as instituições de seu tempo, do governo ao casamento – apenas em poucos momentos, eles se entendem e demonstram amor sincero uns pelos outros. Qorpo-Santo também parece não ter pena das mulheres: elas são as vítimas mais constantes de suas críticas e de sua histeria (seria reflexo de seu difícil casamento com Dona Inácia, já que foi a pedido dela que seus bens acabaram interditados – enquanto José Joaquim suspeitava de adultério?).
O sexo (segundo a reforma ortográfica de Qorpo-Santo, ficaria “seqso”) parece ser outra obsessão de Qorpo-Santo em suas peças. Nestas são embutidas ideias “avançadas” sobre as relações entre homens e mulheres de sua época, como, por exemplo, a presença de prostitutas como personagens, algo incomum para o teatro do século XIX; ações que hoje soam como abuso sexual, como um personagem “apalpar os peitos” de sua interlocutora, dentre outros que se bolinam; constantes discussões sobre adultério (que não raro terminam em crimes passionais), homens divididos entre duas mulheres, casamento, convivência sobre o mesmo teto; porém, nada disso parece superar a peça A Separação dos Dois Esposos, onde os personagens Tatu e Tamanduá, dão a entender, nas falas finais da peça, que são homossexuais – aliás, é o primeiro registro literário brasileiro do homossexualismo masculino tratado com naturalidade e sem tabus. O bizarro é que, na vida real, houve indícios que José Joaquim Leão era um conservador empedernido, bem diferente do anárquico Qorpo-Santo das peças. É o caso literal do Hoje Sou Um; e Amanhã Outro...
Além do mais, as peças de Qorpo-Santo possuem exigências técnicas que não seriam possíveis com as limitações do teatro do século XIX, como por exemplo, personagens que simulam perder partes do corpo no palco, personagens contracenando com animais vivos, tirados de um saco, ou uma peça que termina com “milhares de luzes que descem e ocupam o espaço do palco”. Os textos das peças ainda contam com indicações opcionais para o término: ela pode terminar harmonicamente, com todos cantando, ou em estado de caos e bagunça, a escolha é dos atores.
O nonsense presente no teatro de Qorpo-Santo, antes de tudo, é um reflexo do inconformismo do autor com os costumes de sua época. Principalmente por causa das muitas interdições e perseguições que sofreu ao longo da vida. Isso está claro no modo como Luiz Antônio de Assis Brasil retratou o homem em Cães da Província. Teatro do absurdo é justamente isso: o questionamento da sanidade da sociedade, através de um incômodo e surreal espelho de sua época. Convenhamos: praticamente, pouca coisa mudou da época de Qorpo-Santo para cá.

QORPO-SANTO SEGUNDO GUILHERMINO CÉSAR
Bem. A edição usada como base para a postagem, da edição de As Relações Naturais e Outras Comédias, com organização, estudo crítico e notas de Guilhermino César, e publicada pelas editoras Movimento e Co-Edições UFRGS, é a segunda, de 1976. Na época, só haviam sido encontradas três edições integrais da Ensiqlopédia – os volumes 2, 4 e 7, em arquivos particulares, como o do professor Dário de Bittencourt e o do escritor Olyntho Sanmartin.
Guilhermino César tomou por base para a publicação nove comédias de Qorpo-Santo: As Relações Naturais; Mateus e Mateusa; Hoje Sou Um, e Amanhã Outro; Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte; Um Credor da Fazenda Nacional; Um Assovio; Certa Entidade em Busca de Outra; Lanterna de Fogo; e Um Parto.
Guilhermino César, na transcrição dos peças, tomou o cuidado de adaptá-las, onde foi necessário, para a ortografia vigente nos anos 1970. O livro inclui um extenso estudo crítico introdutório sobre Qorpo-Santo, onde se incluem: trechos de poemas do homem, onde se nota que eles obedecem uma excêntrica construção literária, com musicalidade e ritmo; uma autobiografia de Qorpo-Santo, extraída de um dos volumes da Ensiqlopédia; transcrição de documentos de sua época, como os autos dos exames psiquiátricos a que foi submetido, trechos de artigos de Qorpo-Santo para jornais (incluindo o referente à reforma ortográfica) e o testamento, com a vultosa relação de bens deixados para a família. Daí, para as peças selecionadas.
Começando com As Relações Naturais, em quatro atos, uma coleção de cenas onde Qorpo-Santo discute o relacionamento mais adequado para o homem e a mulher – as relações ditas “naturais”, segundo o autor, seriam baseadas unicamente no sexo, sem o envolvimento amoroso. O autor não estava nem aí para o casamento – nessa peça, aparecem prostitutas como personagens, e insinuações de incesto.
A peça seguinte, Mateus e Mateusa, em um ato e em um alegre tom farsesco, parece ser a peça que mais faz sentido. Trata do relacionamento cheio de discussões violentas de um casal de velhos, com a intervenção de suas jovens, carinhosas e algo interesseiras três filhas.
Hoje Sou Um; e Amanhã Outro, em três atos, se apresenta como um caso de dupla personalidade, mas demanda atenção na leitura de seu roteiro. A peça se passa em uma corte, onde um rei precisa lidar com um conflito armado que ameaça seu reino. Nessa peça, em um momento, o ministro real descreve a vida e o pensamento de um certo sábio gaúcho – um tal de Qorpo-Santo – autor de uma revolucionária teoria sobre a transmigração das almas.
Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte, em dois atos, trata de uma história de amor que termina em tragédia: dois homens, disputando uma mesma mulher. O grande forte dessa peça é o elemento-surpresa: um dos homens é o verdadeiro marido da mulher, e o outro a roubou. Com quem ela deve ficar? Qual dos dois deve pagar por seu “crime” passional?
Um Credor da Fazenda Nacional, em dois atos, é uma peça mais burocrática, apesar de rápida – trata de um caso de cobrança. Nela estão embutidas algumas críticas à situação da política de seu tempo e à burocracia estatal.
Um Assovio, em três atos e um quadro, e ambientada em Paris, França, trata da complicada relação entre um patrão e seu empregado, numa crítica aos janotas, aos rapazes ricos e ociosos de sua época.
Certa Entidade em Busca de Outra, em dois atos, trata das maluquices de um velho homem e seu relacionamento com uma donzela. A peça conta, inclusive, com a “participação especial” de Satanás, mas que resolve não ficar muito tempo para ver o que acontece. A peça também contém insinuações de abuso sexual (aos olhos de hoje).
Lanterna de Fogo, em três atos e dois quadros, é a peça mais longa e elaborada do “teatrólogo”. Trata da vida, do envelhecimento precoce e da morte de um homem, Robespier, que, entre relacionamentos difíceis com diversas pessoas, passa sua vida à procura de uma herança deixada por seu pai.
Por fim, Um Parto, em três atos, começa com um monólogo, com uma degustação de comidinhas acompanhada de reflexões “filosóficas”, e prossegue com quatro estudantes envolvidos com o parto em questão – de uma cabra.
Por estas descrições, não tente entender o que “o alucinado que escrevia” queria dizer: o melhor que você tem a fazer, leitor, é tentar ler a peça completa.
Talvez tenha sido por causa dos tabus correntes nos anos 1960 que Guilhermino César não incluiu A Separação dos Dois Esposos na sua relação de peças selecionadas de Qorpo-Santo. Sabem como é, Regime Militar e tal. Mas as incluídas no livro não tem nada de subversivas – ao menos, na primeira olhada – e, até onde sabemos, não sofreram censura por parte dos “homens da tesoura” dos anos 1970. Censurado, isso sim, foi o grupo de teatro que encenou as peças em 1969, mas isso é outra história.
Tanta gente vê esta realidade como absurda. Isso porque ainda não leram a respeito de Qorpo-Santo... Bem, vocês agora tirem suas conclusões. Terminaremos em harmonia ou em caos e bagunça?

Referências:
E o livro referido: LEÃO, Joaquim José de Campos. QORPO-SANTO: As Relações Naturais e Outras Comédias. Fixação do texto, prefácio e notas por Guilhermino César. Porto Alegre: Movimento; Co-Edições UFRGS, 1976 (2ª edição).

Esta postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado originalmente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Este livro, como tantos outros resenhados aqui, está disponível na Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges, de Vacaria, RS. Procurem e surpreendam-se. Em caso de dúvidas, pergunte a uma das bibliotecárias, elas podem ajudar.
Em breve, nova resenha, novo autor para o pessoal conhecer.

Até mais!

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