Olá.
Aqui
é o Rafael Grasel mais uma vez, colaborando para o blog da Biblioteca Pública.
Na
última postagem, resenhei o livro Cães da
Província (1987), de Luiz Antônio
de Assis Brasil. O romance relacionava alguns dos acontecimentos que agitaram a
cidade de Porto Alegre, RS, na década de 1860: os crimes da Rua do Arvoredo, ou
o “caso da linguiça humana”, e a vida tormentosa e atormentada do professor, escritor,
teatrólogo e (tido como) maluco José Joaquim de Campos Leão, Qorpo-Santo.
Pois,
hoje, volto a evocar a figura do criador do teatro do absurdo no Brasil, para
vocês saberem mais a respeito dele. Com vocês, Qorpo-Santo.
UM POUCO MAIS DA VIDA DO MALUCO-BELEZA
PORTO-ALEGRENSE...
Vamos
recordar: José Joaquim de Campos Leão nasceu em Triunfo, RS, em 19 de abril de
1829. Em 1839, ele presencia o assassinato do pai, vítima de emboscada, durante
um episódio da Revolução Farroupilha; e, depois, muda-se para Porto Alegre, a
fim de estudar gramática e conseguir emprego. Inicialmente, entre 1842 e 1847, trabalha
no comércio, entre as cidades de Porto Alegre e Cachoeira; em 1848, tem de
deixar Porto Alegre para cuidar da irmã doente; e, a partir de 1850, habilita-se
ao exercício do magistério público. Em 1851, funda um grupo dramático, e, a
partir de 1852, começa a colaborar para jornais da província de São Pedro do
Rio Grande do Sul. Em 1855, deixa o magistério público e passa a lecionar em
vários colégios, a fim de amparar a mãe doente, e se casa com Inácia de Campos
Leão, com quem tem quatro filhos: Idalina Carlota, Lídia Marfisa, Plínia
Manuela e Tales José. Em 1856, depois da epidemia de cólera-morbo que assolou a
Capital da Província, José Joaquim assume a direção do Colégio São João. Em
1857, por conta de problemas de saúde, muda-se com a família para Alegrete, RS,
onde funda um colégio, adquire respeitabilidade como figura pública, escrevendo
para jornais e ocupando cargos públicos, como de delegado de polícia e
vereador.
Em
1861, retorna a Porto Alegre, seguindo carreira como professor. Mais ou menos
nesse ano, começam a se manifestar os sintomas de transtornos psíquicos,
diagnosticados como monomania – a família alegava que o transtorno se devia à
“superexcitação da atividade cerebral” e da sua compulsão de “tudo escrever” (ele
estava, naquela época, tomando notas para suas obras, que reuniam poemas, peças
de teatro, artigos jornalísticos, ditos...) Esse diagnóstico inicial foi
determinante para que ele fosse dispensado do serviço público em 1862, tivesse
seus bens interditados e administrados por um tutor (e não era pouca coisa: seu
testamento relacionava, entre outras coisas, 8 casas em seu nome, valores em
dinheiro e ações que davam 400 mil réis e uma valiosa mobília, mostrando que
Qorpo-Santo era abonado em suas atividades), e passasse por uma bateria de
exames com médicos de Porto Alegre, que divergem sobre o verdadeiro estado de
saúde mental do homem que, mais ou menos nessa época, adotou, junto a seu nome,
a alcunha de Qorpo-Santo (ele próprio explica: “Se a palavra corpo-santo foi-me infiltrada em tempo que vivi
completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma
palavra hei sido compelido para este mundo”).
José
Joaquim não aceita passivamente seus diagnósticos que praticamente o
qualificavam como louco, apesar de ter assumido algumas atitudes excêntricas,
como trancar a porta da frente de seu sobrado e utilizar uma escada para
acessar o andar superior – e dizem que, certa vez, ele havia agredido, com seu
guarda-chuva, uma mulher, em plena rua, que o chamara de louco a plenos
pulmões. José Joaquim recorre, então, ao Rio de Janeiro, internando-se no
Hospício Pedro II e sendo examinado por médicos locais, cujos diagnósticos
divergiram dos especialistas de Porto Alegre, confirmando que Qorpo-Santo
estava em pleno domínio de suas faculdades mentais. Enquanto isso, continuava
escrevendo: só em maio de 1866, Qorpo-Santo compôs 8 peças teatrais –
normalmente, no século XIX inclusive, uma peça teatral, mesmo com apenas um
ato, leva meses para ser composta. O diagnóstico final se deu em 1868 – mas a
confirmação da sanidade de Qorpo-Santo não foi suficiente para dar fim à
interdição judicial de seus bens.
Em
1868, ele fundara, em Porto Alegre, o jornal A Justiça, praticamente todo redigido por ele mesmo. O jornal, com
artigos onde ele discute, ao seu modo, diversos temas – entre eles, uma curiosa
reforma ortográfica – também circulou por Alegrete. Mas ele é obrigado a
abandonar as atividades jornalísticas em 1873, já que, mesmo com a comprovação
de sua sanidade, o estigma junto à preconceituosa sociedade porto-alegrense de
então já estava firmado. Nem colaborar com os jornais maiores de sua época era
possível. Se dizendo perseguido ideologicamente, passando por dificuldades
financeiras devido à interdição de seus bens, tendo de manter a si próprio e a
família na atividade de comerciante.
Em
1877, em Porto Alegre, ele constitui uma gráfica própria, onde viabiliza, à
própria custa, a publicação de sua obra, reunida numa coletânea conhecida como Ensiqlopédia, ou Seis Mezes de Huma
Enfermidade. Estudos apontam que a obra é composta de nove volumes – dos
quais, até hoje, só se localizaram seis.
Qorpo-Santo
morreu em 1º de maio de 1883, em Porto Alegre, vítima de tuberculose.
RECONHECIMENTO TARDIO
A
obra de Qorpo-Santo só começou a ser conhecida na década de 1950, quase 100
anos depois. Diversos fatores estiveram envolvidos, além do estigma que cercou
a figura de José Joaquim de Campos Leão: também o fato de as tiragens reduzidas
da Ensiqlopédia terem sido feitos em
papel de má qualidade contribuíram para tornar a obra extremamente rara. Em
tempos recentes, a Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS) disponibilizou na internet a versão digitalizada dos
volumes do Ensiqlopédia até hoje
localizados: os originais dos volumes 2, 4 e 7 (que passaram por meticulosa
restauração), e fotocópias dos volumes 1, 8 e 9, todos adquiridos do bibliófilo
Júlio Petersen.
O
primeiro a se debruçar sobre a obra de Qorpo-Santo foi o jornalista Aníbal
Damasceno Ferreira, na década de 1950; em parceria com o diretor teatral
Antônio Carlos de Sena, Ferreira começou publicando poemas de Qorpo-Santo no
jornal porto-alegrense O Mocho, em
1955. Após uma tentativa frustrada de encenar as peças de Qorpo-Santo no Curso
de Arte dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAD/UFRGS),
Sena estreia, em 1966, no Clube de Cultura, um espetáculo que reúne três peças
de Qorpo-Santo: As Relações Naturais, Eu
Sou Vida, Eu Não Sou Morte e Mateus e
Mateusa – exatamente cem anos depois que foram escritas. A montagem foi sucesso de público e crítica, e em 1968 viajou
para o Rio de Janeiro, para participar do Festival Nacional de Teatros de
Estudantes. A crítica da época deu a Qorpo-Santo o aval de teatrólogo
revolucionário – o crítico Yan Michalski, por exemplo, escreveu que a
redescoberta do autor “torna praticamente obsoletos todos os livros de história
da dramaturgia brasileira”. A partir daí, a obra de Qorpo-Santo passa a ser
encenada e estudada. O escritor gaúcho foi, inclusive, comparado aos teatrólogos
europeus Alfred Jarry (autor de Ubu-Rei),
Eugène Ionesco (de A Cantora Careca)
e Samuel Beckett (de Esperando Godot),
os maiores nomes do teatro do absurdo. Em verdade, Qorpo-Santo teria antecedido
Jarry, Ionesco e Beckett – acabou perdendo a primazia porque suas peças nunca
foram montadas enquanto estava vivo.
Dois
dos maiores divulgadores da obra de Qorpo-Santo foram: Flávio Aguiar, professor
aposentado de literatura da USP, que publicou, em 1975, o livro Os Homens Precários, resultado de sua
dissertação de mestrado, que analisava a obra de Qorpo-Santo, demonstrando que
ele fora, sim, precursor das vanguardas artísticas do século XX, embora ancorado
na tradição teatral brasileira do século XIX; e, antes dele, e depois de
Antônio Sena, vem o professor de literatura, poeta e pesquisador mineiro Guilhermino
César (1908 – 1993), que começou os estudos e a divulgação da obra de
Qorpo-Santo no final dos anos 1960.
Esta
postagem, aliás, baseia-se no trabalho de Guilhermino César: a base é o livro Qorpo-Santo: as Relações Naturais e Outras
Comédias, com fixação de texto, prefácio e notas do professor de literatura.
As capas de algumas edições do trabalho de César, publicadas numa parceria
entre as editoras Movimento e Co-Edições UFRGS em 1969, e encontráveis com mais
facilidade em bibliotecas, vocês podem ver ao longo desta postagem.
Outra
coisa há de ser dita antes de prosseguirmos: o trabalho da recuperação da obra
de Qorpo-Santo é apenas uma pequena fração da obra de Guilhermino César,
estudioso e poeta nascido em Eugenópolis, Minas Gerais, em 15 de maio de 1908,
e falecido em Porto Alegre em 7 de dezembro de 1993, em prol da literatura
sul-riograndense. A obra de Guilhermino César também compreende livros de
poesias, crônicas e estudos referenciais sobre a literatura do Rio Grande do
Sul. Em outra ocasião, dou mais detalhes sobre a obra de Guilhermino César –
não vamos nos estender além do planejado.
Voltando
a Qorpo-Santo: em 1987, o já citado Luiz Antônio de Assis Brasil faz de
Qorpo-Santo o principal personagem do seu já citado romance Cães da Província. O “teatrólogo” também
dá nome a uma fundação cultural em atividade na cidade de Triunfo, RS (dá para
conhecer as atividades da Fundação Cultural Qorpo-Santo através do blog https://fundacaoculturalqorpo-santo.blogspot.com.br/).
Essa e outras homenagens foram aparecendo ao longo do tempo – e, de vez em
quando, suas peças são montadas por diversos grupos de teatro brasileiros.
Também já não é difícil encontrar edições de suas peças nas livrarias, físicas
e virtuais, impressas ou no formato e-book.
ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA OBRA
Ao
todo, Qorpo-Santo escreveu dezessete peças – algumas chegaram aos nossos dias
incompletas. Todas estão no volume 4 da Ensiqlopédia.
Cada uma tem a data de composição no final do texto. E praticamente todas
foram escritas em 1866, cada uma em questão de horas, escritas com incrível
rapidez. São elas:
- De 31 de janeiro de
1866, O Hóspede Atrevido ou O Brilhante
Escondido;
- Do mês de fevereiro: A
Impossibilidade da Santificação ou A Santificação Transformada (dia 12); O Marinheiro Escritor (dia 16); e Dois Irmãos (dia 24);
- Do mês de maio: Duas Páginas em Branco (dia 5); Mateus e Mateusa (dia 12); As Relações Naturais (dia 14); Hoje Sou Um; e Amanhã Outro (dia 15); Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte (dia 16); A Separação dos Dois Esposos (dia 18); O Marido Estremoso ou O Pai Cuidadoso (dia
24); e Um Credor da Fazenda Nacional (dias
26 e 27);
- Do mês de junho: Um Assovio (dia 6); Certa Entidade em Busca de Outra e Lanterna de Fogo (ambas do dia 10); e Um Parto (dia 16);
- Sem data, e incompleta,
Uma Pitada de Rapé.
- Existe ainda uma
referência não-confirmada a respeito de uma décima-oitava comédia, Elias e Sua Loucura Bíblica, sem data.
As
peças de Qorpo-Santo não são das mais acessíveis para o público comum. Tudo por
conta de uma série de características que podem ser observadas apenas pela
leitura de As Relações Naturais e Outras
Comédias.
Uma
delas, mas que nada tem a ver com as outras, foi o estigma que cercou a obra de
Qorpo-Santo: em sua época, e até tempos recentes, ele era visto pura e
simplesmente como “um alucinado que escrevia”. Comparando com outras peças
teatrais de sua época, como as do teatrólogo Martins Pena, José de Alencar,
Machado de Assis e outros escritores que se arriscaram no teatro, Qorpo-Santo
parece ser mesmo um escritor alucinado. Talvez muitos prefiram chama-lo de “um
homem à frente de seu tempo”... Mas antes, vamos ver as tais características
que tornam suas obras “inacessíveis”.
Para
começar, no original, suas peças foram escritas com uma ortografia própria, que
destoava das regras vigentes de sua época. Em artigo de 23 de outubro de 1868,
em seu jornal A Justiça, Qorpo-Santo
defende uma reforma ortográfica que, embora visando uma simplificação da
ortografia portuguesa de sua época, previa alguns exotismos, como, por exemplo,
a eliminação do H em palavras onde não soa, a supressão das letras Y e W do
alfabeto, a troca do Ç pelo S, a eliminação do U após o G nas palavras com as
sílabas “gue” e “gui” (ex: guerra – gera), bem como a eliminação dos dígrafos
com letras dobradas (RR, SS) e, claro, o uso do Q no lugar do C em algumas
palavras – por isso, apesar do Q, o nome Qorpo-Santo se lê “corpo-santo” – para
mim, no entanto, a leitura poderia ser “kuorpo-santo”. Apenas uns poucos
escritores posteriores a José Joaquim de Campos Leão ousaram adotar uma
ortografia semelhante, cheia de exotismos – mas também não se isentaram de
críticas.
Outra
característica das peças de Qorpo-Santo está na condução das tramas: as peças,
em geral, se compõem de pequenas cenas, com troca constante de personagens e
situações que parecem não ter nada a ver umas com as outras – em várias
oportunidades, os personagens mudam de aparência e até de nome. Qorpo-Santo,
por dedução, fazia uso da escrita automática, escrevendo todas as falas e
indicações dos gestos dos autores em uma única sentada, sem se preocupar em
revisar ou reler o que escreveu, confiante em seu talento. Sua maior preocupação
não é a coerência e a concatenação das situações, de modo a colocar algum
sentido nas tramas, mas sim embutir críticas sociais – à política, às leis, à
religião, ao tratamento com as mulheres, ao comportamento social como um todo –
nas falas dos personagens.
Por
conta dessa característica, lidas assim, “por cima”, as peças de Qorpo-Santo
não possuem coerência, ou, na linguagem popular, “não tem pé nem cabeça”. Ainda
assim, as ações dos personagens, e algumas falas, garantem, quando vistas no
palco, risadas do público. E muitos críticos percebem, nesse nonsense, uma fuga
dos preceitos do teatro romântico e realista, que fazia sucesso na época.
Falando
em personagens, muitas vezes eles condizem com a personalidade de seu autor. A
começar pelos nomes a eles atribuídos: Qorpo-Santo batiza os personagens
masculinos, algumas vezes, com nomes exóticos, como Truquetruque, Inesperto,
Impertinente, Malherbe, Ruibarbo e Guindaste; em outras, utiliza o
“aportuguesamento” de nomes estrangeiros, como Robespier (Robespierre) e
Almeida Garrê (Garrett); as personagens femininas muitas vezes recebem nomes
derivados da “feminização” de nomes masculinos, como Pedra, Silvestra, Mateusa,
Luduvica, Gonçala. E, em algumas ocasiões, os personagens nem nome recebem,
sendo identificados apenas como Lindo, Linda, Menina, Rapaz.
Nem
mesmo Qorpo-Santo perde a oportunidade de se fazer personagem de suas peças! Se
é verdade que o personagem de uma obra carrega um pouco da personalidade de seu
autor, então muitos dos personagens principais de Qorpo-Santo são projeções
inteiras dele mesmo, em palavras e atos. Por exemplo: o personagem
Impertinente, de As Relações Naturais, é
praticamente o alter-ego de Qorpo-Santo; e, em Hoje Sou Um; e Amanhã Outro, ele é descrito por um dos personagens
como uma espécie de sábio com teorias revolucionárias – seu nome, no entanto, é
cifrado. Em Um Credor da Fazenda
Nacional, seu nome também aparece na fala de um personagem. Modéstia não
era a melhor qualidade de Qorpo-Santo: ele praticamente se via com um olho em
uma terra de cegos, só para usar uma expressão mais popular.
Às
vezes, Qorpo-Santo não perde a oportunidade de “puxar a orelha” de alguns conhecidos
seus – alguns personagens remetem, por exemplo, a médicos e magistrados
responsáveis por sua desgraça pessoal.
Qorpo-Santo
também gostava de falas rimadas, meio musicadas, compondo ditados e
trocadilhos. Às vezes, insere versos cantados, porém não se preocupou em tentar
elaborar uma partitura musical para as mesmas.
As
personagens parecem se comportar de forma histérica e se deixando levar por
ações ilógicas. Eles gritam, cantam, e em grande parte do tempo, brigam entre
si, se criticam e criticam as instituições de seu tempo, do governo ao
casamento – apenas em poucos momentos, eles se entendem e demonstram amor
sincero uns pelos outros. Qorpo-Santo também parece não ter pena das mulheres:
elas são as vítimas mais constantes de suas críticas e de sua histeria (seria
reflexo de seu difícil casamento com Dona Inácia, já que foi a pedido dela que
seus bens acabaram interditados – enquanto José Joaquim suspeitava de adultério?).
O
sexo (segundo a reforma ortográfica de Qorpo-Santo, ficaria “seqso”) parece ser
outra obsessão de Qorpo-Santo em suas peças. Nestas são embutidas ideias
“avançadas” sobre as relações entre homens e mulheres de sua época, como, por
exemplo, a presença de prostitutas como personagens, algo incomum para o teatro
do século XIX; ações que hoje soam como abuso sexual, como um personagem
“apalpar os peitos” de sua interlocutora, dentre outros que se bolinam;
constantes discussões sobre adultério (que não raro terminam em crimes
passionais), homens divididos entre duas mulheres, casamento, convivência sobre
o mesmo teto; porém, nada disso parece superar a peça A Separação dos Dois Esposos, onde os personagens Tatu e Tamanduá, dão
a entender, nas falas finais da peça, que são homossexuais – aliás, é o
primeiro registro literário brasileiro do homossexualismo masculino tratado com
naturalidade e sem tabus. O bizarro é que, na vida real, houve indícios que
José Joaquim Leão era um conservador empedernido, bem diferente do anárquico
Qorpo-Santo das peças. É o caso literal do Hoje
Sou Um; e Amanhã Outro...
Além
do mais, as peças de Qorpo-Santo possuem exigências técnicas que não seriam
possíveis com as limitações do teatro do século XIX, como por exemplo,
personagens que simulam perder partes do corpo no palco, personagens
contracenando com animais vivos, tirados de um saco, ou uma peça que termina
com “milhares de luzes que descem e ocupam o espaço do palco”. Os textos das
peças ainda contam com indicações opcionais para o término: ela pode terminar
harmonicamente, com todos cantando, ou em estado de caos e bagunça, a escolha é
dos atores.
O
nonsense presente no teatro de Qorpo-Santo, antes de tudo, é um reflexo do
inconformismo do autor com os costumes de sua época. Principalmente por causa
das muitas interdições e perseguições que sofreu ao longo da vida. Isso está
claro no modo como Luiz Antônio de Assis Brasil retratou o homem em Cães da Província. Teatro do absurdo é
justamente isso: o questionamento da sanidade da sociedade, através de um
incômodo e surreal espelho de sua época. Convenhamos: praticamente, pouca coisa
mudou da época de Qorpo-Santo para cá.
QORPO-SANTO SEGUNDO GUILHERMINO CÉSAR
Bem.
A edição usada como base para a postagem, da edição de As Relações Naturais e Outras Comédias, com organização, estudo
crítico e notas de Guilhermino César, e publicada pelas editoras Movimento e
Co-Edições UFRGS, é a segunda, de 1976. Na época, só haviam sido encontradas
três edições integrais da Ensiqlopédia –
os volumes 2, 4 e 7, em arquivos particulares, como o do professor Dário de
Bittencourt e o do escritor Olyntho Sanmartin.
Guilhermino
César tomou por base para a publicação nove comédias de Qorpo-Santo: As Relações Naturais; Mateus e Mateusa; Hoje
Sou Um, e Amanhã Outro; Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte; Um Credor da Fazenda
Nacional; Um Assovio; Certa Entidade em Busca de Outra; Lanterna de Fogo; e
Um Parto.
Guilhermino
César, na transcrição dos peças, tomou o cuidado de adaptá-las, onde foi
necessário, para a ortografia vigente nos anos 1970. O livro inclui um extenso
estudo crítico introdutório sobre Qorpo-Santo, onde se incluem: trechos de
poemas do homem, onde se nota que eles obedecem uma excêntrica construção
literária, com musicalidade e ritmo; uma autobiografia de Qorpo-Santo, extraída
de um dos volumes da Ensiqlopédia; transcrição
de documentos de sua época, como os autos dos exames psiquiátricos a que foi
submetido, trechos de artigos de Qorpo-Santo para jornais (incluindo o
referente à reforma ortográfica) e o testamento, com a vultosa relação de bens
deixados para a família. Daí, para as peças selecionadas.
Começando
com As Relações Naturais, em quatro
atos, uma coleção de cenas onde Qorpo-Santo discute o relacionamento mais
adequado para o homem e a mulher – as relações ditas “naturais”, segundo o
autor, seriam baseadas unicamente no sexo, sem o envolvimento amoroso. O autor
não estava nem aí para o casamento – nessa peça, aparecem prostitutas como
personagens, e insinuações de incesto.
A
peça seguinte, Mateus e Mateusa, em
um ato e em um alegre tom farsesco, parece ser a peça que mais faz sentido.
Trata do relacionamento cheio de discussões violentas de um casal de velhos,
com a intervenção de suas jovens, carinhosas e algo interesseiras três filhas.
Hoje Sou Um; e Amanhã Outro, em
três atos, se apresenta como um caso de dupla personalidade, mas demanda
atenção na leitura de seu roteiro. A peça se passa em uma corte, onde um rei
precisa lidar com um conflito armado que ameaça seu reino. Nessa peça, em um
momento, o ministro real descreve a vida e o pensamento de um certo sábio
gaúcho – um tal de Qorpo-Santo – autor de uma revolucionária teoria sobre a transmigração
das almas.
Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte, em
dois atos, trata de uma história de amor que termina em tragédia: dois homens,
disputando uma mesma mulher. O grande forte dessa peça é o elemento-surpresa:
um dos homens é o verdadeiro marido da mulher, e o outro a roubou. Com quem ela
deve ficar? Qual dos dois deve pagar por seu “crime” passional?
Um Credor da Fazenda Nacional, em
dois atos, é uma peça mais
burocrática, apesar de rápida – trata de um caso de cobrança. Nela estão
embutidas algumas críticas à situação da política de seu tempo e à burocracia
estatal.
Um Assovio, em
três atos e um quadro, e ambientada em Paris, França, trata da complicada
relação entre um patrão e seu empregado, numa crítica aos janotas, aos rapazes
ricos e ociosos de sua época.
Certa Entidade em Busca de Outra, em
dois atos, trata das maluquices de um velho homem e seu relacionamento com uma
donzela. A peça conta, inclusive, com a “participação especial” de Satanás, mas
que resolve não ficar muito tempo para ver o que acontece. A peça também contém
insinuações de abuso sexual (aos olhos de hoje).
Lanterna de Fogo, em
três atos e dois quadros, é a peça mais longa e elaborada do “teatrólogo”.
Trata da vida, do envelhecimento precoce e da morte de um homem, Robespier,
que, entre relacionamentos difíceis com diversas pessoas, passa sua vida à
procura de uma herança deixada por seu pai.
Por
fim, Um Parto, em três atos, começa
com um monólogo, com uma degustação de comidinhas acompanhada de reflexões
“filosóficas”, e prossegue com quatro estudantes envolvidos com o parto em
questão – de uma cabra.
Por
estas descrições, não tente entender o que “o alucinado que escrevia” queria
dizer: o melhor que você tem a fazer, leitor, é tentar ler a peça completa.
Talvez
tenha sido por causa dos tabus correntes nos anos 1960 que Guilhermino César
não incluiu A Separação dos Dois Esposos na
sua relação de peças selecionadas de Qorpo-Santo. Sabem como é, Regime Militar
e tal. Mas as incluídas no livro não tem nada de subversivas – ao menos, na
primeira olhada – e, até onde sabemos, não sofreram censura por parte dos
“homens da tesoura” dos anos 1970. Censurado, isso sim, foi o grupo de teatro
que encenou as peças em 1969, mas isso é outra história.
Tanta
gente vê esta realidade como absurda. Isso porque ainda não leram a respeito de
Qorpo-Santo... Bem, vocês agora tirem suas conclusões. Terminaremos em harmonia
ou em caos e bagunça?
Referências:
E o
livro referido: LEÃO, Joaquim José de Campos. QORPO-SANTO: As Relações Naturais e Outras Comédias. Fixação do
texto, prefácio e notas por Guilhermino César. Porto Alegre: Movimento;
Co-Edições UFRGS, 1976 (2ª edição).
Esta
postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado originalmente
no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Este
livro, como tantos outros resenhados aqui, está disponível na Biblioteca
Pública Theobaldo Paim Borges, de Vacaria, RS. Procurem e surpreendam-se. Em
caso de dúvidas, pergunte a uma das bibliotecárias, elas podem ajudar.
Em
breve, nova resenha, novo autor para o pessoal conhecer.
Até
mais!
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