segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Seção Resenha de Livros: O MAIOR CRIME DA TERRA

Olá.
Aqui é o Rafael Grasel novamente.
Em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública, trago, hoje, mais uma resenha de livros – e, hoje, flertando com o macabro.
Este é um livro de história, dos antigos – apesar de ter sido lançado em um tempo próximo: os anos 1990. Estamos em época de revisionismo de nosso passado – infelizmente, a análise de documentos históricos está nos fazendo ver: o passado não foi como os historiadores positivistas, ou da “direita”, conceberam; nem tanto como os revisionistas, da “esquerda”, divulgaram há tanto tempo.
O livro escolhido é O MAIOR CRIME DA TERRA, de Décio Freitas.

O AUTOR
Houve um tempo em que ser um historiador da linha marxista dava grande status a um autor de livros de história; hoje, vemos que os marxistas não são assim tão confiáveis em sua revisão dos fatos históricos. Tudo bem, eles deram voz aos personagens menos favorecidos da História, como os escravos, os trabalhadores e os miseráveis, os menos passíveis de terem seus nomes e ações registrados no mármore da História, isso quando seus nomes ou ações eram registrados; mas, ao mesmo tempo, criaram uma cultura do “coitadismo” na História, em que as elites econômicas e políticas são as grandes vilãs, explorando e oprimindo as classes menos favorecidas, sem qualidades redentoras; criaram um contínuo rancor ao sistema capitalista, mesmo que ele seja seguro (ou talvez nós, que vivemos sob esse sistema, que estamos alienados à realidade, segundo os marxistas); e pregam uma doutrina da necessidade de substituição do capitalismo explorador e alienante por doutrinas político-econômico-sociais sem garantias de resultados positivos – tais doutrinas (vocês sabem do que falo: o comunismo!), comprovadamente, faliram, nos países em que foram aplicados, por conta de suas contradições internas – para garantir a coletivização, acabaram suplantando liberdades individuais e implantando ditaduras com caçadas a opositores. Se entenderam o exposto acima, então também são entusiastas em História, certo? Estariam também abertos ao debate e à dialética (que também é uma característica da historiografia marxista)?
Bão. Escrevi essas palavras acima porque Décio Freitas, o referido autor do referido livro acima, foi um historiador que seguia a linha marxista. Em sua época, era respeitado; hoje, sua confiabilidade está sob suspeitas.
Décio Bergamaschi Freitas nasceu em Encantado, RS, em 1922, e faleceu em Porto Alegre, RS, em 2004. Ele é formado em direito pela Universidade do Rio Grande do Sul – ainda na faculdade, Freitas filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro e começou a exercer, também, o jornalismo. Ele atuou como repórter para os jornais gaúchos Correio do Povo, Diário de Notícias e Tribuna Gaúcha. Após o Golpe de 1964, ele fugiu para São Paulo, para o Rio de Janeiro e para Montevidéu, capital do Uruguai. Aliás, foi em Montevidéu que Freitas publicou seu primeiro livro, Palmares – la Guerrilla Negra, em 1971. No mesmo ano, o livro foi publicado no Brasil, sob o título Palmares – A Guerra dos Escravos.
Décio Freitas alcançou notoriedade, ao longo dos anos, como “Historiador dos Vencidos” – foi, inclusive, um dos primeiros a lançar luz sobre os movimentos de resistência dos negros à escravidão no Brasil Colônia, e a dar visibilidade ao então desconhecido movimento do Quilombo de Palmares e de seu líder mais importante, Zumbi, numa época em que ainda se considerava como grande feito do movimento negro o gesto “altruísta” de uma branca: a Princesa Isabel, signatária da Lei Áurea de 1888.
Seus livros seguintes foram: Insurreições Escravas (1975); Escravos e Senhores-de-Escravos (1977); Cabanos – Os Guerrilheiros do Imperador (1978); O Escravismo Brasileiro (1980); O Capitalismo Pastoril (1980); Escravidão de Índios e Negros no Brasil (1980); O Socialismo Missioneiro (1982); A Revolução dos Malês (1985); Brasil Inconcluso (1986); A Comédia Brasileira (1994); O Maior Crime da Terra (1996); O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil (1999); República de Palmares (2004); e A Miserável Revolução das Classes Infames (2005 – póstumo).
Hoje, a confiabilidade de Décio Freitas, como disse, está sob suspeita – há historiadores que acusam Freitas de ter criado dados de seus livros. Teria sido Freitas quem levantou dados sobre a suposta infância de Zumbi dos Palmares. Quem afirma sobre a polêmica acerca de Freitas foi o jornalista Leandro Narloch, em seu livro Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, publicado em 2011:
“A imaginação sobre Zumbi foi mais criativa na obra do jornalista gaúcho Décio Freitas, amigo de Leonel Brizola e do ex-presidente João Goulart. No livro Palmares: A Guerra dos Escravos, Décio afirma ter encontrado cartas mostrando que o herói cresceu num convento de Alagoas, onde recebeu o nome de Francisco e aprendeu a falar em latim e português. Aos 15 anos, atendendo ao chamado do seu povo, teria partido para o quilombo. As cartas sobre a infância de Zumbi teriam sido enviadas pelo padre Antônio Melo, da vila alagoana de Porto Calvo, para um padre de Portugal, onde Décio as teria encontrado. Ele nunca mostrou as mensagens para os historiadores que insistiram em ver o material. A mesma suspeita recai sobre outro livro seu, O Maior Crime da Terra. O historiador Claudio Pereira Elmir procurou por cinco anos algum vestígio dos registros policiais que Décio cita. Não encontrou nenhum. ‘Tenho razões para acreditar que ele inventou as fontes e que pode ter feito o mesmo em outras obras’, disse-me Claudio no fim de 2008. O nome de Francisco, pura cascata de Décio Freitas, consta até hoje no Livro dos Heróis da Pátria da Presidência da República.” (NARLOCH, 2011, p. 87).

O EXERCÍCIO DA HISTÓRIA
Bem, escolhi, de Décio Freitas, O MAIOR CRIME DA TERRA, justo um dos referidos livros que estão sob suspeita.
O MAIOR CRIME DA TERRA – O AÇOUGUE HUMANO DA RUA DO ARVOREDO – PORTO ALEGRE, 1863 – 1864 foi publicado em 1996, pela editora Sulina, e lança luz sobre um episódio obscuro e praticamente lendário da história da cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul.
Escrito em tom de romance policial, Décio Freitas reconta, em O MAIOR CRIME DA TERRA, a história tenebrosa de José Ramos, o linguiceiro. Entre 1863 e 1864, ele teria assassinado várias pessoas, com a ajuda de seus cúmplices, a esposa Catarina Palse e o também açougueiro Carlos Claussner, e transformado os corpos das vítimas em linguiça – a qual era muito apreciada pela população da então vila de Porto Alegre.
Freitas conta, no primeiro capítulo do livro, que a ideia da pesquisa nasceu em 1948, quando, a pedido do jornal Diário de Notícias, ele escreveu uma série folhetinesca sobre os crimes célebres de Porto Alegre, que fez muito sucesso e permitiu ao jornal superar, em vendas, o então concorrente Correio do Povo. O primeiro capítulo dessa série versa sobre o “caso da linguiça humana”. Na fase de pesquisa, o jovem Freitas, recém-formado em advocacia, percebeu que o assunto era um tabu para a população porto-alegrense: praticamente ninguém da cidade conseguia conceber a ideia de ter se transformado, involuntariamente, em canibal. As provas, segundo Freitas: primeiro, porque, por pressão de autoridades locais, o folhetim sobre o caso da “linguiça humana” no Diário de Notícias sofreu limitações e não foi conclusivo sobre o caso; segundo, porque os processos judiciais levantados contra José Ramos, em um total de três, sumiram dos Arquivos Públicos. Freitas teria, felizmente, fotocopiado dois deles – o segundo e o terceiro processos. O primeiro sumiu; os outros dois também.
Freitas só voltou ao assunto nos anos 1980: em 1986, o escritor Luiz Antônio Assis Brasil incluiu o episódio em seu romance, Cães da Província, e Freitas forneceu subsídios ao autor. Depois, foi a vez de Roger Kintelsen, historiador norte-americano, consultar Freitas acerca do episódio, para incluí-lo em seu trabalho sobre cultura popular gaúcha. Em 1993, o Arquivo Histórico publicou a transcrição do segundo processo contra José Ramos, o único que mantinha na íntegra (segundo Décio afirma). E, em 1996, Freitas publicou O MAIOR CRIME DA TERRA. Mas hoje reside a suspeita de que Freitas, na realidade, criou as fontes, visto que a referida busca pelos processos contra José Ramos não deu em nada... Isso quem disse foi Narloch.
Ainda assim, Freitas também foi consultado pelo cronista esportivo e escritor David Coimbra, um dos mais populares cronistas do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Coimbra escreveu seu primeiro romance longo, Canibais (2004), baseado no episódio.

O GRANDE TABU PORTO-ALEGRENSE
Em O MAIOR CRIME DA TERRA, Freitas inclui também considerações filosóficas sobre a natureza humana – afinal, o que teria levado José Ramos, um ex-policial, culto e algo sensível, apreciador de poesia e das óperas apresentadas no Teatro São Pedro, a matar cinco (e talvez mais) pessoas inocentes, com golpes de machado na cabeça e talhos no pescoço, e depois as esquartejado e transformado seus corpos em linguiça? Freitas, evidentemente, precisou analisar os fatos à luz das teorias psicológicas, tratando dos crimes não como casos policiais em si, mas fruto de um desvio da natureza humana, de um retorno do então homem civilizado ao instinto animal que contraria preceitos bíblicos. E, mais que isso: induzindo outros homens a ferir leis divinas inconscientemente – já que a linguiça humana era muito apreciada e vendia bem.
O episódio não ficou limitado a Porto Alegre, no que diz respeito à divulgação: ele foi noticiado por um jornal francês (o título do livro faz referência ao da referida notícia, do jornal Le Temps) e foi comentado até por Charles Darwin, o pai do evolucionismo.
O episódio de comercialização de carne humana e de canibalismo involuntário ocorrido em Porto Alegre provavelmente não foi o primeiro da História, dentre tantos outros casos de canibalismo registrados na História, mas se sabe que não foi o único: um caso similar ocorreu na Alemanha, entre 1909 e 1924 – o alemão Karl Denke, da cidade de Munsterberg, comercializava salsichas feitas com a carne dos hóspedes de sua hospedaria. Tal como Ramos, Denke era um cidadão acima de qualquer suspeita, querido na cidade, principalmente pelas crianças, que o apelidaram de “papai Denke”. Estima-se que tenha feito 41 ou mais vítimas, todas de fora da cidade de Munsterberg, que também eram “aproveitadas” para fazer acessórios de couro, como sapatos e cintos! Ele se matou na cadeia no dia em que foi preso. (Fonte: Revista Mundo Estranho, edição 148, janeiro de 2014).
O fato inicial é que os crimes da Rua do Arvoredo – atualmente conhecida como Rua Fernando Machado, localizada na Cidade Baixa de Porto Alegre – assombrou a vila, então com 20 mil habitantes, naqueles anos de 1863 e 1864. A cidade, que aos poucos se urbanizava, mas que não possuía um sistema de saneamento eficiente, então convivia com a insegurança, principalmente porque estava para começar a Guerra do Paraguai (1865 – 1870); e os descendentes de portugueses viviam um conflito com os imigrantes alemães que se estabeleceram nos arredores – São Leopoldo e outras localidades do Vale dos Sinos. Conflito agravado por conta da Questão Christie, conflito diplomático entre Brasil e Inglaterra ocorrido em 1861 – um jornal publicado na Colônia Alemã se posicionou a favor da Inglaterra, o que despertou o ódio dos brasileiros contra os alemães.
Bem. José Ramos, nascido em Santa Catarina, era filho de um ex-combatente da Revolução Farroupilha (1835 – 1845), até que, um dia, ao defender a mãe das agressões do pai, o rapaz fere aquele mortalmente, e é obrigado a fugir para a então Província de São Pedro, onde atua como policial até o dia em que tenta degolar um prisioneiro célebre – Campara, o “Robin Hood dos Pampas” – de dentro da cela. Ele então passa a atuar, além da fachada da atividade de açougueiro, como informante do delegado Dario Callado, nordestino conhecido tanto pelo extremo autoritarismo como pelos casos que teve com atrizes que se apresentavam no Teatro São Pedro.
Catarina Palse, esposa de José Ramos, nascera na Transilvânia, atual Romênia, então parte do Império Alemão, e, para todos os efeitos, ela era de nacionalidade alemã; sofrera agressões ainda antes de migrar ao Brasil, e ainda viu seu primeiro marido se suicidar durante a viagem para a América. E teria sido cúmplice de Ramos: segundo a versão popular, Catarina, possuidora de estonteante beleza, atraía as vítimas para a casa onde vivia com Ramos – o número 27 da Rua do Arvoredo, casa tida como amaldiçoada – para uma inocente conversa ou sob sedução, e o homem primeiro fendia a cabeça da vítima com uma machadada; depois, degolava, como era costume desde a época da Revolução Farroupilha. Ramos, depois, esvaziava os bolsos das vítimas e se apossava de seus bens.
Já a ideia de transformar as vítimas em linguiça teria partido do então cúmplice Carlos Claussner, também alemão, e açougueiro. Segundo um posterior depoimento dado por Catarina Palse à polícia, Ramos matava as vítimas atraídas por Catarina, e Claussner se encarregava de transformar as vítimas em linguiça. Os restos mortais eram dissolvidos em ácido ou jogados no Rio Guaíba. Até aqui, Ramos teria feito cinco vítimas, talvez mais (descontando o próprio pai e algumas mortes cometidas ainda no exercício da atividade policial). Como um cúmplice involuntário, ainda havia Henrique, o corcunda, também alemão, que teve participação em algumas das mortes, ajudando a carregar os restos mortais para fora da casa no. 27.
O começo da ruína de Ramos, então um cidadão acima de qualquer suspeita, começou quando resolveu matar o cúmplice, Carlos Claussner, em setembro de 1863, após um desentendimento em que o açougueiro ameaçou entregar o linguiceiro à polícia. Mas Ramos só foi preso depois de ter feito três outras vítimas, mas as quais resolveu apenas desovar os corpos em um poço no quintal da casa: o comerciante português Januário, o caixeiro deste, então menino, e um cachorro, pertencente ao menino, que teve de ser morto porque latia em frente à casa onde o dono desaparecera. Os três foram mortos em 15 de abril de 1864, mais de sete meses depois da morte de Claussner.
O primeiro dos três processos contra Ramos, instaurados a partir de sua prisão em abril de 1864, referia-se à morte de Januário e seu caixeiro; o segundo processo era referente à morte de Claussner; e o terceiro, aos crimes da “linguiça humana”. Estes só vieram à tona em agosto de 1868, quando, após muita insistência de Catarina, que também fora presa, em falar com o delegado, e após ter apresentado um caderno com sua confissão a Dario Callado, a mulher de Ramos depõe na polícia e revela os crimes do marido, que vai a novo julgamento. Negando tudo, claro, mas desmascarado por novas testemunhas.
Catarina é libertada em 1877 após cumprir pena, desaparece de Porto Alegre até 1883 – há notícias que ela tenha se juntado à seita dos muckers, liderada por Jacobina Maurer, em São Leopoldo (aliás, no depoimento a Dario Callado, Catarina se declarou mucker) – e morreu em 1891. Já Ramos conseguiu, não se sabe como, ter sua pena de morte suspensa e substituída por prisão perpétua, e vive como um prisioneiro privilegiado, até morrer, em 1893, leproso, na Santa Casa de Porto Alegre.
Por pouco, o episódio não põe mais lenha no conflito entre brasileiros e alemães em Porto Alegre, ainda mais que envolvia alemães, vistos como gente pouco confiável. E, por muitos anos, não se comeu mais linguiça em Porto Alegre. Começaria, desse modo, o tabu que supostamente atrapalhou o trabalho de Décio Freitas.
A partir desse episódio, Freitas também promove um exercício de micro-história, fazendo também a reconstituição de aspectos da Porto Alegre do século XIX. Ele começa a narrar a história a partir dos últimos assassinatos, criando, dessa forma, algum suspense para os leitores. Alguns trechos foram puro recurso de ficção, como o que Ramos conta a Catarina um sonho que teve, em que seria enforcado. Freitas até contesta a suposta beleza de Catarina Palse.
Sendo pouco confiável ou não, O MAIOR CRIME DA TERRA é a melhor fonte que temos sobre o crime que chocou Porto Alegre – e sabe-se lá se, depois do romance de David Coimbra, eles já aceitam o fato melhor que antes.

Esta resenha é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
O presente livro está disponível na Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges. Se houver dificuldades para encontrar, perguntem a uma das bibliotecárias, que poderão lhe auxiliar.
Em breve, uma nova resenha de livro para os leitores. Não deixe de frequentar a Biblioteca!

Até mais!

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Como fazer uma estante usando um livro

 A dica de hoje é como fazer uma estante flutuante usando um livro, assista o vídeo e faça a sua.

Fonte: Canal Manual do Mundo


domingo, 6 de novembro de 2016

Resenha: O caso dos dez negrinhos


Assista o vídeo com a resenha do livro da Agatha Christie: "O caso dos dez negrinhos" e faça uma visita na Biblioteca Pública Municipal de Vacaria para retirá-lo. Você tem o prazo de quinze dias para ler, podendo renovar por mais quinze dias. O atendimento é de segunda a sexta-feira na Rua Borges de Medeiros, 1359 - Centro, ao lado da Catedral Nossa Senhora da Oliveira, das 7h45min às 11h30min e das 13h às 17h30min.

Vídeo de Gabriela do canal: É o último, juro.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Texto: O NEGRINHO DO PASTOREIO

Olá.
Aqui é o Rafael novamente.
No dia 31 de outubro, alguns setores da cultura brasileira comemoram o Dia do Saci, como uma forma de promoção da cultura e do folclore nacionais e como forma de resistência à importação do Halloween norte-americano, altamente promovido pela mídia.
Como contribuição para o Dia do Saci, trago hoje um texto: a versão de um escritor gaúcho para uma das mais tradicionais histórias folclóricas do Rio Grande do Sul. Acompanha vocabulário e duas ilustrações feitas por mim. Também pode ser utilizado por professores para as aulas de português e leitura.

O NEGRINHO DO PASTOREIO

Versão: Fidélis Dalcin Barbosa
Baseada na versão original de Simões Lopes Neto

            O minuano – vento gelado que sopra dos Andes – varria inclemente os pampas sem fim do Rio Grande do Sul. Medonho, aquele inverno! Feias chuvaradas encharcando os campos. Nevadas e geadas cobrindo as coxilhas de branco qual imenso lençol...
            Domingo de sol. Domingo bonito mas frio demais para uma carreira. Um estancieiro, muito rico e muito mau, ia correr com um vizinho. O cavalo baio do primeiro tinha fama tanto como o cavalo mouro do adversário.
            A parada era de mil onças de ouro. Deveriam ser distribuídas entre os pobres. Mas o estancieiro mau não concordou. Se ele ganhasse, o dinheiro seria todo dele, somente dele. Nunca ninguém viu um fazendeiro tão pão-duro como aquele.
            Por causa de sua maldade e da sua avareza, ninguém gostava dele. Vivia quase sozinho, o miserável. Na sua casa, moravam com ele apenas um filho, impertinente como o pai, e um negrinho. Um negrinho muito bom, bonito lustroso. Não tinha nome, não tinha pai, não tinha mãe e nem padrinho, o coitado. Por isso, Nossa senhora era a sua madrinha.
            O Negrinho cuidava dos cavalos do estancieiro cauíla e era ele que faria de jóquei da carreira. Se porventura o baio perdesse, ninguém pode imaginar o que o malvado do estancieiro faria daquele pobre escravo. E não é que o estancieiro mau perdeu mesmo?
            - Valha-me a Virgem madrinha Nossa Senhora! – gemeu o Negrinho.
            É verdade, os pobres se alegraram porque o ganhador distribuiu logo todo o valor das mil onças. Mas o Negrinho, nem queiram saber.
            O estancieiro voltou para casa com a alma em pedaços. Apeou do cavalo. Mandou amarrar o Negrinho a um palanque e deu-lhe uma tremenda surra de relho.
            De madrugada saiu com o Negrinho pelo campo. Parou no alto de uma coxilha e falou:
            - Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste. Trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos... O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
            Chorando, lá ficou o coitadinho dia e noite, passando fome, passando frio. Enfim, enfraquecido e cansado, caiu com a soga do baio enleada no pulso. Deitou-se encostando a cabeça a um cupim.
            De noite, vieram as corujas. Voaram em roda, paradas no ar, sem mover as asas, os olhos reluzentes, amarelos, olhando para o Negrinho.
            Ele teve medo. Rezou à sua madrinha, Nossa Senhora, e adormeceu.
            Ia alta a noite, quando chegou o guaraxaim. Farejou o Negrinho. Depois roeu a guasca da soga, soltando o baio, que fugiu a galope, e toda a tropilha com ele, escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas canhadas.
            Com o tropel, o negrinho acordou. O guaraxaim fugiu, esganiçando. Os galos cantavam, longe.
            De manhã, a cerração encobria os campos e o Negrinho não enxergava o pastoreio. Chorou, pensando no castigo que iria levar.
            O filho do estancieiro, aquele menino mau, foi lá e voltou logo a contar ao pai que os cavalos não estavam...
            Então, o Negrinho foi outra vez amarrado pelos pulsos ao palanque, tomando tremenda surra de relho.
            Quando anoiteceu, o estancieiro ordenou que o Negrinho fosse campear a tropilha.
            Rengueando e gemendo, o Negrinho saiu. Rezou à sua madrinha, Nossa Senhora. Foi ao oratório da casa. Tomou o toco de vela aceso em frente da imagem e andou pelo campo.
            Foi andando, andando, pelas coxilhas e canhadas, pela beira dos lagões, paradeiros e restingas. E em toda a parte a vela ia pingando cera no chão. E de cada pingo nascia uma luz. Nasceu tanta luz, tanta luz, que clareava tudo.
            O gado ficou deitado. Os touros não escarvaram e as manadas xucras não dispararam. E os cavalos, vendo o Negrinho, relincharam todos juntos, contentes.
            O Negrinho montou no baio e tocou a tropilha por diante, até o alto da coxilha. Deitou-se e no mesmo instante se apagaram todas as luzes. Dormiu, sonhando com a Virgem, sua madrinha.
            E não apareceram as corujas, nem o guaraxaim. De manhã, o menino mau, o filho do estancieiro, foi e enxotou os cavalos, que dispararam campo afora, desguaritando-se nas canhadas.
            O tropel acordou o Negrinho. E o menino mau foi dizer ao pai que os cavalos não estavam lá...

* * *

            Aí o estancieiro mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos ao palanque e deu-lhe tremenda surra de relho. Deu-lhe tanto, recortando as carnes, o sangue vivo escorrendo do corpo...
            O Negrinho invocou sua madrinha, Nossa Senhora. Soltou um suspiro fundo e triste, parecendo morrer...
            O estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho numa panela de formigueiro. Depois assanhou bem as formigas.
            Quando as formigas principiaram a trincar-lhe o corpo, o estancieiro foi embora sem olhar para trás.
            Naquela noite, o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo mil vezes, que tinha mil filhos, mil negrinhos, mil cavalos baios e mil onças de ouro... e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno...
            Depois houve três dias de cerração forte, e três noites o estancieiro teve o mesmo sonho.

* * *

            A peonada correu o campo todo, mas ninguém viu a tropilha e nem o rastro.
            O estancieiro foi ao formigueiro. Viu lá o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, são e salvo, a sacudir as formigas do corpo. Ao lado, o cavalo baio e junto a tropilha dos trinta tordilhos, e, em frente, fazendo guarda ao pobrezinho, viu a Virgem Nossa Senhora, sua madrinha. Quando viu aquilo, o senhor caiu de joelhos diante do escravo.
            E o Negrinho, sarado e risonho, montou o baio em pelo e sem rédeas, chupou o beio e tocou a tropilha a galope...
            Na mesma noite, os posteiros e andantes, que dormiam em ranchos e camas de macega, ao relento, os tropeiros e carreteiros, viram, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocados pelo Negrinho, gineteando em pelo, em um cavalo baio...
            Hoje, nos campos do Rio Grande do Sul, quem perder uma coisa, o que for, acende uma vela à madrinha do Negrinho, Nossa Senhora, e então o Negrinho do Pastoreio campeia e acha...

(Extraído de: BARBOSA, Fidélis Dalcin. O Filho do Baby Doll. Canoas: Tipografia e Editora La Salle, 1992. P. 60 – 63)

VOCABULÁRIO:
Inclemente: severo, rigoroso;
Coxilhas: morros dos pampas gaúchos, sem vegetação arbórea constante, onde prevalece a rama, o capim, a vegetação rasteira;
Carreira: pequena corrida de cavalos;
Baio: cavalo de pelo castanho-amarelado;
Mouro: cavalo preto salpicado de branco;
Onças: antiga moeda de ouro circulante no Rio Grande do Sul do século XIX;
Impertinente: Rabugento, importuno;
Cauíla: avarento;
Apeou: desmontou do cavalo;
Relho: chicote de couro cru;
Quadra: área de cerca de 132 m2;
Cancha: raia, pista de corrida;
Tordilho: cavalo de pelo negro com grandes manchas brancas;
Piquete: guarda, vigia;
Soga: corda que prende os animais a um poste;
Enleada: enrolada;
Cupim: pedaço de couro (provavelmente, retirado da corcova do boi zebu, cuja carne recebe o mesmo nome);
Guaraxaim: animal mamífero e carnívoro da família dos canídeos;
Guasca: tira de couro;
Escaramuçando: rodopiando;
Desguaritando-se: extraviando-se;
Canhadas: vales entre colinas e coxilhas;
Esganiçando: gritar com voz aguda, semelhante à de um cão;
Cerração: nevoeiro;
Campear: procurar pelos campos;
Rengueando: arrastando as pernas;
Paradeiro: local em que se para;
Restinga: monte de areia ou pedras perto de locais com água;
Escarvar: cavar o solo superficialmente, com a pata;
Xucras: que não foram domadas;
Enxotou: espantou;
Panela de formigueiro: buraco de formigueiro construído no chão;
Trincar: morder, cortar a mordidas;
Peonada: grupo de peões de estância;
Posteiro: empregado rural responsável pela vigia junto à cerca da fazenda;
Macega: capim seco; tipo de erva daninha;

Relento: ao ar livre, sem proteção.

Em breve, nova contribuição para o blog da Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges.
O livro de onde o texto foi extraído se encontra no acervo da Biblioteca. Um motivo para vocês visitarem.
Aproveitem e conheçam o blog Estúdio Rafelipe: https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/.
Até mais!