segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
domingo, 18 de dezembro de 2016
Seção Resenha de Cinema: A PAIXÃO DE JACOBINA
Olá.
Aqui
é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje,
volto a falar de filme – esta é a Seção Resenha de Cinema, falando de
adaptações de livros para a Sétima Arte.
Volto
a falar da Revolta dos Mucker. Volto a falar de Jacobina Maurer. E hoje vou
falar do produto mais “comercial” a respeito do conflito messiânico da zona de
imigração alemã do Rio Grande do Sul do século XIX.
Anteriormente,
falei a respeito do livro Videiras de
Cristal, de Luiz Antônio de Assis Brasil, a recriação ficcional em livro
mais famosa do conflito. Hoje, então, resenho a adaptação cinematográfica do
livro, A PAIXÃO DE JACOBINA. Ou melhor, adaptação, nem tanto adaptação: o filme
de fato foi mais inspirado no livro
do que adaptado do livro. Já explico.
Para
começar, A PAIXÃO DE JACOBINA, filme brasileiro lançado em 2002, foi dirigido
por Fábio Barreto, diretor que se consagrou com O Quatrilho (1995),
adaptação do romance do escritor gaúcho José Clemente Pozenato, que até concorreu ao Oscar de melhor
filme estrangeiro. Barreto também é conhecido pelos filmes Luzia-Homem (1988), Bela
Donna (1997), Nossa Senhora do
Caravaggio (2007) e Lula – O Filho do
Brasil (2009). Desde dezembro de 2009, após sofrer um grave acidente de
carro, Barreto não dirige mais filmes. Após uma delicada cirurgia, em janeiro
de 2010, está em casa, em tratamento.
O
roteiro de A PAIXÃO DE JACOBINA é de Leopoldo Serran. E seu elenco é
basicamente composto de atores consagrados, “globais”.
Antes
de A PAIXÃO DE JACOBINA, a Revolta dos Mucker (1868 – 1874), o qual nem me
darei ao trabalho de refrescar a memória dos leitores, havia sido retratada,
nos cinemas, no filme Os Mucker (1978),
de Jorge Bodanzky e Wolf Gauer. E, visualmente, A PAIXÃO DE JACOBINA tem muito
jeito de ser um filme mais palatável ao público que seu antecessor. O filme de
2002 tem mais recursos que o de 1978: mais claridade, imagens mais nítidas, músicas
de fundo, efeitos especiais, interpretações em linguagem mais novelesca e até
uma inserção de merchandising. Além disso, enquanto o filme de 1978 foi gravado
no estado de São Paulo, as locações do filme de 2002 são mais próximas do local
dos acontecimentos: o filme foi gravado em Sapiranga e outros municípios do
Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. As locações do filme, hoje, fazem parte
do roteiro turístico da cidade de Sapiranga.
Porém,
é menos fiel à realidade histórica: os diálogos são todos em português (enquanto
o filme de 1978 tinha diálogos alternando entre português e alemão hunsrückisch) e há deturpação dos fatos
até mesmo em relação ao livro-fonte. Até mesmo uma inserção de uma trama
romântica onde não havia.
Bão.
O filme de Fábio Barreto também procura retratar a líder messiânica Jacobina
Maurer (interpretada por Letícia Spiller), desta vez com um recorte de tempo
maior: ela é mostrada rapidamente na infância, depois na adolescência, e no
fim, na vida adulta. Antes e depois de se tornar a “Mutter” dos colonos alemães
abandonados pelo poder público da época, antes e depois de dizer-se encarnação
de Cristo na Terra, antes e depois de se tornar profetiza. Claro que essa vida
é mostrada com um pouco de “trapaça” e deturpação.
A
deturpação começa através do personagem Franz (Thiago Lacerda). Esse personagem
não existiu nem na vida real, nem no livro de Assis Brasil – ele é cunhado de
Jacobina, mas tem outro nome. Bem: nas cenas iniciais do filme, Jacobina
demonstra, de um modo mal disfarçado, que é apaixonada por Franz, no dia do
casamento deste. Porém, ambos os personagens vivem em tensão amorosa. Em uma
cena, Franz flagra Jacobina tomando banho de cachoeira, e, mesmo sendo ambos
casados, ambos tem um flerte ali mesmo, na piscina natural. Em crise de
consciência, Jacobina dá o fora em Franz e segue sua vida. Mais tarde, Franz
volta à vida de Jacobina quando ela já era considerada santa pela população
local, e o casal vive em um vai e vem até Franz se juntar em definitivo à
seita, conduzindo ao tradicional final dramático. Nada disso consta no livro.
Voltemos
a Jacobina Maurer, antes Mentz. Bem, a personagem tem o seu caráter divino
reforçado pelo roteiro do filme. No início do filme, ela é mostrada ainda na
infância, com a mãe e os irmãos, fugindo da Guerra dos Farrapos; as crianças
tem fome, mas a mãe impede-as de comerem de uma panela de feijão abandonada nas
ruínas de uma casa, em uma tentativa de reforçar nelas o caráter de honestidade
e de força nas adversidades (essa parte, sim, consta no livro). Em vários
momentos, ela sofre desmaios e crises de sono letárgico, mas nessas crises ela
tem ouve a voz de Deus falando com ela. E, nessas crises, ela tem o
acompanhamento do médico Dr. Hillebrandt (Werner Schünemann). Foi após a
primeira crise de desmaio, no momento em que a família bate uma fotografia na
cerimônia de casamento de Franz, que Jacobina conhece o marido, João Maurer
(Alexandre Paternost), então curandeiro – e que, inesperadamente, após a
consulta, se declara a ela. Os dois se casam, e Jacobina ajuda João Maurer no
tratamento de pacientes – enquanto vive a tensão amorosa com Franz – em casa,
ao pé do morro do Ferrabraz. Foi após o parto da única filha (na vida real,
Jacobina Maurer teve seis filhos) que Jacobina começa a “ouvir” a voz de Deus.
Outro
personagem que vive em tensão constante com Jacobina, mas desta vez no campo
das ideias, é o pastor Boeber (Antonio Calloni), que antes ouvia as confissões
de Jacobina, porém, depois, a excomunga de sua comunidade e passa à oposição
dos chamados mucker. E a maquete da igreja a qual o pastor passa boa parte do
livro construindo, e que no romance tem um caráter simbólico (ela representa um
projeto de comunidade religiosa da vida do pastor), aparece no filme, mas sem
grande importância. No livro, a maquete inacabada acaba sendo destruída junto
com a morte de Boeber; no filme, nem um nem outro morrem.
Bem.
Pouco depois, Jacobina resolve assumir seu caráter de representante de Deus na
Terra, despindo-se frente a um crucifixo cheio de luzes, depois realizando
milagres junto aos pacientes do marido (se é que podemos chamar de milagre ela
ter beijado os ferimentos da perna de um homem e este ter largado as muletas de
repente) e, com trechos da Bíblia, confortando-os com palavras. Nesse ponto,
ela passa a trajar apenas uma camisola branca; depois, ela é coroada com uma
coroa de flores pelos fieis. Jacobina começa a juntar fieis em torno de si,
pregando a Bíblia e o fim do mundo, e abençoando os fiéis com... beijos na
boca. Entre os fiéis, entre familiares e simples gente que teve de vender suas
propriedades ao governo, estão o parvo Jacó Mula (Leon Góes) e o violento
Robinson (Felipe Kannenberg). Inicialmente frequentando os cultos, estava o
mercador Nadler (Zé Victor Castiel) que, depois, escandalizado com o
comportamento de Jacobina, retira-se da seita.
A seita
já começa a arranjar opositores logo no início. Fica evidente na cena em que
Jacó Mula, ao defender Jacobina no mercado de Nadler, é agredido por homens
violentos. Esses mesmos homens matam, mais tarde, um seguidor da seita e seus
cavalos. Depois, um dos agressores é morto e enforcado por homens mascarados,
supostos mucker; e só aí é que a atenção das autoridades é despertada. A lei é
representada pelo delegado João Lehn (Caco Ciocler), tendo como aliados o Dr.
Hillebrandt e o Pastor Boeber. E, inicialmente aliado a estes, Franz.
Aliás,
Lehn vive uma tensão amorosa (mais ou menos como no livro) com a mucker
Elizabeth Carolina (Talita Castro) – mas, no filme, tal relação tem menos
arrogância por parte do homem.
A
tensão entre os mucker e os “ímpios” aumenta a cada instante. O mercador Nadler
é encontrado morto dias depois de negar vender produtos a uma mulher mucker;
depois, um membro da seita é encontrado morto de forma violenta. Jacobina até
consegue fazer chover (literalmente) durante seu enterro.
Já não
é mais possível manter as pregações de não-violência – a gota d’água é quando
as autoridades conduzem Jacobina à justiça. Estando em crise de sono letárgico,
ela é conduzida de carroça, deitada, a São Leopoldo, e sentenciada a ser
internada na Santa Casa de Porto Alegre para se tratar do suposto distúrbio
mental – e acaba tendo a cabeça raspada. E de cabeça raspada ela permanece até
o fim do filme. Um fato astronômico previsto por Jacobina acaba dando mais
força a ela e aos mucker: um meteoro cruza o céu no dia de Pentecostes (não
consta no livro!). Após o retorno ao Ferrabraz, o discurso pacífico de Jacobina
muda, e os mucker passam a perseguir os “ímpios” do mesmo modo que foram
perseguidos. Fica evidente que a luta dos muckers, antes de tudo, é contra o
sistema social injusto, ainda que pessoas inocentes também acabem pagando.
A
gota d’água foi o atentado à vida de João Lehn: foi determinante para que as
autoridades chamem o exército imperial, sob o comando do coronel Genuíno
(Felipe Camargo) para combater os mucker.
E,
nas cenas finais, há mais afastamento da realidade: na vida real, foram
necessárias três expedições para dar fim aos mucker, e na segunda, o Coronel
Genuíno morre acidentalmente, e Jacobina consegue escapar para o mato; no
filme, foram necessários dois ataques, no segundo o “templo” de Jacobina acaba
destruído, ela perece no fogo junto com Franz, e Genuíno não morre. Barreto e
Serran trapacearam!
Well.
O filme teve bilheteria razoável – só no Rio Grande do Sul foram 95 mil
espectadores, segundo informações colhidas da internet – e teve apoio tanto de
uma boa parte técnica, uma cenografia que capta bem as belezas da região do
Vale dos Sinos, uma boa reconstituição dos cenários de época – e apenas dos
cenários!
Mas
as interpretações do filme geram algumas controvérsias.
Letícia
Spiller como Jacobina, por exemplo. Para caracterizar a personagem, ela contou,
inclusive, com o uso de perucas. E ela passa a maior parte do tempo olhando
para o vazio, expressão distante, numa tentativa de reforçar a suposta
deficiência mental de Jacobina Maurer (de acordo com as descrições dos
historiadores). Sua interpretação, de um modo geral, é um tanto exagerada, bem
de personagem de novela – e a presença de Franz só reforça a pieguice. E pensar
que a ideia inicial do diretor Fábio Barreto era que a modelo gaúcha Gisele
Bündchen interpretasse Jacobina Maurer...
Isso
faz com que o título do filme adquira dois sentidos: “paixão”, tanto no
significado do amor romântico entre Jacobina e Franz, como no sentido divino, o
martírio da personagem próximo ao sofrido por Jesus Cristo.
Foi
muito criticada a cena em que ela anda pelos campos, cercada de borboletas
criadas digitalmente. O melhor efeito especial do filme ainda é a passagem do
meteoro.
Já
Alexandre Paternost, como João Maurer, praticamente expressa perfeitamente a
insignificância que o personagem assume ao longo da história, simplesmente
“desaparecendo” durante o filme. Afinal, como concorrer com a mulher beata e um
rival galã?
Outros
personagens do livro perdem empatia com relação a suas contrapartes do filme. É
o caso de Jacó Mula, que no filme parece um débil mental (no livro nem é tanto
assim), sempre soprando seus apitos e falando com dificuldade; e de Elizabeth
Carolina, cuja tensão amorosa e crise de consciência ficam em segundo plano em
todo filme. As atenções ficam voltadas, logo, para Jacobina, eliminando as
histórias paralelas que enriqueciam o enredo. Tudo para a história caber em
seus 103 minutos.
O
roteiro de Serran corta também alguns personagens do livro, como o médico
Christian Fischer, que estabelece uma relação de cumplicidade com Jacó Mula
(ficou de fora até a trama supérflua em torno dos cactos que Fischer recolhe
para remeter a um tio da Alemanha, o que foi um acerto de Barreto e Serran), o
piedoso padre católico Matias Münsch, a criada e confidente de Jacobina, Ana
Maria Hoffstätter, e o militar Santiago Dantas, responsável pelo ataque final.
Desse modo, podemos reforçar que o filme foi mais inspirado por Videiras de
Cristal que adaptado do romance.
Como
se não bastasse, conseguiram inserir no filme um merchandising da fábrica de
calçados Azaléia, que patrocinou o filme. É na cena em que uma personagem passa
em um sapateiro. Jeitinho brasileiro é isso aí.
A direção
do filme também foi muito criticada – ficou aquém de O Quatrilho, que até concorreu ao Oscar!
Ainda
assim, A PAIXÃO DE JACOBINA é mais palatável ao público que Os Mucker. Cumpriu sua função, que era a
de apresentar ao público brasileiro as paisagens de Sapiranga. Porque, na parte
da História, não foi lá essas coisas... A História, aqui, ficou no “padrão
Globo” (representada por sua filial, a RBS), já que até atores “globais” o
filme teve. Ah, mas se o próprio Luiz Antônio de Assis Brasil confessou, no
posfácio de Videiras de Cristal, que
não teve o compromisso de seguir os fatos reais em sua reconstituição da
história de Jacobina Maurer, por que não também Barreto e Serran? Assim, todos
estão redimidos.
Ah:
até o momento em que escrevo, A PAIXÃO DE JACOBINA está disponível, completo,
no YouTube, para quem quiser conferir (assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=zLel0siiLdY).
Mas, sendo filme mais recente, é fácil encontrá-lo também em DVD.
Esta
postagem é uma versão revisada e com alterações do texto publicado
anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Os
livros ainda são a melhor fonte para se conhecer a História: “trapaceiam” menos
que o cinema. Portanto: visitem a Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges. Em
caso de dúvidas se o livro que procura está disponível ou não, peça auxílio às
bibliotecárias. Doações também são bem-vindas.
Até
mais!
sábado, 17 de dezembro de 2016
Aprenda a fazer uma guirlanda reciclando um livro
Assista o vídeo da Cristina Verluis e aprenda a reaproveitar um livro fazendo uma guirlanda de natal para enfeitar a sua casa:
fonte: Cristina Verluis
Seção Resenha de Livros: VIDEIRAS DE CRISTAL
Olá.
Aqui
é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje,
volto a falar de livro. Conforme prometido há postagens atrás, voltamos a falar
da Revolta dos Mucker (1868 – 1874), o movimento messiânico ocorrido em uma
área de imigração alemã do Rio Grande do Sul. Voltamos a evocar a figura de
Jacobina Maurer, usando para isso seu relato romanceado mais famoso.
Hoje,
então, falo do romance VIDEIRAS DE CRISTAL, de Luiz Antônio de Assis Brasil.
ASPECTO FÍSICO
Bem.
Há algum tempo atrás, falei a respeito do escritor gaúcho Luiz Antônio de Assis
Brasil. Escritor, professor universitário, músico, com seus romances focando
principalmente o passado do Rio Grande do Sul, Luiz Antônio de Assis Brasil é
aclamado pela crítica, premiado, e teve livros seus adaptados para o cinema.
Já
resenhei um livro dele, Cães da Província
– para mais informações a respeito do escritor, acessem a postagem
referente. Agora, falo a respeito de VIDEIRAS DE CRISTAL, que contribuiu não apenas
para sua fama nacional, como também para lançar uma nova luz sobre o movimento
mucker.
VIDEIRAS
DE CRISTAL foi publicado pela primeira vez em 1990. A sua primeira edição foi
pela editora Mercado Aberto (a capa acima é da 5ª edição, de 1997). Quem for ler,
antes de tudo se preparem: o volume tem 544 páginas, sem contar capa.
Em
2002, VIDEIRAS DE CRISTAL ganhou uma adaptação para cinema: o diretor Fábio
Barreto transpôs o romance para as telas sob o nome A Paixão de Jacobina. Assim, há uma edição do romance com capa
especial referente ao filme, pela mesma editora Mercado Aberto. A edição mais
recente do romance foi lançada em 2010, pela editora L&PM, atual editora da
obra do autor, com 496 páginas (veja capas mais adiante).
O
romance já foi bastante analisado em artigos de revistas literárias e trabalhos
universitários – eu mesmo, na fase de pesquisa para esta postagem, encontrei
uma porção desses trabalhos disponíveis na internet.
Do
filme, falamos em outra ocasião. Vejamos primeiro o romance.
ASPECTO HISTÓRICO
Da
Revolta dos Mucker – descobri recentemente que o correto para se referir ao
movimento seria Revolta “dos Mucker”, e não “dos Muckers” pois o termo alemão é
usado sem o “s” tanto no singular quanto no plural – já falei em duas ocasiões:
quando resenhei o livro Os Fanáticos de
Jacobina, de Fidélis Dalcin Barbosa, e quando resenhei o filme Os Mucker, de 1978, primeira produção
artística focando o episódio que, durante muito tempo, foi um tabu para os
descendentes de imigrantes alemães estabelecidos em Sapiranga, a “cidade das
rosas”, que na época pertencia ao município de São Leopoldo.
Mas
vamos recordar rapidamente: o movimento mucker – termo alemão que, em diversas
obras, foi traduzido como “hipócrita”, “fanático”, “falso santo” – foi um
movimento messiânico (conflito social que gira em torno dos seguidores de um
profeta ou pessoa que afirma ser santa, tal como foi a Revolta de Canudos): uma
leva de colonos alemães estabelecidos na região de Padre Eterno, na base do
Morro do Ferrabraz, em Sapiranga, reuniu-se em torno da figura de Jacobina
Maurer, uma mulher de aspecto frágil e, segundo alguns, com indícios de doença
mental, que se dizia encarnação de Jesus Cristo, fazia previsões sobre o fim do
mundo e confortava as pessoas injustiçadas. Em torno dela e de seu marido, João
José Maurer, que já tinha fama na região como curandeiro, formou-se uma nova
“religião”, baseada em preceitos que iam contra as regras do cristianismo e do
protestantismo (vários imigrantes alemães eram luteranos, e essa corrente
cristã era tolerada pelo Império Brasileiro, oficialmente católico, desde que seus
adeptos não se reunissem em templos). Há quem enxergue no movimento à casa dos
Maurer um ingrediente de protesto contra a intransigência das autoridades –
muitos colonos sentiam-se abandonados pelo poder público da época.
Muita
gente começou a se juntar à seita. Os que se opunham, os “ímpios”, começaram a espalhar
boatos sobre o que realmente acontecia nas reuniões na casa dos Maurer e a açular
as autoridades locais contra os chamados mucker. João e Jacobina chegaram a ser
presos e conduzidos a São Leopoldo e a Porto Alegre algumas vezes. Os mucker já
chegaram a enviar um ofício ao Imperador Pedro II pedindo proteção contra as
perseguições das autoridades policiais.
O
auge do conflito se deu quando, após muitas provocações por parte dos “ímpios”,
os mucker, supostamente a mando de Jacobina, em 1872, começaram a estocar
armas, matar e incendiar casas de colonos. Essa perturbação na paz da região foi
o suficiente para as autoridades chamarem o Exército Imperial para caçar os
mucker.
E
foram necessárias três expedições para eliminar o foco principal da seita, ou
seja, Jacobina Maurer – a ação do exército imperial foi dificultada pelo
terreno conhecido do inimigo. Em uma das investidas, o comandante do exército
imperial, coronel Genuíno Sampaio, veterano da Guerra do Paraguai e de outras
guerras ocorridas no Brasil, consegue destruir o “templo” dos muckers, porém
Jacobina e seguidores conseguiram escapar – e o Coronel Sampaio ainda morreu
devido a complicações de um tiro recebido acidentalmente na perna. O cerco
final foi no dia 2 de agosto, quando, sob o comando do capitão Francisco
Santiago Dantas, o exército, graças à ajuda de um ex-membro da seita, elimina
Jacobina e vários seguidores refugiados no mato do Ferrabraz. João Maurer foi
encontrado morto tempos depois, supostamente suicidado, e seguidores
remanescentes dos mucker foram perseguidos até a virada do século XIX para o
XX.
Por
muito tempo, os descendentes de personagens da história evitavam falar do
assunto, mas, hoje, o movimento mucker rende alguns dividendos para Sapiranga,
que hoje promove roteiros turísticos nos locais da tragédia. Por algum tempo, a
cruz de madeira que marcava o suposto local onde Jacobina foi morta, erguida no
início do século XX, ficou abandonada e até caiu, roída por cupins e bicada por
pica-paus, mas uma nova foi erguida, e integra, junto com o monumento em
homenagem ao Coronel Sampaio, o roteiro turístico chamado Caminhos de Jacobina.
Bem,
é o básico para refrescar a memória dos leitores, porque, fora os artifícios
literários usados por Assis Brasil, a história de VIDEIRAS DE CRISTAL é
praticamente essa: toda a história do movimento mucker. Mas calma.
ASPECTO LITERÁRIO
VIDEIRAS
DE CRISTAL – O ROMANCE DOS MUCKERS, seu subtítulo, compõe-se de diversas
histórias correndo em paralelo à história principal. Como literato, construindo
seu romance a partir de fato histórico, Luiz Antônio de Assis Brasil admite,
parafraseando suas palavras no posfácio da obra, que não tinha muito
compromisso com a realidade. Logo, sua versão do conflito dos mucker lança mão
de recursos de realidade e de ficção. Desde já se sabe que os fatos históricos
podem não ter ocorrido da maneira como foi narrada pelo autor, muito embora ele
tenha feito a devida pesquisa para elaborar o romance.
Assis
Brasil procurou falar do movimento mucker pelos dois lados: o dos seguidores de
Jacobina, e o do lado dos “ímpios”, sem dar certezas de qual lado é o dos
“mocinhos”, e de qual é o dos “bandidos”.
Há,
claro, a certeza de que o movimento mucker foi uma resposta ao meio social
desumano, de autoridades prepotentes e injustiças sociais, os mucker lutando
pela única coisa que no momento lhes restava: a fé. Pelo menos, é assim na
primeira metade do romance. Na segunda metade, os mucker é que se tornam os
“bandidos” da história, quando passam eles mesmos a perseguirem os “ímpios”.
O
título do romance faz referência a uma passagem bíblica que compara a alma
humana a videiras de cristal: “fecunda nos verões luminosos mas quebradiça
quando coberta pela geada do inverno”, uma referência à credulidade do ser
humano, e de como tal credulidade às vezes o leva a cometer delitos contra
pessoas. Parece que é isso.
A
história de VIDEIRAS DE CRISTAL começa na Alemanha, em um vilarejo onde vive o
abonado Hans Willibald, que tem por hobby colecionar cactos, mantidos em uma
estufa – e isso, apesar de fazer tempo frio na região onde reside, e os cactos
serem, antes de tudo, plantas tropicais. Hans passou parte da vida criando um
sobrinho órfão, Christian Fischer, e lhe desejava um grande futuro como médico,
tanto que custeou sua faculdade de medicina. Mas mal entendeu os motivos porque
seu sobrinho resolveu se especializar em psicologia, uma área nova da ciência
médica, e os de ele ter escolhido vir ao Brasil para montar seu consultório.
Mas o Sr. Willibald autoriza a viagem, em troca de o sobrinho remeter,
regularmente, amostras de cactos brasileiros (em princípio, as aparições de
Willibald e sua estufa de cactos na trama serve apenas como uma “muleta” no
romance, mas há um significado escondido na permanência desse núcleo).
Christian
Fischer monta seu consultório em São Leopoldo. Em vários trechos do romance,
Christian Fischer, personagem fictício, remete cartas – e os cactos – ao tio,
descrevendo os costumes de pessoas da sociedade local e também os
acontecimentos da perseguição aos mucker, entremeando alguns capítulos (aliás,
não fica nítida a divisão dos capítulos do livro, que não são numerados, são
divididos em cenas, em narração contínua como o roteiro de um filme – os
grandes espaços em branco é que servem de limite entre as cenas do livro). Em
certo momento, instado por um de seus pacientes, Jacó Fuchs, Christian acaba se
juntando aos mucker, e lutando ao lado deles.
Jacó
Fuchs, ou Jacó-Mula, é um dos personagens mais simpáticos do romance – e esse
existiu mesmo! Tido como louco, ou simplesmente idiota, pela família e pelos
amigos, e por isso não era levado a sério, Jacó-Mula encontra conforto e
compreensão ao se juntar à seita de Jacobina. E segue a mulher cegamente, a
ponto de abandonar a mulher e os filhos – decisão da qual se arrepende mais
tarde. O homem cria uma cumplicidade com o médico Christian Fischer, a ponto de
fazê-lo se juntar aos mucker – e também de arranjar alguns cactos para ele.
Do
lado mucker, ainda temos, como personagens principais: Elizabeth Carolina
Mentz, cunhada de Jacobina, que carrega em boa parte do livro um enorme
sentimento de culpa – ela secretamente trai o marido, Henrique Mentz, com o
inspetor de polícia João Lehn, caso que é descoberto pelo cunhado João Maurer,
e a culpa acompanha a mulher até seu trágico fim; Ana Maria Hoffstätter, a
criada de Jacobina, que acaba brigada com a própria família por conta de suas
opções – e ela sofre bastante ao longo do romance, de estupro por bandoleiros
até a perda de um amor secreto, morto por membros dos mucker por ter traído a
seita; Rodolfo Sehn, suposto amante da Mutter
Jacobina, e que se torna seu segundo “esposo” (um momento: segundo Fidélis
Barbosa, o segundo esposo de Jacobina foi João Klein! Qual versão está certa?);
o violento Robinson, o Ruivo; e o pastor Klein, que se junta à seita após ter
perdido o cargo de pastor luterano para Wilhelm Boeber, o que o deixa
rancoroso.
Por
sua vez, Jacobina Maurer, a Mutter, é
retratada no romance como convicta de ser mesmo uma representante do “Espírito
Natural” na Terra – nesse ponto, as descrições alternam realidade e supostas
visões divinas. O papel de Jacobina oscila entre o de mulher caridosa, que
acolhe seus fieis como filhos, e o de mulher de fé, intransigente com as
perseguições dos “ímpios”, alternando momentos de lucidez e surtos de sono
letárgico. Ela chega a “santificar” sua filha de colo, Leidard, a “filha da Fé”.
Seu
marido, João Maurer, anteriormente chamado de Wunderdoktor (Doutor Maravilhoso), anteriormente tinha fama como
curandeiro, enquanto sua esposa Jacobina apenas o auxiliava na cura dos doentes
e lendo a Bíblia aos fieis; porém, à medida que a importância de Jacobina
cresce, o Wunderdoktor passa a perder
importância, a ponto de praticamente “sumir” na trama – ele mesmo acaba
reconhecendo sua inferioridade.
Do
lado dos “ímpios”, temos: o pastor Boeber, que além da franca oposição aos
mucker, passa boa parte do romance cuidando de uma maquete de madeira de uma
catedral, cujo aspecto é tão simbólico quanto a trama dos cactos de Christian
Fischer; o policial João Lehn, arrogante e violento, a paixão secreta de
Elizabeth Carolina; o também violento delegado de polícia Schreiner,
responsável pelas primeiras perseguições aos mucker; os ex-fiéis Carlos Brenner
e Martinho Kassel, que acabam se tornando vítimas da fúria dos seguidores de
Jacobina; os militares Genuíno Sampaio e San Tiago Dantas, os líderes da investida
final contra os mucker – o primeiro, com um caráter mais violento e duvidoso, o
segundo mais ponderado; e o padre Mathias Münsch, católico, cujas convicções e
fé são abalados no decorrer da história, até ser vitimado pelas circunstâncias.
Há,
no livro, dois capítulos que se passam no Rio de Janeiro, na corte imperial,
quando uma comissão de mucker vai pedir proteção junto ao Imperador contra os
abusos das autoridades policiais.
Enquanto
correm essas histórias paralelas, correm linearmente os acontecimentos
referentes aos mucker, conforme relatado anteriormente, então, nem é preciso
nos darmos ao trabalho de recontar a história. Claro que o leitor lê VIDEIRAS
DE CRISTAL já sabendo como a história termina, mas o que sustenta a narrativa é
o estilo vigoroso de Assis Brasil, com as histórias em paralelo, as descrições
ricas em detalhes, inclusive nas cenas de extrema violência, uma linguagem que
evita ao máximo a extrema erudição que pode afastar leitores de obras desse
feitio, e a capacidade de sensibilizar o leitor – está claro que, se os mucker
se tornaram violentos, foi uma resposta à violência e à intolerância que eles
próprios sofreram. E como não se sensibilizar com, por exemplo, o drama de
Elizabeth Carolina, e com o triste fim do Padre Münsch, depois de acolher um
deficiente mental que começa a carregar de um lado para outro após a morte dos
familiares deste?
Estudiosos
apontam, entretanto, que Assis Brasil assumiu o ponto de vista dos “vencedores”
em sua narrativa, ou melhor, dos autores que retrataram, em seus estudos, os
mucker como fanáticos e violentos, chefiados por um médico charlatão e por uma
mulher louca e analfabeta, sem o elemento de denúncia social. Um dos primeiros
autores a tratar do movimento mucker foi a padre Ambrósio Schupp, em livro
redigido em alemão de cerca de 1900 – que serviu de base tanto para Assis
Brasil como para Fidélis Barbosa. Atualmente, a visão de Schupp é contestada
pelos historiadores, sobretudo os marxistas.
De
todo modo, VIDEIRAS DE CRISTAL firma Luiz Antônio de Assis Brasil como um dos
maiores escritores gaúchos, um mestre em retratar o passado gaúcho com ficção. VIDEIRAS
DE CRISTAL mostra um autor em plena maturidade artística. Tudo bem que o
romance tem mais de 500 páginas, mas garante horas de entretenimento ao leitor
que desejar um pouco mais de cultura em sua cabeça. Ah: a edição da Mercado
Aberto inclui ainda ilustrações – gravuras do século XIX mostrando os cenários
da história, e um mapa da região conflagrada.
Em
breve, falamos de seu produto derivado, o filme A Paixão de Jacobina.
Esta
postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente
no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Este
livro, assim como outros de Luiz Antônio de Assis Brasil, se encontra
disponível no acervo da Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges. Em caso de
dúvida, pergunte a uma das bibliotecárias, elas podem auxiliar.
Em
breve, nova resenha de livros aos leitores, tanto de Vacaria quanto de outras
localidades alcançadas pela internet.
Até
mais!
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