domingo, 18 de dezembro de 2016

Seção Resenha de Cinema: A PAIXÃO DE JACOBINA

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje, volto a falar de filme – esta é a Seção Resenha de Cinema, falando de adaptações de livros para a Sétima Arte.
Volto a falar da Revolta dos Mucker. Volto a falar de Jacobina Maurer. E hoje vou falar do produto mais “comercial” a respeito do conflito messiânico da zona de imigração alemã do Rio Grande do Sul do século XIX.
Anteriormente, falei a respeito do livro Videiras de Cristal, de Luiz Antônio de Assis Brasil, a recriação ficcional em livro mais famosa do conflito. Hoje, então, resenho a adaptação cinematográfica do livro, A PAIXÃO DE JACOBINA. Ou melhor, adaptação, nem tanto adaptação: o filme de fato foi mais inspirado no livro do que adaptado do livro. Já explico.
Para começar, A PAIXÃO DE JACOBINA, filme brasileiro lançado em 2002, foi dirigido por Fábio Barreto, diretor que se consagrou com O Quatrilho (1995), adaptação do romance do escritor gaúcho José Clemente Pozenato, que até concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Barreto também é conhecido pelos filmes Luzia-Homem (1988), Bela Donna (1997), Nossa Senhora do Caravaggio (2007) e Lula – O Filho do Brasil (2009). Desde dezembro de 2009, após sofrer um grave acidente de carro, Barreto não dirige mais filmes. Após uma delicada cirurgia, em janeiro de 2010, está em casa, em tratamento.
O roteiro de A PAIXÃO DE JACOBINA é de Leopoldo Serran. E seu elenco é basicamente composto de atores consagrados, “globais”.
Antes de A PAIXÃO DE JACOBINA, a Revolta dos Mucker (1868 – 1874), o qual nem me darei ao trabalho de refrescar a memória dos leitores, havia sido retratada, nos cinemas, no filme Os Mucker (1978), de Jorge Bodanzky e Wolf Gauer. E, visualmente, A PAIXÃO DE JACOBINA tem muito jeito de ser um filme mais palatável ao público que seu antecessor. O filme de 2002 tem mais recursos que o de 1978: mais claridade, imagens mais nítidas, músicas de fundo, efeitos especiais, interpretações em linguagem mais novelesca e até uma inserção de merchandising. Além disso, enquanto o filme de 1978 foi gravado no estado de São Paulo, as locações do filme de 2002 são mais próximas do local dos acontecimentos: o filme foi gravado em Sapiranga e outros municípios do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. As locações do filme, hoje, fazem parte do roteiro turístico da cidade de Sapiranga.
Porém, é menos fiel à realidade histórica: os diálogos são todos em português (enquanto o filme de 1978 tinha diálogos alternando entre português e alemão hunsrückisch) e há deturpação dos fatos até mesmo em relação ao livro-fonte. Até mesmo uma inserção de uma trama romântica onde não havia.
Bão. O filme de Fábio Barreto também procura retratar a líder messiânica Jacobina Maurer (interpretada por Letícia Spiller), desta vez com um recorte de tempo maior: ela é mostrada rapidamente na infância, depois na adolescência, e no fim, na vida adulta. Antes e depois de se tornar a “Mutter” dos colonos alemães abandonados pelo poder público da época, antes e depois de dizer-se encarnação de Cristo na Terra, antes e depois de se tornar profetiza. Claro que essa vida é mostrada com um pouco de “trapaça” e deturpação.
A deturpação começa através do personagem Franz (Thiago Lacerda). Esse personagem não existiu nem na vida real, nem no livro de Assis Brasil – ele é cunhado de Jacobina, mas tem outro nome. Bem: nas cenas iniciais do filme, Jacobina demonstra, de um modo mal disfarçado, que é apaixonada por Franz, no dia do casamento deste. Porém, ambos os personagens vivem em tensão amorosa. Em uma cena, Franz flagra Jacobina tomando banho de cachoeira, e, mesmo sendo ambos casados, ambos tem um flerte ali mesmo, na piscina natural. Em crise de consciência, Jacobina dá o fora em Franz e segue sua vida. Mais tarde, Franz volta à vida de Jacobina quando ela já era considerada santa pela população local, e o casal vive em um vai e vem até Franz se juntar em definitivo à seita, conduzindo ao tradicional final dramático. Nada disso consta no livro.
Voltemos a Jacobina Maurer, antes Mentz. Bem, a personagem tem o seu caráter divino reforçado pelo roteiro do filme. No início do filme, ela é mostrada ainda na infância, com a mãe e os irmãos, fugindo da Guerra dos Farrapos; as crianças tem fome, mas a mãe impede-as de comerem de uma panela de feijão abandonada nas ruínas de uma casa, em uma tentativa de reforçar nelas o caráter de honestidade e de força nas adversidades (essa parte, sim, consta no livro). Em vários momentos, ela sofre desmaios e crises de sono letárgico, mas nessas crises ela tem ouve a voz de Deus falando com ela. E, nessas crises, ela tem o acompanhamento do médico Dr. Hillebrandt (Werner Schünemann). Foi após a primeira crise de desmaio, no momento em que a família bate uma fotografia na cerimônia de casamento de Franz, que Jacobina conhece o marido, João Maurer (Alexandre Paternost), então curandeiro – e que, inesperadamente, após a consulta, se declara a ela. Os dois se casam, e Jacobina ajuda João Maurer no tratamento de pacientes – enquanto vive a tensão amorosa com Franz – em casa, ao pé do morro do Ferrabraz. Foi após o parto da única filha (na vida real, Jacobina Maurer teve seis filhos) que Jacobina começa a “ouvir” a voz de Deus.
Outro personagem que vive em tensão constante com Jacobina, mas desta vez no campo das ideias, é o pastor Boeber (Antonio Calloni), que antes ouvia as confissões de Jacobina, porém, depois, a excomunga de sua comunidade e passa à oposição dos chamados mucker. E a maquete da igreja a qual o pastor passa boa parte do livro construindo, e que no romance tem um caráter simbólico (ela representa um projeto de comunidade religiosa da vida do pastor), aparece no filme, mas sem grande importância. No livro, a maquete inacabada acaba sendo destruída junto com a morte de Boeber; no filme, nem um nem outro morrem.
Bem. Pouco depois, Jacobina resolve assumir seu caráter de representante de Deus na Terra, despindo-se frente a um crucifixo cheio de luzes, depois realizando milagres junto aos pacientes do marido (se é que podemos chamar de milagre ela ter beijado os ferimentos da perna de um homem e este ter largado as muletas de repente) e, com trechos da Bíblia, confortando-os com palavras. Nesse ponto, ela passa a trajar apenas uma camisola branca; depois, ela é coroada com uma coroa de flores pelos fieis. Jacobina começa a juntar fieis em torno de si, pregando a Bíblia e o fim do mundo, e abençoando os fiéis com... beijos na boca. Entre os fiéis, entre familiares e simples gente que teve de vender suas propriedades ao governo, estão o parvo Jacó Mula (Leon Góes) e o violento Robinson (Felipe Kannenberg). Inicialmente frequentando os cultos, estava o mercador Nadler (Zé Victor Castiel) que, depois, escandalizado com o comportamento de Jacobina, retira-se da seita.
A seita já começa a arranjar opositores logo no início. Fica evidente na cena em que Jacó Mula, ao defender Jacobina no mercado de Nadler, é agredido por homens violentos. Esses mesmos homens matam, mais tarde, um seguidor da seita e seus cavalos. Depois, um dos agressores é morto e enforcado por homens mascarados, supostos mucker; e só aí é que a atenção das autoridades é despertada. A lei é representada pelo delegado João Lehn (Caco Ciocler), tendo como aliados o Dr. Hillebrandt e o Pastor Boeber. E, inicialmente aliado a estes, Franz.
Aliás, Lehn vive uma tensão amorosa (mais ou menos como no livro) com a mucker Elizabeth Carolina (Talita Castro) – mas, no filme, tal relação tem menos arrogância por parte do homem.
A tensão entre os mucker e os “ímpios” aumenta a cada instante. O mercador Nadler é encontrado morto dias depois de negar vender produtos a uma mulher mucker; depois, um membro da seita é encontrado morto de forma violenta. Jacobina até consegue fazer chover (literalmente) durante seu enterro.
Já não é mais possível manter as pregações de não-violência – a gota d’água é quando as autoridades conduzem Jacobina à justiça. Estando em crise de sono letárgico, ela é conduzida de carroça, deitada, a São Leopoldo, e sentenciada a ser internada na Santa Casa de Porto Alegre para se tratar do suposto distúrbio mental – e acaba tendo a cabeça raspada. E de cabeça raspada ela permanece até o fim do filme. Um fato astronômico previsto por Jacobina acaba dando mais força a ela e aos mucker: um meteoro cruza o céu no dia de Pentecostes (não consta no livro!). Após o retorno ao Ferrabraz, o discurso pacífico de Jacobina muda, e os mucker passam a perseguir os “ímpios” do mesmo modo que foram perseguidos. Fica evidente que a luta dos muckers, antes de tudo, é contra o sistema social injusto, ainda que pessoas inocentes também acabem pagando.
A gota d’água foi o atentado à vida de João Lehn: foi determinante para que as autoridades chamem o exército imperial, sob o comando do coronel Genuíno (Felipe Camargo) para combater os mucker.
E, nas cenas finais, há mais afastamento da realidade: na vida real, foram necessárias três expedições para dar fim aos mucker, e na segunda, o Coronel Genuíno morre acidentalmente, e Jacobina consegue escapar para o mato; no filme, foram necessários dois ataques, no segundo o “templo” de Jacobina acaba destruído, ela perece no fogo junto com Franz, e Genuíno não morre. Barreto e Serran trapacearam!
Well. O filme teve bilheteria razoável – só no Rio Grande do Sul foram 95 mil espectadores, segundo informações colhidas da internet – e teve apoio tanto de uma boa parte técnica, uma cenografia que capta bem as belezas da região do Vale dos Sinos, uma boa reconstituição dos cenários de época – e apenas dos cenários!
Mas as interpretações do filme geram algumas controvérsias.
Letícia Spiller como Jacobina, por exemplo. Para caracterizar a personagem, ela contou, inclusive, com o uso de perucas. E ela passa a maior parte do tempo olhando para o vazio, expressão distante, numa tentativa de reforçar a suposta deficiência mental de Jacobina Maurer (de acordo com as descrições dos historiadores). Sua interpretação, de um modo geral, é um tanto exagerada, bem de personagem de novela – e a presença de Franz só reforça a pieguice. E pensar que a ideia inicial do diretor Fábio Barreto era que a modelo gaúcha Gisele Bündchen interpretasse Jacobina Maurer...
Isso faz com que o título do filme adquira dois sentidos: “paixão”, tanto no significado do amor romântico entre Jacobina e Franz, como no sentido divino, o martírio da personagem próximo ao sofrido por Jesus Cristo.
Foi muito criticada a cena em que ela anda pelos campos, cercada de borboletas criadas digitalmente. O melhor efeito especial do filme ainda é a passagem do meteoro.
Já Alexandre Paternost, como João Maurer, praticamente expressa perfeitamente a insignificância que o personagem assume ao longo da história, simplesmente “desaparecendo” durante o filme. Afinal, como concorrer com a mulher beata e um rival galã?
Outros personagens do livro perdem empatia com relação a suas contrapartes do filme. É o caso de Jacó Mula, que no filme parece um débil mental (no livro nem é tanto assim), sempre soprando seus apitos e falando com dificuldade; e de Elizabeth Carolina, cuja tensão amorosa e crise de consciência ficam em segundo plano em todo filme. As atenções ficam voltadas, logo, para Jacobina, eliminando as histórias paralelas que enriqueciam o enredo. Tudo para a história caber em seus 103 minutos.
O roteiro de Serran corta também alguns personagens do livro, como o médico Christian Fischer, que estabelece uma relação de cumplicidade com Jacó Mula (ficou de fora até a trama supérflua em torno dos cactos que Fischer recolhe para remeter a um tio da Alemanha, o que foi um acerto de Barreto e Serran), o piedoso padre católico Matias Münsch, a criada e confidente de Jacobina, Ana Maria Hoffstätter, e o militar Santiago Dantas, responsável pelo ataque final. Desse modo, podemos reforçar que o filme foi mais inspirado por Videiras de Cristal que adaptado do romance.
Como se não bastasse, conseguiram inserir no filme um merchandising da fábrica de calçados Azaléia, que patrocinou o filme. É na cena em que uma personagem passa em um sapateiro. Jeitinho brasileiro é isso aí.
A direção do filme também foi muito criticada – ficou aquém de O Quatrilho, que até concorreu ao Oscar!
Ainda assim, A PAIXÃO DE JACOBINA é mais palatável ao público que Os Mucker. Cumpriu sua função, que era a de apresentar ao público brasileiro as paisagens de Sapiranga. Porque, na parte da História, não foi lá essas coisas... A História, aqui, ficou no “padrão Globo” (representada por sua filial, a RBS), já que até atores “globais” o filme teve. Ah, mas se o próprio Luiz Antônio de Assis Brasil confessou, no posfácio de Videiras de Cristal, que não teve o compromisso de seguir os fatos reais em sua reconstituição da história de Jacobina Maurer, por que não também Barreto e Serran? Assim, todos estão redimidos.
Ah: até o momento em que escrevo, A PAIXÃO DE JACOBINA está disponível, completo, no YouTube, para quem quiser conferir (assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=zLel0siiLdY). Mas, sendo filme mais recente, é fácil encontrá-lo também em DVD.

Esta postagem é uma versão revisada e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Os livros ainda são a melhor fonte para se conhecer a História: “trapaceiam” menos que o cinema. Portanto: visitem a Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges. Em caso de dúvidas se o livro que procura está disponível ou não, peça auxílio às bibliotecárias. Doações também são bem-vindas.
Até mais!

sábado, 17 de dezembro de 2016

Aprenda a fazer uma guirlanda reciclando um livro

Assista o vídeo da Cristina Verluis e aprenda a reaproveitar um livro fazendo uma guirlanda de natal para enfeitar a sua casa:

fonte: Cristina Verluis

Seção Resenha de Livros: VIDEIRAS DE CRISTAL

Olá.
Aqui é o Rafael novamente, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública.
Hoje, volto a falar de livro. Conforme prometido há postagens atrás, voltamos a falar da Revolta dos Mucker (1868 – 1874), o movimento messiânico ocorrido em uma área de imigração alemã do Rio Grande do Sul. Voltamos a evocar a figura de Jacobina Maurer, usando para isso seu relato romanceado mais famoso.
Hoje, então, falo do romance VIDEIRAS DE CRISTAL, de Luiz Antônio de Assis Brasil.

ASPECTO FÍSICO
Bem. Há algum tempo atrás, falei a respeito do escritor gaúcho Luiz Antônio de Assis Brasil. Escritor, professor universitário, músico, com seus romances focando principalmente o passado do Rio Grande do Sul, Luiz Antônio de Assis Brasil é aclamado pela crítica, premiado, e teve livros seus adaptados para o cinema.
Já resenhei um livro dele, Cães da Província – para mais informações a respeito do escritor, acessem a postagem referente. Agora, falo a respeito de VIDEIRAS DE CRISTAL, que contribuiu não apenas para sua fama nacional, como também para lançar uma nova luz sobre o movimento mucker.
VIDEIRAS DE CRISTAL foi publicado pela primeira vez em 1990. A sua primeira edição foi pela editora Mercado Aberto (a capa acima é da 5ª edição, de 1997). Quem for ler, antes de tudo se preparem: o volume tem 544 páginas, sem contar capa.
Em 2002, VIDEIRAS DE CRISTAL ganhou uma adaptação para cinema: o diretor Fábio Barreto transpôs o romance para as telas sob o nome A Paixão de Jacobina. Assim, há uma edição do romance com capa especial referente ao filme, pela mesma editora Mercado Aberto. A edição mais recente do romance foi lançada em 2010, pela editora L&PM, atual editora da obra do autor, com 496 páginas (veja capas mais adiante).
O romance já foi bastante analisado em artigos de revistas literárias e trabalhos universitários – eu mesmo, na fase de pesquisa para esta postagem, encontrei uma porção desses trabalhos disponíveis na internet.
Do filme, falamos em outra ocasião. Vejamos primeiro o romance.

ASPECTO HISTÓRICO
Da Revolta dos Mucker – descobri recentemente que o correto para se referir ao movimento seria Revolta “dos Mucker”, e não “dos Muckers” pois o termo alemão é usado sem o “s” tanto no singular quanto no plural – já falei em duas ocasiões: quando resenhei o livro Os Fanáticos de Jacobina, de Fidélis Dalcin Barbosa, e quando resenhei o filme Os Mucker, de 1978, primeira produção artística focando o episódio que, durante muito tempo, foi um tabu para os descendentes de imigrantes alemães estabelecidos em Sapiranga, a “cidade das rosas”, que na época pertencia ao município de São Leopoldo.
Mas vamos recordar rapidamente: o movimento mucker – termo alemão que, em diversas obras, foi traduzido como “hipócrita”, “fanático”, “falso santo” – foi um movimento messiânico (conflito social que gira em torno dos seguidores de um profeta ou pessoa que afirma ser santa, tal como foi a Revolta de Canudos): uma leva de colonos alemães estabelecidos na região de Padre Eterno, na base do Morro do Ferrabraz, em Sapiranga, reuniu-se em torno da figura de Jacobina Maurer, uma mulher de aspecto frágil e, segundo alguns, com indícios de doença mental, que se dizia encarnação de Jesus Cristo, fazia previsões sobre o fim do mundo e confortava as pessoas injustiçadas. Em torno dela e de seu marido, João José Maurer, que já tinha fama na região como curandeiro, formou-se uma nova “religião”, baseada em preceitos que iam contra as regras do cristianismo e do protestantismo (vários imigrantes alemães eram luteranos, e essa corrente cristã era tolerada pelo Império Brasileiro, oficialmente católico, desde que seus adeptos não se reunissem em templos). Há quem enxergue no movimento à casa dos Maurer um ingrediente de protesto contra a intransigência das autoridades – muitos colonos sentiam-se abandonados pelo poder público da época.
Muita gente começou a se juntar à seita. Os que se opunham, os “ímpios”, começaram a espalhar boatos sobre o que realmente acontecia nas reuniões na casa dos Maurer e a açular as autoridades locais contra os chamados mucker. João e Jacobina chegaram a ser presos e conduzidos a São Leopoldo e a Porto Alegre algumas vezes. Os mucker já chegaram a enviar um ofício ao Imperador Pedro II pedindo proteção contra as perseguições das autoridades policiais.
O auge do conflito se deu quando, após muitas provocações por parte dos “ímpios”, os mucker, supostamente a mando de Jacobina, em 1872, começaram a estocar armas, matar e incendiar casas de colonos. Essa perturbação na paz da região foi o suficiente para as autoridades chamarem o Exército Imperial para caçar os mucker.
E foram necessárias três expedições para eliminar o foco principal da seita, ou seja, Jacobina Maurer – a ação do exército imperial foi dificultada pelo terreno conhecido do inimigo. Em uma das investidas, o comandante do exército imperial, coronel Genuíno Sampaio, veterano da Guerra do Paraguai e de outras guerras ocorridas no Brasil, consegue destruir o “templo” dos muckers, porém Jacobina e seguidores conseguiram escapar – e o Coronel Sampaio ainda morreu devido a complicações de um tiro recebido acidentalmente na perna. O cerco final foi no dia 2 de agosto, quando, sob o comando do capitão Francisco Santiago Dantas, o exército, graças à ajuda de um ex-membro da seita, elimina Jacobina e vários seguidores refugiados no mato do Ferrabraz. João Maurer foi encontrado morto tempos depois, supostamente suicidado, e seguidores remanescentes dos mucker foram perseguidos até a virada do século XIX para o XX.
Por muito tempo, os descendentes de personagens da história evitavam falar do assunto, mas, hoje, o movimento mucker rende alguns dividendos para Sapiranga, que hoje promove roteiros turísticos nos locais da tragédia. Por algum tempo, a cruz de madeira que marcava o suposto local onde Jacobina foi morta, erguida no início do século XX, ficou abandonada e até caiu, roída por cupins e bicada por pica-paus, mas uma nova foi erguida, e integra, junto com o monumento em homenagem ao Coronel Sampaio, o roteiro turístico chamado Caminhos de Jacobina.
Bem, é o básico para refrescar a memória dos leitores, porque, fora os artifícios literários usados por Assis Brasil, a história de VIDEIRAS DE CRISTAL é praticamente essa: toda a história do movimento mucker. Mas calma.

ASPECTO LITERÁRIO
VIDEIRAS DE CRISTAL – O ROMANCE DOS MUCKERS, seu subtítulo, compõe-se de diversas histórias correndo em paralelo à história principal. Como literato, construindo seu romance a partir de fato histórico, Luiz Antônio de Assis Brasil admite, parafraseando suas palavras no posfácio da obra, que não tinha muito compromisso com a realidade. Logo, sua versão do conflito dos mucker lança mão de recursos de realidade e de ficção. Desde já se sabe que os fatos históricos podem não ter ocorrido da maneira como foi narrada pelo autor, muito embora ele tenha feito a devida pesquisa para elaborar o romance.
Assis Brasil procurou falar do movimento mucker pelos dois lados: o dos seguidores de Jacobina, e o do lado dos “ímpios”, sem dar certezas de qual lado é o dos “mocinhos”, e de qual é o dos “bandidos”.
Há, claro, a certeza de que o movimento mucker foi uma resposta ao meio social desumano, de autoridades prepotentes e injustiças sociais, os mucker lutando pela única coisa que no momento lhes restava: a fé. Pelo menos, é assim na primeira metade do romance. Na segunda metade, os mucker é que se tornam os “bandidos” da história, quando passam eles mesmos a perseguirem os “ímpios”.
O título do romance faz referência a uma passagem bíblica que compara a alma humana a videiras de cristal: “fecunda nos verões luminosos mas quebradiça quando coberta pela geada do inverno”, uma referência à credulidade do ser humano, e de como tal credulidade às vezes o leva a cometer delitos contra pessoas. Parece que é isso.
A história de VIDEIRAS DE CRISTAL começa na Alemanha, em um vilarejo onde vive o abonado Hans Willibald, que tem por hobby colecionar cactos, mantidos em uma estufa – e isso, apesar de fazer tempo frio na região onde reside, e os cactos serem, antes de tudo, plantas tropicais. Hans passou parte da vida criando um sobrinho órfão, Christian Fischer, e lhe desejava um grande futuro como médico, tanto que custeou sua faculdade de medicina. Mas mal entendeu os motivos porque seu sobrinho resolveu se especializar em psicologia, uma área nova da ciência médica, e os de ele ter escolhido vir ao Brasil para montar seu consultório. Mas o Sr. Willibald autoriza a viagem, em troca de o sobrinho remeter, regularmente, amostras de cactos brasileiros (em princípio, as aparições de Willibald e sua estufa de cactos na trama serve apenas como uma “muleta” no romance, mas há um significado escondido na permanência desse núcleo).
Christian Fischer monta seu consultório em São Leopoldo. Em vários trechos do romance, Christian Fischer, personagem fictício, remete cartas – e os cactos – ao tio, descrevendo os costumes de pessoas da sociedade local e também os acontecimentos da perseguição aos mucker, entremeando alguns capítulos (aliás, não fica nítida a divisão dos capítulos do livro, que não são numerados, são divididos em cenas, em narração contínua como o roteiro de um filme – os grandes espaços em branco é que servem de limite entre as cenas do livro). Em certo momento, instado por um de seus pacientes, Jacó Fuchs, Christian acaba se juntando aos mucker, e lutando ao lado deles.
Jacó Fuchs, ou Jacó-Mula, é um dos personagens mais simpáticos do romance – e esse existiu mesmo! Tido como louco, ou simplesmente idiota, pela família e pelos amigos, e por isso não era levado a sério, Jacó-Mula encontra conforto e compreensão ao se juntar à seita de Jacobina. E segue a mulher cegamente, a ponto de abandonar a mulher e os filhos – decisão da qual se arrepende mais tarde. O homem cria uma cumplicidade com o médico Christian Fischer, a ponto de fazê-lo se juntar aos mucker – e também de arranjar alguns cactos para ele.
Do lado mucker, ainda temos, como personagens principais: Elizabeth Carolina Mentz, cunhada de Jacobina, que carrega em boa parte do livro um enorme sentimento de culpa – ela secretamente trai o marido, Henrique Mentz, com o inspetor de polícia João Lehn, caso que é descoberto pelo cunhado João Maurer, e a culpa acompanha a mulher até seu trágico fim; Ana Maria Hoffstätter, a criada de Jacobina, que acaba brigada com a própria família por conta de suas opções – e ela sofre bastante ao longo do romance, de estupro por bandoleiros até a perda de um amor secreto, morto por membros dos mucker por ter traído a seita; Rodolfo Sehn, suposto amante da Mutter Jacobina, e que se torna seu segundo “esposo” (um momento: segundo Fidélis Barbosa, o segundo esposo de Jacobina foi João Klein! Qual versão está certa?); o violento Robinson, o Ruivo; e o pastor Klein, que se junta à seita após ter perdido o cargo de pastor luterano para Wilhelm Boeber, o que o deixa rancoroso.
Por sua vez, Jacobina Maurer, a Mutter, é retratada no romance como convicta de ser mesmo uma representante do “Espírito Natural” na Terra – nesse ponto, as descrições alternam realidade e supostas visões divinas. O papel de Jacobina oscila entre o de mulher caridosa, que acolhe seus fieis como filhos, e o de mulher de fé, intransigente com as perseguições dos “ímpios”, alternando momentos de lucidez e surtos de sono letárgico. Ela chega a “santificar” sua filha de colo, Leidard, a “filha da Fé”.
Seu marido, João Maurer, anteriormente chamado de Wunderdoktor (Doutor Maravilhoso), anteriormente tinha fama como curandeiro, enquanto sua esposa Jacobina apenas o auxiliava na cura dos doentes e lendo a Bíblia aos fieis; porém, à medida que a importância de Jacobina cresce, o Wunderdoktor passa a perder importância, a ponto de praticamente “sumir” na trama – ele mesmo acaba reconhecendo sua inferioridade.
Do lado dos “ímpios”, temos: o pastor Boeber, que além da franca oposição aos mucker, passa boa parte do romance cuidando de uma maquete de madeira de uma catedral, cujo aspecto é tão simbólico quanto a trama dos cactos de Christian Fischer; o policial João Lehn, arrogante e violento, a paixão secreta de Elizabeth Carolina; o também violento delegado de polícia Schreiner, responsável pelas primeiras perseguições aos mucker; os ex-fiéis Carlos Brenner e Martinho Kassel, que acabam se tornando vítimas da fúria dos seguidores de Jacobina; os militares Genuíno Sampaio e San Tiago Dantas, os líderes da investida final contra os mucker – o primeiro, com um caráter mais violento e duvidoso, o segundo mais ponderado; e o padre Mathias Münsch, católico, cujas convicções e fé são abalados no decorrer da história, até ser vitimado pelas circunstâncias.
Há, no livro, dois capítulos que se passam no Rio de Janeiro, na corte imperial, quando uma comissão de mucker vai pedir proteção junto ao Imperador contra os abusos das autoridades policiais.
Enquanto correm essas histórias paralelas, correm linearmente os acontecimentos referentes aos mucker, conforme relatado anteriormente, então, nem é preciso nos darmos ao trabalho de recontar a história. Claro que o leitor lê VIDEIRAS DE CRISTAL já sabendo como a história termina, mas o que sustenta a narrativa é o estilo vigoroso de Assis Brasil, com as histórias em paralelo, as descrições ricas em detalhes, inclusive nas cenas de extrema violência, uma linguagem que evita ao máximo a extrema erudição que pode afastar leitores de obras desse feitio, e a capacidade de sensibilizar o leitor – está claro que, se os mucker se tornaram violentos, foi uma resposta à violência e à intolerância que eles próprios sofreram. E como não se sensibilizar com, por exemplo, o drama de Elizabeth Carolina, e com o triste fim do Padre Münsch, depois de acolher um deficiente mental que começa a carregar de um lado para outro após a morte dos familiares deste?
Estudiosos apontam, entretanto, que Assis Brasil assumiu o ponto de vista dos “vencedores” em sua narrativa, ou melhor, dos autores que retrataram, em seus estudos, os mucker como fanáticos e violentos, chefiados por um médico charlatão e por uma mulher louca e analfabeta, sem o elemento de denúncia social. Um dos primeiros autores a tratar do movimento mucker foi a padre Ambrósio Schupp, em livro redigido em alemão de cerca de 1900 – que serviu de base tanto para Assis Brasil como para Fidélis Barbosa. Atualmente, a visão de Schupp é contestada pelos historiadores, sobretudo os marxistas.
De todo modo, VIDEIRAS DE CRISTAL firma Luiz Antônio de Assis Brasil como um dos maiores escritores gaúchos, um mestre em retratar o passado gaúcho com ficção. VIDEIRAS DE CRISTAL mostra um autor em plena maturidade artística. Tudo bem que o romance tem mais de 500 páginas, mas garante horas de entretenimento ao leitor que desejar um pouco mais de cultura em sua cabeça. Ah: a edição da Mercado Aberto inclui ainda ilustrações – gravuras do século XIX mostrando os cenários da história, e um mapa da região conflagrada.
Em breve, falamos de seu produto derivado, o filme A Paixão de Jacobina.

Esta postagem é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Este livro, assim como outros de Luiz Antônio de Assis Brasil, se encontra disponível no acervo da Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges. Em caso de dúvida, pergunte a uma das bibliotecárias, elas podem auxiliar.
Em breve, nova resenha de livros aos leitores, tanto de Vacaria quanto de outras localidades alcançadas pela internet.

Até mais!

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Clima de Natal

A dica de hoje é da Paola, no Canal Fuxicos Literários:



Fonte: Canal Fuxicos Literários - Paola Aleksandra