Olá.
Aqui
é o Rafael Grasel de novo.
Hoje,
em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública Municipal, mais uma
resenha de livro para vocês! Ligado à resenha anterior.
Na
última postagem, falei de livro, versando sobre um dos casos policiais mais
tenebrosos ocorridos na capital do estado do Rio Grande do Sul – Porto Alegre –
no século XIX.
O
livro de hoje trata do mesmo tema: o tal caso tenebroso. Mas, desta vez,
escolhi um romance. De um dos cronistas mais irreverentes e mais agradáveis de
ler já nascidos no Rio Grande do Sul.
Hoje,
então falarei de CANIBAIS, de David Coimbra.
O AUTOR – DO IAPI PARA O MUNDO
Antes
de partir para a parte pesada, partamos para a parte leve: falar um pouco a
respeito de David Coimbra.
Quando
pensamos nos cronistas que fazem, ou fizeram fama no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, RS,
expressando suas opiniões com erudição notável, bem, quais são os primeiros
nomes que vem à cabeça dos leitores do citado jornal? A maioria botará, em
primeiro lugar, Luís Fernando Veríssimo, certamente. Ou, quem sabe, Paulo
Sant’Anna. Ainda serão lembrados nomes como Martha Medeiros, Mariana Kalil,
Cláudia Tajes, Fabrício Carpinejar, José Cláudio Pinheiro Machado, A. J.
Camargo, Celso Loureiro Chaves, Cláudio Moreno, Ruy Carlos Osterman... e o
saudoso Moacyr Scliar. E, claro, David Coimbra.
O
cronista, jornalista e escritor porto-alegrense é o meu cronista favorito,
dentre tantos que abrilhantam não apenas o jornal Zero Hora, tornando esse periódico um dos melhores do Brasil, em
termos de credibilidade, refinamento, inteligência, como outros veículos do
Grupo RBS de Comunicação – ainda que haja ainda hoje quem grite o refrão “RBS
mente!”. David Coimbra é uma das grandes mostras da inteligência dos gaúchos na
imprensa.
Inicialmente:
David Coimbra nasceu em 1962, em Porto Alegre, e cresceu no bairro do IAPI.
Formado em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS), ele já trabalhou em mais de dez redações de jornais do Rio Grande
do Sul e de Santa Catarina. Inicialmente, ele trabalhou como assessor de
imprensa da Livraria Sulina – depois, ele trabalhou em vários jornais, até fixar-se
no grupo RBS e seu principal veículo, o jornal Zero Hora, onde, além de manter uma coluna semanal, foi editor de esportes.
Aliás, sua coluna semanal ficava na página de Esportes. Coimbra também já
cobriu várias edições da Copa do Mundo, com sua equipe. Mais tarde, Coimbra
também ocupou a antepenúltima página da edição dominical, substituindo a página
do humorista Marco Aurélio. Atualmente, ele mantém uma coluna diária na última
página do jornal, substituindo Paulo Sant’Anna, impedido por problemas de saúde.
Em
2013, David Coimbra foi diagnosticado com câncer no rim, o que determinou sua
mudança do Brasil. Atualmente, David Coimbra reside em Boston, EUA, desde junho
de 2014. De lá, ele continua escrevendo para a Zero Hora, além de participar dos programas Timeline, da Rádio Gaúcha, e do humorístico Pretinho Básico, da Rádio Atlântida FM.
Ele
também já foi muito premiado: no total, foram 10 prêmios da Associação
Riograndense de Imprensa (ARI), 1 Esso Regional Sul, 1 Açorianos de Literatura,
1 Habitasul de Literatura, 1 Direitos Humanos de Reportagem e 1 Érico Veríssimo
de Literatura.
É
bem fácil determinar as características principais das crônicas de David
Coimbra, que o tornam uma espécie de sucessor do mestre Luís Fernando Veríssimo
em erudição, popularidade, humor e refinamento, tanto em suas colunas
opinativas quanto em suas crônicas do cotidiano:
1 –
O uso de linguagem coloquial, como se conversasse com o leitor em uma mesa de
bar;
2 –
A capacidade de conseguir tratar de qualquer assunto, mas sempre dando um jeito
de inserir, nas crônicas, um desses três assuntos, ou todos eles:
a) Memórias
de sua infância e adolescência no bairro do IAPI e em Porto Alegre em geral,
incluindo família, amigos, namoros, personagens marcantes;
b) Bastidores
de seu trabalho, e também o de seus colegas de redação;
c) Futebol
– principalmente a dupla Gre-Nal ou a Seleção Brasileira (natural, já que seus
textos no geral saem na coluna de Esportes...);
d) Mulheres
– de preferência, bonitas e sensuais.
3 –
Quando o tema mais forte de suas crônicas não é o futebol, é as mulheres, um
toque de erotismo, o que soa como machismo para alguns leitores.
4 –
Não raro, o uso do suspense, deixando o leitor em expectativa pelo que vem na
próxima linha, obrigando-o a ler as suas crônicas até o final.
Em
tempos recentes, Coimbra incluiu um quinto tema em suas crônicas: o filho,
Bernardo, tido com a mulher, Marcinha.
Mas,
no geral, o que deveria ser uma crônica esportiva, focada apenas no esporte,
acaba se convertendo em uma janela para o mundo – ainda que com menção
constante aos esportes, principalmente ao futebol, as crônicas de David Coimbra
acabam falando da condição humana. Não raro, comparando feitos históricos, de
grandes povos e homens dignos de menção, às ações de técnicos, jogadores e
dirigentes de times. E isso já faz de David Coimbra um escritor surpreendente.
Palavras emprestadas do saudoso Moacyr Scliar.
As
crônicas de David Coimbra ainda ganham brilho, nas páginas de Zero Hora, com as chamativas
ilustrações. Seu principal colaborador é Gilmar Fraga, mas também Rodrigo Rosa,
Gonza Rodriguez e outros ilustradores ajudaram a trazer mais fama à coluna de
David Coimbra.
Oh,
claro. Ainda temos de falar dos
livros que ele escreveu. O primeiro foi o livro-reportagem 800 Noites de Junho, de 1993, sobre o caso Daudt, o mais rumoroso
crime político do Rio Grande do Sul. Vieram também Atravessando a Escuridão (1996), Vida no Campo, Viagem (2001),
e o livro de poemas Uma Estação no
Inferno. Seu forte ainda são as compilações de crônicas: a primeira foi A Mulher do Centroavante e Outras Histórias (1999).
A Cantada Infalível (2000) veio a
seguir – em 2002, A Cantada Infalível e
A Mulher do Centroavante foram unidos
em um único livro, lançado pela L&PM. Em 2002, veio Crônica da Selvageria Universal.
Desde
por volta de 2003, David Coimbra se estabeleceu, com seus livros, na editora
L&PM (os anteriores saíram por outras editoras, como a Artes & Ofícios),
pelo qual publicou: Canibais, seu
primeiro romance, de 2004; Mulheres! (2005),
crônicas; Pistoleiros Também Mandam
Flores (2007), lançado inicialmente como folhetim eletrônico; Jogo de Damas (2007), crônicas; Cris, a Fera, e Outras Mulheres de Arrepiar (2008),
também lançado como folhetim; Meu Guri (2008),
relatos de sua experiência como pai; A
História dos Grenais (2009), em colaboração com Nico Noronha, Mário Marcos
de Souza e Carlos André Moreira; Jô na
Estrada (2010), romance (com inserções de quadrinhos de Gilmar Fraga – que
também ilustrou Meu Guri); Um Trem para a Suíça (2011), crônicas; Uma História do Mundo (2012), livro de
História; As Velhinhas de Copacabana (2013),
crônicas; e o mais recente, A Graça de
Falar do PT, de 2015, crônicas.
VOLTANDO À RUA DO ARVOREDO
Então,
hoje vou falar justamente de CANIBAIS – PAIXÃO E MORTE NA RUA DO ARVOREDO, de
2004. Publicado pela L&PM, em dois formatos físicos – o normal, medida 14 x
21 cm, 236 páginas; e o Pocket, 10,5 x 17,7 cm, 272 páginas. Com introdução do
saudoso Moacyr Scliar.
É a
versão romanceada do famoso episódio da “linguiça humana”, ocorrido em Porto
Alegre entre 1863 e 1864. Já falei a respeito desse episódio, quando resenhei o
livro O Maior Crime da Terra, de
Décio Freitas. Aliás, o historiador gaúcho, falecido em 2004, foi um consultor
para David Coimbra reconstruir, à sua maneira, os crimes da Rua do Arvoredo.
Vamos
relembrar: o ex-policial e açougueiro José Ramos, entre 1863 e 1864, matou
várias pessoas, com golpes de machado na cabeça e cortes no pescoço, e, com a
carne de seus corpos, fez linguiças que eram muito apreciadas pela população
porto-alegrense de então – quer dizer, até descobrirem a composição da iguaria.
A população – 20 mil “almas” então, aproximadamente – ficou chocada e
horrorizada em se ver transformada, involuntariamente, em canibal, por isso,
por muito tempo, o crime foi um dos maiores tabus da história de Porto Alegre. Ele
teve como cúmplices a esposa, a alemã Catarina Palse, encarregada de atrair as
vítimas para a casa número 27 da Rua do Arvoredo (atual Rua Fernando Machado,
na Cidade Baixa de Porto Alegre); o corcunda Henrique, que ajudava a se livrar
dos restos mortais; e o também açougueiro e alemão Carlos Claussner, possível
autor da ideia de transformar as vítimas em linguiça. Até que Ramos resolveu,
após um desentendimento, matar Claussner. José Ramos e Catarina Palse foram
presos em abril de 1864, depois que o então delegado Dario Callado encontrou
evidências da autoria de Ramos em seu último crime – as mortes do mercador
Januário, seu caixeiro e um cachorro.
Bem.
Apesar de ter por base o livro de Freitas, e numerosas fontes históricas,
Coimbra resolveu tomar algumas liberdades para fluir a história, que faz uso da
linguagem coloquial, fluida e fácil de entender; bem-construídas referências
históricas; uma dose generosa de erotismo; doses de humor; e também de
suspense, pondo o leitor em alerta sobre o que vai acontecer a seguir na
narrativa.
CANIBAIS
conta tanto com personagens reais como também fictícios. Em comparação com O Maior Crime de Terra, podemos dizer
que CANIBAIS é 40% ficção, 60% realidade. Coimbra resolveu não reconstituir a
história literalmente, concentrando a realidade na reconstituição da Porto
Alegre do século XIX, cidade de poucas comodidades higiênicas, mal iluminada
com lamparinas de óleo de peixe, uma cidade de “escravos fugidos, imigrantes
desgarrados, bandidos de todo tipo”.
Dentre
os personagens que dominam a narrativa, podemos apontar como principais: a bela
e misteriosa Catarina Palse, personagem real; e o sapateiro Walter Scherer,
personagem fictício.
Se
Décio Freitas até mesmo refuta a suposta beleza de Catarina Palse, Coimbra a
reafirma – afinal, Catarina era responsável por atrair as vítimas homens para a
casa de José Ramos. E, para dar mais certo, Catarina foi retratada como uma
mulher linda. E também sofredora: Coimbra dá indícios de que Catarina sofre abusos
por parte de José Ramos, retratado como um homem cruel, intransigente e que
está, aos poucos, deixando se levar pelo dinheiro, provindo da venda das
“linguiças humanas”. Mais ou menos como o perfil do assassino traçado por Décio
Freitas. O açougueiro Carlos Claussner chega a ser citado, mas, de acordo com
CANIBAIS, ele teria sido a primeira vítima de José Ramos, e o primeiro a virar
linguiça; na realidade, ele foi, por um tempo, comparsa de Ramos, até seu
assassinato – mas Ramos, de acordo com Décio Freitas, não o transforma em
linguiça.
Como
as alemãs daquele tempo, vistas com desconfiança, Catarina age quase que como
uma prostituta – desnudando-se e fazendo sexo com as vítimas antes de, por uma
armadilha (um alçapão sob uma mesa de refeição), “jogá-las” no porão da casa para
Ramos, que as mata primeiro com a machadada na cabeça, depois com a degola.
(Bem,
com base nesta descrição, alguém aí lembra do filme Sweeney Todd, de Tim Burton, sobre um barbeiro inglês que degola as
vítimas com a navalha, e depois as manda para sua comparsa, que transforma-as
em recheio de tortas?)
Com
o uso da análise psicológica, Coimbra retrata Catarina como alguém que sofre,
desde suas origens, na Transilvânia, mas que mantém ambiguidade em suas ações.
Walter,
o sapateiro, é vizinho do casal. Rapaz honesto, culto, apreciador do então
iniciante Machado de Assis. Fortemente sensibilizado de que algo está errado na
casa dos vizinhos, principalmente porque continuamente ouve os gritos de
Catarina – por quem é apaixonado. Catarina, secretamente, também é apaixonada
por Walter, e, desse modo, o rapaz planeja salvá-la das mãos do violento Ramos.
Outros
personagens fictícios que marcam presença na narrativa de CANIBAIS são: o
simpático Brasiliano Calovi, um anspeçada (vigilante) folgazão e apreciador de
mulheres, cujo maior parceiro de andanças é o guaipeca (cachorro) Januário
(teria sido recurso de liberdade poética que o cachorro recebesse o nome da penúltima
vítima – humana – real de José Ramos?); o gordo e próspero padeiro Manoel
Antunes, que adora cozinhar comida “da corte” para os seus convidados, e casado
com a ambiciosa Rosa (que, ao que tudo indica, está tendo um caso secreto com
Ramos, a ponto de este tramar a morte do padeiro); a carola e fofoqueira Dona
Honestina; e a sofredora Emiliana, criada do casal Ramos-Palse, que sofrera
abusos de seus antigos patrões na juventude, quando ainda trabalhava em uma
estância antes de fugir para Porto Alegre, e, por isso, tem uma atitude tímida
e covarde. Outros personagens reais que aparecem são Bronze, a mais famosa
cortesã de Porto Alegre – e, portanto, uma das maiores “amigas” de Brasiliano –
e o delegado Dario Callado; outros personagens reais citados são a Baronesa de
Gravataí e o príncipe de Ajudá, um príncipe africano que vivia bem em Porto
Alegre. Coimbra também cita personagens da saga O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo (pai de Luís Fernando), para
dar uma enriquecida na narrativa.
E
mais enriquecida fica essa narrativa com a inserção de detalhados recursos de
flashback, contando o passado de cada personagem até o momento – Brasiliano,
Walter, Catarina, José Ramos, Emiliana (aliás, como se manter insensível à
triste história de Emiliana?). Além da inserção de causos aleatórios e anedotas
tradicionais do Rio Grande do Sul, oferecendo um panorama da cultura popular
gaúcha do século XIX. E, mais ainda, do suspense e de trechos arrepiantes.
Como
escreve Moacyr Scliar na introdução, “raramente, na ficção brasileira,
encontramos tão próximos Eros e Tanatos, a paixão e a morte”. O grande motor de
CANIBAIS é a oposição entre paixão e morte: paixão, representada por Catarina
Palse; e morte, representada por José Ramos. E, no meio dessa oposição, Walter,
Brasiliano, Antunes e Emiliana acabam se inserindo, em uma história que tem
tudo para terminar mal para todo mundo. Ou quase todo mundo.
Os
maiores momentos de suspense da saga são: os dois primeiros capítulos,
mostrando o método de Catarina e um assassinato de Ramos; o episódio em que
Walter invade a casa 27 e dá de cara com Catarina, declarando-lhe seu amor – e
foge de Ramos a muito custo; O episódio em que Catarina tenta atrair Brasiliano
para a casa 27 (ela resolve eliminar o anspeçada por sentir que ele poderia
representar uma ameaça), mas sua tentativa é frustrada pela repentina aparição
de Bronze; o episódio em que Emiliana invade o porão da casa 27, descobre os
segredos de Ramos, mas não consegue escapar da fúria do patrão, que a possui,
e, depois, a degola, decretando sua trágica trajetória com um fim ainda mais
trágico, porém com uma dose de estoicismo; os capítulos em que Catarina e Ramos
armam a armadilha para o padeiro Antunes; a tensão criada quando Walter tenta
obter notícias da casa e/ou é avisado do perigo, pessoalmente, por Bronze
(Emiliana também tenta avisar Walter, mas não consegue por covardia); e o
episódio em que Brasiliano é, afinal, atraído para a casa 27, mas uma tragédia
não acontece porque Walter consegue intervir. E, ainda, a cena em que Catarina
seduz Walter, mas sem sucesso.
Coimbra
altera o fim original do caso, dando vez à ficção. Mas, sem querer, dando
espaço para que a história fique ainda mais lendária: se, nos dias que correm,
o livro de Décio Freitas está sob suspeita, para alguns historiadores, de ser
uma peça de ficção, que dizer do livro de Coimbra, que não foi feito para ser
levado a sério?
De
todo modo, CANIBAIS é uma boa pedida para os que gostam de romance histórico,
suspense e histórias de serial killer. Além disso, CANIBAIS é um livro bem
fácil de encontrar nas livrarias – principalmente, as que dispõem do famoso
display dos livros da L&PM Pocket, que, além de muito baratos (em media, os
mais finos não passam de R$ 20, e os grossos nem chegam a R$ 35 – ainda), dá
para levar comodamente em qualquer bagagem. No bolso, vamos dizer que em
termos, já que alguns são grossos demais para caberem em bolsos de calça,
principalmente as justas.
Esta
resenha é uma versão revista e com alterações do texto publicado anteriormente
no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/).
Aproveitem e conheçam.
Visitem
a Biblioteca Pública Municipal Theobaldo Paim Borges! De repente, você pode ser
surpreendido com o livro que você escolheu!
Em
breve, nova resenha.
Até
mais!
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