terça-feira, 25 de outubro de 2016

Seção Resenha de Livros: CHATÔ - O REI DO BRASIL

Olá.
Aqui é o Rafael novamente.
Hoje, em nova colaboração para o blog da Biblioteca Pública, vamos variar um pouco: vamos falar de uma obra mais consagrada. Uma biografia.
O livro de hoje foi responsável por uma das maiores “novelas” da cultura brasileira – e trata de uma das pessoas mais contraditórias, praticamente o símbolo de um país tão contraditório.
Hoje, então, vamos falar de CHATÔ – O REI DO BRASIL.

O AUTOR
CHATÔ – O REI DO BRASIL consolidou a carreira literária de um dos mais conceituados biógrafos do país, Fernando Morais, e um dos maiores best-sellers da área de História. Mas também é um dos mais polêmicos de nossos dias – há críticos que acham que ele é condescendente demais com gente “que deveria estar na prisão”, pelo menos foi isso que um artigo da revista Veja disse. Já explico.
Fernando Gomes de Morais, ou simplesmente Fernando Morais, o homem em questão, é mineiro de Mariana (sim, a cidade que em novembro de 2015 foi vitimada pelo rompimento de uma barragem de rejeitos de minério), onde nasceu em 1946. Residente em São Paulo, SP, desde os 18 anos, é jornalista, tendo trabalhado em vários veículos de comunicação importantes, como a revista Veja, os jornais Jornal da Tarde e Folha de São Paulo, a TV Cultura e o Portal IG. Sua atividade jornalística, contudo, começou aos 15 anos, em um periódico de um banco de Belo Horizonte, MG, inicialmente como office-boy, depois cobrindo a ausência de um jornalista durante uma entrevista coletiva. Em seu ofício, ganhou três vezes o Prêmio Esso e quatro vezes o Prêmio Abril. Também já atuou como Deputado Estadual, durante 8 anos, e foi Secretário da Cultura (1988 – 1991) e de Educação (1991 – 1993) do Estado de São Paulo.
Ele deixou o jornalismo nos anos 1990 para se dedicar à literatura. E se notabilizou por seus livros de reportagem e biografias, sempre com grande apuro na pesquisa e no texto.
Seu primeiro livro, e primeiro grande sucesso de vendas, foi o livro-reportagem A Ilha, de 1976, sobre a vida na Cuba de Fidel Castro – e, por isso, o livro virou um ícone para os setores da esquerda durante o Regime Militar. A obra foi relançada em 2001, revista e ampliada.
Anos depois, veio o segundo grande sucesso, Olga, de 1985, biografia da militante comunista Olga Benário Prestes.
E, em 1994, viria Chatô – O Rei do Brasil, biografia do magnata da imprensa Assis Chateaubriand, que consolidaria sua fama de biógrafo.
No ano 2000, outro grande sucesso: Corações Sujos – A História da Shindo Reimei recupera um episódio obscuro da época da Segunda Guerra Mundial no Brasil – a atuação de um grupo de extermínio formado por imigrantes japoneses que se recusavam a aceitar a derrota do Japão na Guerra.
Depois, veio a compilação de reportagens Cem Quilos de Ouro, de 2003, ano em que tenta uma vaga para a Academia Brasileira de Letras, mas acaba perdendo-a para Marco Maciel.
Em 2005, veio sua maior polêmica em vida: Na Toca dos Leões, a história da agência de propaganda W/Brasil, acaba apreendido, devido a um processo criminal movido pelo deputado Ronaldo Caiado, devido a um trecho polêmico onde é citado. O processo se estende por anos, com uma vitória parcial de Morais, mas, depois, Caiado vence, obrigando o autor a pagar uma indenização de mais de 1 milhão de reais.
Outros livros do autor foram: Montenegro – as Aventuras do Marechal que fez uma Revolução nos Céus do Brasil (2006, biografia de Casimiro Montenegro Filho, pioneiro da aviação brasileira), O Mago (2008, biografia do escritor Paulo Coelho, e, portanto, best-seller) e Os Últimos Soldados da Guerra Fria (2011).
Ele causou polêmica ao anunciar, ainda na década de 2000, dois projetos: uma biografia do deputado Antônio Carlos Magalhães, o “último coronel”, e a de José “mensalão” Dirceu. Houve gente que condenou esses projetos – algo semelhante ao que houve com o escritor Fernando Sabino, quando aceitou redigir as memórias da ex-ministra da economia Zélia Cardoso de Mello (essa é outra história – fica para outro dia).
Ah: três de seus livros mais famosos já foram adaptados para o cinema. E as histórias dessas adaptações constituem aventuras à parte.
Olga foi adaptado em 2004, pelo diretor Jayme Monjardim, com distribuição da Globo Filmes. Sucesso de bilheteria, apesar das inconsistências entre a história apresentada no filme e a realidade. O curioso é que Olga quase foi adaptado por um estúdio norte-americano.
Corações Sujos também foi adaptado para o cinema. O primeiro projeto é de 2005, a ser dirigido por Cacá Diegues, mas não foi concretizado; o filme seria dirigido por Vicente Amorim, em 2011.
Mas foi Chatô que constituiu a maior novela da cultura nacional. Os direitos foram comprados pelo ator global Guilherme Fontes, em 1995, e o filme foi financiado através de recursos públicos – foram duas captações, e filmagens realizadas em 1999, 2002 e 2004. Mas foram cerca de 20 anos, sem que o filme ficasse pronto. Guilherme Fontes, por conta da demora, foi processado por sonegação fiscal, e condenado a devolver R$ 36,5 milhões ao Estado. Mas tudo está bem agora: Chatô, com direção de Guilherme Fontes, chegou aos cinemas em dezembro de 2015! Pelo menos, essa parte da novela teve um fim. Na época do lançamento, ao menos, as críticas são razoáveis.

O HOMENAGEADO
Bem. Mas hoje falaremos mesmo de CHATÔ, o livro. Como disse, lançado em 1994, pela editora Companhia das Letras.
O “tijolo” de 736 páginas – texto de orelha de Ricardo Setti – reconstitui a trajetória de vida de Assis Chateaubriand (1892 – 1968), o maior magnata brasileiro das comunicações no século XX.
Um personagem, por si só, cheio de contradições. Mesmo com uma carreira que o classificaria como um gângster, cheia de momentos que no Brasil de hoje seriam reprováveis, Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, natural de Umbuzeiro, estado da Paraíba, deixou um legado cultural inestimável.
Para entender, inicialmente, quem foi Assis Chateaubriand, faço minhas as palavras do próprio Fernando Morais, extraídas de um artigo escrito para a revista Exame, da Editora Abril, edição 703, ano 33, no. 25, de 15 de dezembro de 1999:
“Como o público reagiria se o jornalista Roberto Marinho interrompesse um capítulo da novela (...) para comunicar que havia contratado um pistoleiro para castrar a tiros um banqueiro que executara uma dívida da Globo? E se Sílvio Santos anunciasse que havia vendido metade do SBT para comprar e instalar no Brasil o acervo do Museu de Arte de Nova York? OU, ainda, se o jornalista Otávio Frias Filho doasse o controle acionário do grupo Folha a 22 funcionários da redação do jornal?
Para os brasileiros de menos de 60 anos, notícias como essas soariam absurdas até mesmo na boca do comediante Bussunda. Mas foi exatamente isso que ocorreu no Brasil entre os anos 30 e 60. O autor de tamanhas extravagâncias foi o paraibano Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo. No auge de seu poder, era dono de um império que, em número de estações de TV e de rádio, revistas e jornais, jamais teve paralelo na história das comunicações – nem mesmo o norte-americano William Randolph Hearst, inspirador do Cidadão Kane, de Orson Welles, chegou perto dele.
Gênio, louco, gângster, mecenas, visionário, chantagista, mulherengo priápico – os adjetivos para descrever a personalidade de Assis Chateaubriand são infinitos. Passados [mais de] 30 anos da sua morte, no entanto, parece justo que ele seja incluído entre os grandes empreendedores do século 20. Afinal, apesar de todas as suas excentricidades, Chatô deixou para a sociedade o Masp, o maior museu do Hemisfério Sul, que abriga um acervo avaliado em 2 bilhões de dólares. E a ‘Cadeia Associada’, que ele criou em 1924, ainda hoje o sexto maior grupo de comunicação do Brasil (...). Doido rasga dinheiro, mas não constrói impérios e museus.”
Bem. Com essa introdução, já pudemos localizar o personagem, o Cidadão Kane brasileiro, se é que realmente podemos chamar assim, apesar da advertência feita pelo próprio Morais – a de que W. R. Hearst nem se compara a ele.
Apesar do gangsterismo de sua carreira – com fama de “fazedor de reis”, destruidor de reputações, mau pagador – o paraibano/pernambucano tem lá sua importância: afinal, foi ele quem iniciou uma nova era no jornalismo brasileiro, ao criar, a partir da compra do jornal Diário da Noite, do Rio de Janeiro, em 1925, uma cadeia de jornais, que publicam e distribuem material umas das outras – se não estou enganado, foi Chatô que tomou a iniciativa da syndication que já era comum, por exemplo, nos Estados Unidos da virada do século XIX a XX; iniciou ainda uma nova era da propaganda brasileira, ao transformar as publicações de sua cadeia de jornais em verdadeiros palanques de anúncios – e, se necessário, comprando empresas de diversas áreas, da farmacêutica (como os laboratórios Schering e Licor de Cacau Xavier) à de chocolates (como a Lacta), só para publicar anúncios delas nas suas publicações; fundou a primeira grande revista moderna, a Cruzeiro, em 1928, líder de vendas antes da criação da Veja; estendeu sua “cadeia associada” para o Rádio, fundando em ampliando várias emissoras; foi o pioneiro da TV no Brasil, com a TV Tupi, criada em 1950 (e, não fosse por questões técnicas da tecnologia da época, Chateaubriand poderia ter adiantado em quase duas décadas a introdução da TV a cores no Brasil) – da Cadeia Associada de TV, sairia a TV Cultura, hoje estatal; criou o Museu de Arte de São Paulo (Masp), também em 1950.
Embora tenha sido um dos brasileiros mais ricos de seu tempo, saído de uma infância modesta de classe média, inicialmente em Umbuzeiro, e depois em Recife, Pernambuco, Chateaubriand muito raramente pagou pelas grandes obras que idealizava com o próprio dinheiro: ele conseguia convencer grandes empresários, burgueses e até mesmo o Governo a financiar suas aventuras empresariais, sob garantias – mesmo que depois acabasse devendo até um braço e uma perna. Até mesmo boa parte dos quadros do Masp, adquiridos na Europa pós-guerra, foram pagos por “patrocinadores”, incluindo o “sócio” Pietro Maria Bardi, quase nunca por ele mesmo.
Mas Chatô sabia, como ninguém, mexer os pauzinhos, encontrar brechas na legislação e ainda fazer com que novas leis fossem criadas em seu benefício. Uma de suas primeiras grandes malandragens foi ter conseguido ser, ainda quando era um modesto repórter no jornal Estado de Pernambuco, o primeiro pernambucano (sic) a voar de avião, conseguindo convencer um piloto, que estava de passagem por Recife, a substituir um outro repórter escalado para cobrir um voo pelo então magricela Chateaubriand. Aliás, a aviação seria um outro tentáculo de seus negócios.
Na infância, Chatô lutou contra uma gagueira severa, que atrasou em muito sua educação escolar, mas, antes de entrar para a adolescência, já sabia ler e falar alemão com fluência. Sua carreira de jornalista iniciou ainda nos anos 1910 – em 1913 ele já era redator-chefe do já citado Estado de Pernambuco – já atacando pessoas importantes. Desde a adolescência, conseguiu fazer muitos inimigos, inclusive no Governo. Foi preso algumas vezes, antes de construir seu império – a primeira, por ter se envolvido em uma revoltante questão política: o candidato que apoiava venceu legalmente as eleições municipais, mas foi o adversário, que era atacado, quem assumiu o cargo, e ainda mandou empastelar o jornal e prender os jornalistas. Conseguiu transformar questões pessoais em questões políticas – sua primeira grande vitória foi ter conseguido, após mobilizar até o Governo Federal, vencer um importante adversário para obter um cargo público, que nunca exerceria, entretanto. O caso, do plano pessoal, se transformou em um caso político, e Chateaubriand foi um símbolo da luta contra a ordem política coronelista do Nordeste – principalmente de Pernambuco, onde se matava por qualquer motivo.
Instalado no Rio de Janeiro, onde estava mais perto do poder, e, consequentemente, do dinheiro, Chateaubriand, ex-gago, fez o que quis. Apoiou presidentes, governadores, deputados e empresários num momento, no outro passou à oposição – Getúlio Vargas seria seu maior caso de amor e ódio, oscilando entre o apoio e a oposição. E, realmente, mandou castrar a tiros um desafeto – no caso, o empresário alemão Oscar Flues, de quem Chatô fizera uma vultosa compra de máquinas para os seus jornais. O atentado foi executado pelo fiel guarda-costas, o perigoso Amâncio. Ao invés de pagar a quem devia, como uma pessoa civilizada, Chatô chegava ao extremo, mesmo, de atacar os credores em seus jornais, transformando-os em vilões diante da opinião pública – a pior ofensa a seus desafetos era, na época, chama-los de “filho da piiih”.
E não foi a única vez em que se envolveu em uma tentativa de homicídio: Chatô, em outra oportunidade, quase matou um amigo, com um tiro na boca, tentando se defender de um desafeto. O empresário jura que foi sem querer que ele destruiu os dentes daquele que era considerado “o brasileiro com o sorriso mais bonito” daquele tempo.
Em tempo: o episódio em que ele interrompeu a transmissão de uma novela para dar um aviso ao público não tem a ver com o atentado contra Flues, mas para criticar outro desafeto.
Seus venenosos artigos (assinados, quando não com o próprio nome, sob os pseudônimos de “Macaco Elétrico” e “A. Raposo Tavares” – este último, aliás, também é o nome de seu avião particular favorito), em grande parte da vida, eram escritos sempre à mão. Quando uma trombose praticamente tirou seus movimentos, em 1960, Chateaubriand teve de treinar novos meios para continuar escrevendo enquanto lutava pela vida: inicialmente, ditando textos aos enfermeiros de plantão, depois dando um jeito de operar uma máquina de escrever elétrica e adaptada.
Aliás, é nesse ponto que o livro inicia. Na verdade, o livro inicia do modo como Chateaubriand, em nota introdutória, escolheu como queria que uma possível biografia sua começasse: com um delírio em que Chateaubriand e a filha “favorita”, Teresa, apareciam travestidos como índios canibais, devorando um bispo português. Só aí começa com a dramática cena da trombose, onde ele é declarado praticamente morto. Quando tudo já estava preparado para seu velório, é que se inicia a sua luta pela vida, que termina dramaticamente em 1968, amparada principalmente por sua enfermeira favorita, Emília Belchior Araúna, principal encarregada de traduzir os grunhidos de suas falas. E esta não foi a única vez que Chatô foi declarado morto...
O tal delírio também revela uma de suas maiores obsessões em vida: os indígenas brasileiros. Chatô, que se dizia descendente dos índios que devoraram o bispo Sardinha, sempre se preocupou em divulgar a cultura indígena, em uma espécie de retorno ao indigenismo literário do século XIX – seja mandando repórteres dos Diários Associados para a selva, seja trazendo indígenas para eventos oficiais, seja passando uma semana, em companhia de autoridades, hospedado em uma aldeia indígena – e chegando ao cúmulo de se deixar fotografar totalmente nu na aldeia, e ainda exigir que as fotos fossem publicadas em O Cruzeiro, sem censura! Ou melhor, teve uma censura, até meio tímida.
Nos 37 capítulos do livro, ricamente ilustrado com fotografias, Morais reconstitui toda a vida de Chateaubriand, inclusive as aventuras vividas nos anos 1930. Mas grande parte do livro se concentra nas disputas que ele teve com adversários políticos e empresariais – com os presidentes, Epitácio Pessoa, Arthur Bernardes, Washington Luís, Getúlio Vargas (em todos os seus governos), Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart, Castelo Branco, Costa e Silva; com empresários, como o já citado Oscar Flues, a família Matarazzo, o americano Percival Farquhar (de quem tiraria o mordomo, Henri Gallon), Roberto Simonsen; e até rivais, como Roberto Marinho, Carlos Lacerda e o ex-empregado Samuel Wainer, que passaria à oposição com seu jornal Última Hora.
Mas Morais também não esquece dos conflitos que viveu com sua própria família. Mulherengo, teve vários casos extraconjugais. Foi noivo diversas vezes, mas só consumou um casamento, com Maria Henriqueta Barrozo do Amaral, de onde nasceu o primogênito Fernando – que, aliás, em boa parte da vida, não tinha boas relações com o pai.
Teve casos que hoje chamaríamos de uniões estáveis – levou a amante para morar com ele. Do mais rumoroso desses casos, com a argentina Cora Acuña – na época em que se conheceram, era apenas uma adolescente, que ele levou para morar com ele junto com a família – nasceu a filha Teresa. Quando Cora se separou de Chatô para ficar com o amante, Clito Bockel, o empresário não se fez de rogado para fazer a caveira da argentina e de Bockel na imprensa, e ainda conseguir fazer aprovar uma lei em seu benefício, que lhe permitia ficar com a guarda de Teresa, sua “garota-propaganda”, mas que, na adolescência, acabaria rompendo relações com o pai. Aliás, foi o irmão de Clito Bockel o pivô do atentado em que Chatô quase matou o amigo com um tiro na boca.
Mas o caso mais dramático foi o do filho Gilberto, o Gigil, que só descobriu que Chateaubriand (que ele acreditava ser apenas um padrinho) era seu pai na idade adulta, e que sua irmã era sua mãe. Um típico caso de telenovela. Chatô, inclusive, só reconheceu o filho sob pressão – e depois o renegou. E olha que tanto Gilberto como Fernando foram trabalhar nas empresas do pai.
Mais: com algumas mulheres, o cara jura que não mais que “furunfava”... mesmo depois de paralisado pela trombose!! Mas o grande amor de sua vida esteve sempre longe de seu desejo: a mecenas Iolanda Penteado. A propósito: Chatô fez uma aparição no seriado global Um Só Coração, que conta a história de Iolanda Penteado e de São Paulo no início do século XX.
Morais também reconstitui, detalhadamente, as maiores aventuras físicas de Chatô, como a enfrentada por ele para participar da Revolução de 1930 – o avião, saído do Rio de Janeiro, tem um pouso forçado, devido ao mau tempo, em Santa Catarina, obrigando Chatô a fazer trajetos a automóvel e a cavalo pelos Campos de Cima da Serra de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, para conseguir chegar a Porto Alegre, onde aderiria ao exército de Getúlio Vargas. E, no meio da viagem, ele ainda quase acaba morto! Mas, depois, à época da Revolução Constitucionalista de São Paulo (1932), Chatô quase foi deportado para o Japão, à força. Escapou por um triz, mas acabou preso. E, desde essas aventuras, Chatô nunca mais foi preso, apesar de pesadas acusações caírem sobre sua cabeça.
Outras aventuras de Chatô foram na política: ele foi deputado federal por duas legislaturas – uma por Pernambuco e outra pelo Maranhão – e em ambas as vezes, precisou mexer os pauzinhos e encontrar brechas na legislação para assegurar a vaga. Também foi embaixador do Brasil na Inglaterra, sob indicação do presidente Juscelino, a quem Chatô deveu-lhes a vida (ele disse que só não morreu em um grave acidente de avião graças a Juscelino). Apesar disso, Chatô teve de pressionar Juscelino para fazer cumprir essa promessa, e, quando conseguiu, fez de tudo, menos trabalhar a sério, tanto como deputado quanto como embaixador. Ainda assim, foram notórios episódios passados em Londres, como quando condecorou o estadista Winston Churchill com uma suposta “Ordem do Jagunço”. Aliás, a compra de uma pintura de Churchill para integrar o acervo do Masp foi outra das pitorescas aventuras de Chatô.
Nos Diários Associados, Chatô foi o principal responsável pela fama, tanto inicial como total, de muitos luminares da imprensa nacional da primeira metade do século XX, como o jornalista David Nasser (que, posteriormente, teria por maior parceiro o fotógrafo francês Jean Manzon), os ilustradores Alceu Penna, Péricles Maranhão (o criador do Amigo da Onça) e Ziraldo Alves Pinto, e os humoristas Aparício Torelly, o Barão de Itararé, e Millôr Fernandes. Aliás, pense em uma personalidade brasileira da primeira metade do século XX, em qualquer área de atuação – política, arte, empresariado ou mesmo crime: é bem provável que ela tenha sido citada, ainda que só uma vez, em CHATÔ – O REI DO BRASIL. Tendo ou não cruzado o caminho de Chateaubriand, para o bem ou para o mal.
Algo que Morais cita, meio por alto, é que Chatô também deu sua contribuição para a indústria brasileira de histórias em quadrinhos! Começou em 1940, com o gibi-coletânea O Guri. Foi os Diários Associados, sob o selo O Cruzeiro, que trouxeram a Luluzinha e o Bolinha de Marge Buell ao Brasil pela primeira vez, de 1955 a 1972. E foi ainda pela editora O Cruzeiro que Ziraldo publicou os primeiros gibis de seu personagem Pererê, em 1960. Mas Morais mal cita essas contribuições, entendendo que as HQ eram uma preocupação menor de Chatô – seus esforços estavam concentrados na imprensa “séria”.
E Chatô nem sempre acertou em suas aventuras empresariais – sua maior derrapada foi a edição internacional de O Cruzeiro, cujo fim precoce foi decretado pela falta de anunciantes. Mesmo quando instalou a TV Tupi, na época em que sequer havia aparelhos de televisor no Brasil, ele precisou contrabandear aparelhos de TV do exterior para viabilizar a primeira transmissão – que, aliás, teve os maiores percalços logo no primeiro dia, mas, no fim, tudo acabou bem.
O declínio de seu império se acentuou na época em que a trombose lhe acometeu. Começou ainda em 1959, com sua citada extravagância de doar 49% de seu império de comunicações a 22 de seus empregados.
Ah: a cidade de Vacaria, RS, meu lar, também tem uma espécie de dívida com Chateaubriand e os Diários Associados: foi por intermédio desses que, em 1951, um peão vacariense se apresentou nos Estados Unidos. Wenceslau Ferreira Filho, o vacariense em questão, venceu um rodeio promovido em Porto Alegre, depois de fazer uma excelente demonstração de doma nos festejos do Centenário de Municipalização de Vacaria, em 1950. Com a vitória sobre outros 22 candidatos, “Lalau” foi indicado pelos Diários Associados para representar o Brasil no Rodeio Anual de Houston, no Texas. Inclusive, ele foi saudado pelos astros de cinema que interpretavam Roy Rogers e Hopalong Cassidy (Google para quem não sabe quem estes indivíduos são). De volta ao Brasil, foi um dos promotores do Rodeio Internacional de Vacaria, evento criado em 1958, patrão de nosso maior CTG, o Porteira do Rio Grande, em 1960, e vereador.
Voltando a Chatô, ele também polemizou por suas posições: ele, um admirador contumaz do capitalismo norte-americano, sempre foi a favor da entrada de empresas estrangeiras do Brasil, e atacava as políticas de nacionalização; anticomunista, ele se opôs ferrenhamente a João Goulart e ao movimento da Legalidade de Leonel Brizola e foi apoiador do Golpe de 1964 – mas foi “traído” pelo governo militar posteriormente. Mas algumas de suas posições eram tão ambíguas que era difícil saber de que lado, exatamente, ele estava, sabendo bajular tanto quanto atacar. Aliás, ele escreveu e publicou seus artigos até quanto conseguiu, mas praticamente até os últimos dias de sua vida. E morreu sem arrependimentos – ao menos explícitos. Sem murmurar “rosebud” ou algo do tipo.
Então: CHATÔ – O REI DO BRASIL, mais do que contar a história de um cidadão que atuou na política, nos negócios e nas artes como um sujeito acima do bem e do mal, uma das pessoas mais temidas de sua época, reconstitui a trajetória do Brasil entre os anos 1910 e 1960. Uma época de tantas contradições morais quanto o Brasil de hoje, com a diferença de que, naquela época, não havia internet nem redes sociais para transformar gente em heróis ou vilões, conforme as conveniências. Um verdadeiro “tijolo”, mas em um texto fluido, detalhado, acessível a vários tipos de leitores. Morais também sabe brincar com o suspense: é difícil, em alguns trechos, não torcer por esse simpático patife que foi Chatô – torcer, claro, para que ele se dê bem em alguma de suas encrencas, como a citada disputa pelo cargo público e a aventura para chegar ao Rio Grande do Sul em 1930. Um livro de interesse geral.
Verdadeiras lições de como não gerir uma empresa – ao menos no Brasil de hoje, onde qualquer cocô fora do penico já é motivo para condenações por parte do povo.

Esta resenha é uma versão revista e modificada do texto publicado anteriormente no blog Estúdio Rafelipe (https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/). Aproveitem e conheçam.
Todos os livros resenhados nesta seção estão disponíveis na Biblioteca Pública Theobaldo Paim Borges.
Em breve, uma nova resenha.

Até mais!

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